CANTIGA Nº 203 (CBN. 1486; CV. 1097),
de Joan Garcia de Guilhade
SINTAXE E SEMÂNTICA
NA
semiótica DE a. j. A. GREIMAS

Alzira Facco Saturnino (UEMS e UNESP)

 

Greimas, segundo Bertrand (2003: 53), define a explicação tradicional de textos como sendo a explicitação parcial das estruturas (...), desmistificação que consiste em reduzir o nível figurativo do texto a seu nível conceitual. A exigência da análise concreta na leitura desse nível prioriza o discurso, que desencadeia a formulação da problemática. A partir de então, relevamos a multiplicidade de isotopias figurativas que se cruzam, bem como as posições e as funções variáveis do(s) sujeito(s) da narrativa que o discurso vestiu. Entendemos, portanto, um complexo de valores surgidos dos planos de expressão e de conteúdo, mais enfaticamente deste, que marca no texto o andamento e a aspectualidade da significação em seus processos semânticos e sintáxicos, para gerar sentidos pertinentes a isotopias das leituras selecionadas.

Desta forma, examinamos na cantiga, através de algumas pistas de análise, possíveis pelo levantamento dos campos lexicais e semânticos, da coerência narrativa e do percurso gerativo de sentido, preconizado por Greimas e, todo o processo narrativo / discursivo e, essencialmente, figurativo da construção dos sujeitos: “poeta trovador (pressuposto, enunciador, S1 e S3)” e “dona fea” (enunciatário, S2) e suas ações. Verificamos, portanto, nos enunciados do texto, aspectos que nos remetem aos seus comportamentos, verdades, realidades, ideologias, intencionalidades, enfim, aspectos que nos evidenciam modalizações desses sujeitos de estado no que tange ao / ser / e / fazer / , que constituem a complexidade enunciativa, mesmo parcialmente observada, do discurso.

Na cantiga, as evidências, pressupostamente, explicitam uma falta (ou dívida) que o poeta trovador (isotopia gregária) sente com relação ao seu / fazer / (cantar as belezas existentes nos seres). Em outras palavras, estudamos a isotopia Beleza em oposição à Feiúra; aquela, representada pela categoria semântica da Louvação (ou, fazer um cantar) para destacar as características do sujeitodona fea” em oposição ao objeto-valor (Ov) do poeta, que é a beleza, a que gera a inspiração do poeta para compor e cantar a composição. Assim, a inspiração estimula o / fazer / do poeta, que se torna competente para compor a cantiga e, conseqüentemente, cantá-la para o sujeito destinatário e, simultaneamente, para o mundo.

Por se tratar de um texto enfaticamente narrativo, não podemos deixar de destacar, com primazia, as ações tanto do sujeito poeta quanto do sujeitodona fea”, isto é o / fazer / dos sujeitos actantes, bem como evidenciar a temporalidade (como temporalização) do discurso, marcada por esse / fazer / e pela actoralidade dos sujeitos que compõem a narratividade do texto, pois, são esses os recursos que contribuem para a ocorrência do fato: cantar paradona fea”.

 

O texto-poema CANTIGA Nº 203. (CBN. 1486; CV. 1097)

 

Ai, dona fea, foste-vos queixar

que vos nunca louv(o) em meu cantar;

mais ora quero fazer um cantar

 

         em que vos loarei toda via;

e vedes como vos quero loar:

         dona fea, velha e sandia!

 

Dona fea, se Deus mi pardon,

pois avedes (a) tan gran coraçon

que vos eu loe, en esta razon

          vos quero loar toda via;

e vedes qual será a loaçon:

           dona fea, velha e sandia!

 

Dona fea, nunca vos eu loei

em meu trobar, pero muito trobei;

mais ora um bom cantar farei,

          em que vos loarei toda via;

e direi-vos como vos loarei:

           dona fea velha e sandia!

