CA 12 ENTRE O PASSADO E O PRESENTE

João Bortolanza (UFMS, UEMS e UEL)

Neste trabalho, faz-se uma leitura da cantiga CA 12 de Vasco Praga, ou Vasco Fernandes Praga de Sandim, segundo Carolina Michaelis (CA, 1904, v. II, p. 293-7), procurando situá-la na diacronia, ou seja, como um fato lingüístico que paira entre o passado e o presente. Vasco (Fernandes) Praga de Sandim seria natural da Galícia, tendo desposado D. Teresa Martins de Sandim, portanto, “não oriundo, mas antes senhor de Sandim, possuía ali bens que eram de sua mulher”. Quanto ao epíteto “Praga”, provavelmente lhe adveio de seu caráter de “bocca de pragas”. Deixou-nos 25 cantigas de amor, sendo apenas 4 de refrão, como esta cantiga 12, além de algumas cantigas de amigo.

A Cantiga 12 Quero-vus eu, senhor, gran ben compõe-se de 3 quadras, seguidas do refrão em dístico. Os “octonários jâmbicos”, como os chama Carolina, são todos octossílabos com rimas agudas, com acento rítmico na 3ª ou 4ª e na 8ª sílabas. As rimas são do tipo ABBA, seguidas das emparelhadas CC do refrão.

O tema, de norma nas Cantigas de Amor, é a “coita d´amor”, sina do amante que morre d´amores, sabendo que jamais “averá ben” da sua “senhor":

E creede que a min é
este mal, que me vós levar
fazedes, de mia morte par

ou seja, “podeis ter certeza [mia senhor] que este mal d´amor que vós me fazeis sofrer é a minha própria morte”. Uma vez que vos vi, senhor (“tan mal-dia vos vi”), estou condenado a “tudo sofrer”, enquanto a morte não vier “tolher” minha vida, destinada a uma dor sem fim e sem remédio.

Partindo de aspectos fonéticos, vamos observar as transformações havidas e por vir, entre o passado e o futuro (o presente). Destacam-se, a seguir, alguns aspectos morfológicos e sintáticos significativos em seu percurso realizado e por realizar-se. Por fim, atenta-se para as alterações léxico-semânticas.

Cantiga de Vasco Praga (CA 12)

Quero-vos eu, senhor, gran ben

e non ei al de vós se non

muito mal, si Deus me perdon.

Pero direi-vos ũa ren:

5 Todo vo-l´eu cuid´a sofrer,

se m´end´a morte non tolher.

E creede que a min é

este mal, que me vós levar

fazedes, de mia morte par.

10 Pero, senhor, per bõa fé,

Todo vo-l´eu cuid´a sofrer,

se m´end´a morte non tolher.

E pois por ben, que vos eu sei

querer, me fazedes assi

15 viver (tan mal-dia vos vi),

pero verdade vos direi:

Todo vo-l´eu cuid´a sofrer,

se m´end´a morte non tolher.

ASPECTOS FONÉTICOS

As variações fonéticas, já denominadas de “leis” por sua regularidade, são de fato tendências verificáveis em cada texto, principalmente quando este texto se situa entre o passado latino e o presente português. A sonorização das surdas intervocálicas e a correspondente síncope das sonoras intervocálicas pode observar-se em CREDITE > creede e COGITO > cuido, em que as sonoras -d- e -g- desaparecem e a surda -t- passa a -d-, resultando o hiato em creede, que só se desfaz com a também característica crase do português moderno, deixando embora formas como crêem, lêem, vêem, nas terceiras pessoas plurais. Todo < TOTU, fazedes < FACITIS e verdade< VERITATE são outros exemplos de sonorização, destacando-se que todo ainda é forma equivalente a tudo, fazedes ainda irá sofrer a síncope da sonora e em verdade houve também a síncope da pretônica, além da dupla sonorização característica do sufixo -TATE > -dade. Quanto à síncope da sonora, evidencia-se também em HABEO, FIDE, VIDI e SAIBO (sonorização com hipértese de sapio). Os radicais eruditos hodiernos atestam o passado latino: vidente, fidelidade, hábil, fácil, crédulo, egoísta, sapiência, cogitar, entre outros.

Fenômeno característico do português, o fenômeno da nasalação é atestado em bõa <BONA e ũa < UMA, formas não definitivas, posto que o feminino bõa ainda no português arcaico sofrerá desnasalação, também característica para boa parte das palavras nasaladas, como lua < luna, doa < dona(t), coroa < corona, vir < vĩir <venire; e ũa ainda passará a sofrer a influência do desenvolvimento da nasal de UNU > ũu > ũ > um, tornando-se forma feminina regularizada de um. A influência da nasal inicial explica min < MIHI, o que ainda não se efetuou nas formas mia < MEA, como forma átona a preceder o substantivo, muitas vezes escrita mha. Já em si e assi < SIC e AD SIC, por analogia da nasalidade conservada em português no antônimo non, o fenômeno da nasalação só se disseminará em pleno português moderno (século XVII), sendo que em assi há influência de si > sim. Perdon, como forma apocopada, conservou-se ao lado de perdõa < PERDONE(T).

Entre os aspectos fonéticos, releve-se a palatização em senhor e tolher < SENIOR e TOLLERE; a metátese em por < PRO, sendo comum o uso deste como prefixo na forma erudita; e o emprego tão freqüente no português arcaico das formas apocopadas em al, perdon, gran e tan < ALIU(D), PERDONE(T), GRANDE, TANTU.

ASPECTOS MORFOLÓGICOS

Uma das marcas, a denotar sobretudo a 1ª fase do português arcaico, é o não-apagamento do -d- intervocálico dos verbos, nas formas creede e fazedes (v. 7, 9 e 14), o que se consuma no início do século XV (MATTOS E SILVA, 1993: 45.), deixando reminiscências em formas monossilábicas e nasais, como ledes, tendes, intervindes e crede - este apenas recebeu a crase como diferença da forma atestada - e mantendo-se após a desinência modo-temporal -R-, como em para fazerdes e se fizerdes.

Conviviam nessa fase do português as formas duplas femininas para os possessivos: ma e mia, ta, sa, quando átonas a precederem os substantivos - de mia morte par (v. 9) - e as formas mĩa, depois desenvolvida em minha, tua e sua. Idem para os demonstrativos, sendo a presença do prefixo *accu em aqueste, aquesta, aquesto e também, embora menos freqüente, em aquesse, aquessa, aquesso, constante até o fim do período arcaico: no texto, documenta-se a forma moderna “creede que a min é ESTE mal ...de mia morte par” (v. 7-9).

Entre os pronomes indefinidos, além de “todo”, que persiste com essa forma até o século XVI, encontra-se “ende” com seu valor partitivo, derivado do latim inde, somando com outros indefinidos arcaicos, como AL (< aliud), ar, er, ren. REN, por sua vez, aparece no texto (v. 4) com seu valor original de “coisa”, embora sendo muito comum seu emprego com a acepção de “nada”, ao lado da expressão “nulha ren”.

Por duas vezes aparece “senhor” (v.1 e 10), de gênero feminino, posto que os nomes terminados em -R, -L e -S eram uniformes nos dois períodos do português arcaico.

Por fim, atente-se para os nomes atemáticos, nas palavras fé, ben, mal e par, a primeira por crase da vogal temática fee (de FIDE) e as demais por característica apócope de -E final após vibrantes, sibilantes e nasais, que se recompõe no plural para as duas primeiras - mais uma vez, o passado iluminando fenômenos do presente.

ASPECTOS SINTÁTICOS

Entre os aspectos sintáticos, é significativa a presença dos clíticos nesta cantiga. Observem-se estes empregos:

(a) se ME end´a morte non tolher (refrão)

(b) este mal, que ME vós levar fazedes (v. 8)

(c) ben, que VOS eu sei querer (v. 13)

(d) Todo VO-L´eu cuid´a sofrer (refrão)

Trata-se da hoje em dia rara apossínclise, que não é senão uma ênclise ao conectivo subordinante, posto que, em todos os exemplos, a forma clítica do verbo correspondente acha-se bem distanciada, não podendo ser confundida com a próclise, como se preferiria hoje: (a) se ende a morte não ME tolher; (b) que vós ME fazedes levar; (c) que eu VOS sei querer(-VOS); (d) todo eu VO-LO cuido a sofrer. Em (d) observe-se ainda o duplo pronome e a regência verbal.

(e) Quero-VOS eu, senhor, gran ben

(f) Pero direi-VOS ũa ren

Enquanto em (e) vê-se o canônico emprego da ênclise em início de frase, em (f) temos o “condenado” emprego de ênclise após futuro. É normal encontrar-se este tipo de ênclise, seja após o futuro do presente, seja após o futuro do pretérito no português arcaico, como comenta Mattos e Silva (1993: 132): “a presença do futuro do presente e do pretérito não é condição suficiente para a mesóclise”, embora também seja empregada.

Destaco ainda o emprego de duas conjunções: PERO < per hoc, nos versos 4, 10 e 16, tem ainda valor explicativo-conclusivo, significando etimologicamente “por isso”, tornando-se adversativo no século XV (MATTOS E SILVA, 1993: 120). O mesmo acontece com o etimologicamente temporal POIS < post, que só no final da fase arcaica se consagra como explicativo. No verso 13 “E pois por ben, que vos eu sei querer, me fazedes assi viver”, deve ser entendido como temporal-causal, podendo ser traduzido por “visto que”, sem excluir a idéia de “ depois de”.

Outro emprego, que poderia passar desapercebido, é o de “si”, na fórmula de invocação, como consta no glossário de Carolina Michaëlis, “SI Deus mi perdon”, ou seja, “assim Deus me perdoe”, mantendo-se o significado original de SIC latino.