Joan Garcia de Guilhade


 

TRADUÇÃO

 

Ai, senhora feia, foste-vos queixar

porque nunca vos louvo em minhas cantigas

mas agora quero fazer um cantar

         em que vos louvarei, todavia;

e vede como vos quero louvar:

         senhora feia, velha e louca.!

 

Senhora feia, assim Deus me perdoe,

pois tendes tão bom coração

que eu vos louvo, e por esta razão

         eu vos quero louvar, todavia;

e vede qual será a louvação:

         senhora feia, velha e louca!

 

Senhora feia, eu nunca vos louvei

em meu trovar, mas muito trovei;

entretanto, farei agora um bom cantar

          em que eu todavia vos louvarei:

e vos direi como louvarei:

          senhora feia, velha e louca!

Evidenciamos que, por meio da temporalização explícita na narrativa, ocorre uma certa continuidade do fato, negativamente acentuado pelo sintagma verbal “foste-vos queixar”, que evidencia uma anterioridade do fatonão louvar”; dos advérbiosnunca”, “agora” (“ora”), que denota o presente, e o início da transformação da “não louvação” à “louvação”, realizadas pelo sujeito enunciador “poeta” (pressuposto), marcada pelo sintagma verbalvos loarei” (louvarei) que nos remete a um futuro certo, pois se apresenta no modo indicativo no tempo futuro presente.

Existem, ainda, na narrativa, muitos elementos que evidenciam a temporalização. Observemos o quadro abaixo onde buscamos registrar o tempo da narratividade que ocorre no(s) fato(s) entre os sujeitos: “o poeta cantador” (S1 e S3) e “dona fea” (S2), que por um processo de manipulação, faz com que o S1 seja competente à performance do cantar para ela, transformando em sujeito S3.


 

QUADRO 1. - A temporalização na cantiga de nº 203 (CBN 1486; CV. 1097)

Passado (anterioridade)

Presente

(concomitância)

Presente

(continuidade)

Futuro

Foste queixar

Nunca louv(o) (passado, presente e futuro)

Nunca (não o faço ainda)

Nunca (não o farei jamais)

Nunca (em momento algum) vos eu loei

Nunca vos louvo

 

Quero fazer

Muito trobei

Ora (agora) quero

 

loarei (loarei)

 

vedes

 

quero louvar

 

tendes

 

Deus mi pardon

 

loe (louvo)

 

farei

 

quero loar

 

loarei

Contudo, além de evocarem a temporalização, os verbos marcam, prioritariamente, a ação dos atores com relação ao objeto-valor (Ov) desejado e a realização da aquisição desse Ov (o loar para Dona fea). Conforme podemos observar no quadro acima, temos, na narrativa da cantiga, enfaticamente preterido, o tempo presente, que denota o estado de transformação do S1 (então destinatário da manipulação do S2), entre um / não-fazer / e um / fazer / a louvação para esse sujeito (destinatário, “dona fea”). Desta forma, temos em mãos o programa narrativo (PN) básico que conta a transformação do S1, onde explicita um percurso de significação que nos remete, figurativamente a:S1  Ov (loaçon) desejado pelo S2.

Assim, o S2 está em disjunção a esse Ov (S2 U Ov), que, num primeiro momento, não tem competência para obtê-lo, em vista de precisar de fazer-se bela, contraponto de “fea”. Contudo, o S1 pressupõe que precisa executar um / fazer / (o cantar para Dona fea), possível pela competência desse sujeito em ver a beleza do S2 sob outro aspecto, o da “bondade”, marcado pelo sintagma verbal “avedes (a) tan gran coraçon”.

Para explicitarmos todo o processo de transformação de estado do S1, abordamos a teoria semiótica greimasiana, que preconiza a leitura da narratividade em etapas que se estruturam sob o aspecto de um percurso gerativo do sentido, conforme mostra o quadro abaixo.