ASPECTOS LÉXICO-SEMÂNTICOS

A família de palavras de “querer” - verbo volitivo por excelência no português e no espanhol - engloba requerer, requisição, querido, malquisto, benquisto, perquirir, pesquisa, inquisição, questão, entre outras. O significado básico provém de quaerere (procurar, buscar) e mantém-se em palavras de cunho erudito. Querer é sim um ato de vontade, próprio de quem procura e busca, por isso deseja e deseja adquirir ou ter, apetece e cobiça, demanda (procura, busca!). Assim, pesquisa é uma busca minuciosa e metódica, própria de quem quer saber. Como seria importante o estudo do Latim para o entendimento de tantos semas etimológicos, sobretudo nas palavras mais científicas, as ditas eruditas, permitindo aos alunos maior propriedade vocabular, além de uma ampliação de seu vocabulário. Evidentemente, muitas palavras sofreram deslocamentos semânticos, não passando de “arcaísmos só sob determinado aspecto”, no dizer de Coutinho (1976: 212), denominados por ele de “intrínsecos”: gráficos, como “ei” (v. 2); fonéticos, como “assi” (v. 14) e "bõa” (v. 10); flexionais, como em “ũa” (v. 4), , “fazedes” (v. 14); e semânticos. Destaco, entre estes, “cuido”, significando na cantiga “julgo”, enquanto no latim significava “medito, penso” e hoje sofre novos deslocamentos, com as acepções de “trato, tenho cuidado”, além do doublet “cogito” recuperando o significado original.

Quanto a “mal” e “ben” (v. 3 e 1), antiteticamente dispostos - enquanto vos quero gran ben, non ei de vós se non muito mal - derivaram de advérbios (< MALE, BENE), por terem sofrido a concorrência dos adjetivos BONUM e MALUM, acusativos formalmente idênticos aos nomes neutros malum e bonum que significavam o mal e o bem. Em português, advérbios e substantivos tem a mesma forma, enquanto em latim coincidiam adjetivo e substantivo.

Entre os deslocamentos semânticos, observem-se LEVAR (em latim “aliviar, levantar”), empregado no texto como “suportar, tolerar”, hoje “transportar, conduzir”; TOLHER (< tollere ) que no latim tinha, entre outras, estas acepções: “levantar, erguer; levar; tomar”, na cantiga equivale a “vedar, impedir” e hoje tem os semas de “estorvar, dificultar, embaraçar, pôr obstáculo, coibir; e AVER (“ei”) hoje praticamente substituído por “ter”, seja na acepção de possuir, seja como verbo de inventário restrito ou auxiliar. Já apontei as mudanças havidas com as conjunções PERO e POIS, salientando que hoje pero é apenas um arcaísmo. Acresça-se SI < sic, em latim e no texto significando “assim”, que passou a ser a afirmativa por excelência, nasalada, como se viu supra, por analogia com o antônimo não. Na acepção, foi substituído por “assi”, que ocorre na cantiga, resultante da composição ad + sic.

Os arcaísmos “extrínsecos”, hoje “inteiramente substituídos por sinônimos de raiz diferente” (COUTINHO, 1976: 213), que ocorrem na CA 12, destacam-se: ren (v. 4), al (v. 2), ende (refrão), pero (v. 4), si (v. 3, na acepção de “assim”), todo (refrão, na acepção de “tudo”), mal-dia (v. 15, significando “dia aziago, dia infeliz”) e as expressões “per bõa fé” e “si Deus me perdon” (v. 10 e 3).

Concluindo, pode-se dizer que toda descrição arcaica, assim como toda leitura em profundidade, requer contínuos passeios diacrônicos, reconstruindo o percurso de cada termo, as influências recebidas ao longo da história, as variações e mudanças ocorridas dessa nossa língua portuguesa, que não passa de uma etapa a mais do Latim.

Creio que aqui começa o estudo da peça literária, a cantiga de amor de Vasco Praga, de Sandim.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia Românica. São Paulo: Edusp, 2001.

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.

CÂMARA JR, J, Mattoso. História e Estrutura da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.

COUTINHO, Ismael Lima. Pontos de Gramática Histórica. 7ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.

ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1999.

MATTOS E SILVA, R.V. O Português Arcaico - Morfologia e Sintaxe. São Paulo: Contexto, 1993.

ULLMANN, Stephen. Semântica - Uma Introdução à Ciência do Significado. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1973].

Presença, 1981.

MAURER JR., Theodoro H. Gramática do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959.

PERES, João Andrade. Elementos para uma gramática nova. Coimbra: Almedina, 1984.

SARAIVA, F. R. Dicionário latino-português. Rio de Janeiro: Garnier, 1993.

SOUSA, Francisco A. de. Dicionário latino-português. Porto: Porto, [s / d.].

VÄÄNÄNEN, Veikko. Introducción al latín vulgar. Madrid: Gredos, 1975.