 

QUADRO 2.- Percurso gerativo da significação (Greimas)[1]

 

        Sintaxe Fundamental                                       Semântica Fundamental

Estruturas

Sêmio-narrativas

 

 

FORMA

DO CONTEÚDO

 

 

 

Relação entre semas

Quadro semiótico articulado

 

 

 

 

 


 

Relação entre sememas

 / sintaxe /

(Paradimático)

Inventário de categorias sêmicas

 

Axiologia

Valores (morais, políticos, sociais)

 

Sememas antes de
combinarem-se
entre si.

 / morfologia /

 

Estruturas

Sêmio-narrativas

Superficiais

 

 

 

 

 

sintaxe narrativa de superfície =

actantes: destinador, objeto, sujeito

 

PN (Programa Narrativo)

M C P S

                                 Substância do Conteúdo

 

 

Estruturas Discursivas                                Sintaxe discursiva                    Semântica discursiva

 

O ATOR no TEMPO e no ESPAÇO                      DISCURSIVIZAÇÃO                    FIGURA

(papel temático + papel actancial)                                                           e TEMA

As duas primeiras estruturas são analisadas textualmente em dois níveis de profundidade superpostos (o profundo e o superficial, ou, fundamental e o narrativo, respectivamente). Essas estruturas, denominadas sêmio-narrativas, constituem o nível mais abstrato do percurso gerativo e se apresentam pelos componentes sintáxico e semântico.

As estruturas discursivas, “menos profundas, são encarregadas de retornar as estruturas semióticas de superfície e de colocá-las em discurso”, fazendo-as passar pela instância da enunciação (Greimas & Courtés 1979: 208). Com a textualização, enquanto disposição linear da temporalidade e espacialidade, o discurso pode intervir a qualquer momento do percurso gerativo com seus componentes figurativos ou não-figurativos, a fim de explorar o sentido do enunciado, e transformá-lo em discurso.

Essa transformação é possível por meio da sintaxe discursiva, que se constitui pelas estruturas narrativas da actorialização, temporalização e espacialização, e, por meio da semântica discursiva, com sua tematização e figurativização, que produzem os discursos abstratos ou figurativos. Esses discursos são considerados no percurso gerativo de sentido, como a forma semanticamente mais concreta e sintaticamente mais fina das articulações da significação (Greimas & Courtés,1979: 208). Por sua vez, a textualização, que entendemos ser a tematização constituída em problematização, e a manifestação do discurso fazem com que esse percurso torne-se uma construção ideal, independente das línguas ou mundos naturais em que o enunciado se apóia para investir-se e manifestar-se em discurso.

Em síntese, para construir o sentido do texto, a semiótica concebe o seu plano do conteúdo sob a forma de um percurso gerativo (Barros, 1990: 8), que se desenvolve em três patamares básicos de análise: o fundamental, que determina a oposição ou oposições, onde as oposições semânticas fundamentais assumem valores a um sujeito, que circulam entre sujeitos, em vista de se afirmar ou negar conteúdos neles expressos ou implícitos; o discursivo, que verifica as relações que se instauram entre a enunciação (responsável pela produção e comunicação do discurso) e o texto-enunciado. Neste patamar, as oposições fundamentais com seus valores narrativos apresentam-se sob a forma de temas e / ou concretizam-se por meio de figuras.

Segundo Greimas (1975: 149), a análise estrutural de um texto poético busca explicar o efeito de sentido que se encontra na origem de sua percepção emotiva. Através da aparente obscuridade da exposição sintagmática, oferece ela a possibilidade de descobrir a coerência e a clareza de sua organização paradigmática, tal como se manifesta em todos os níveis ao mesmo tempo: fonêmico, gramatical, semântico, prosódico. Portanto, ao empreender uma análise de um texto literário, Greimas (1975: 150) preconiza que, seja qual for o gênero, o texto constitui-se em sistema fechado sobre si mesmo, co-expressivo a seu próprio grupo de transformação. Enfatiza que, ao contrário do romance, que toma seu tempo e no qual a composição se privilegiada em detrimento dos outros planos, cada obra poética, voltada para si mesma, atua em todos os planos ao mesmo tempo: fônico, gramatical, semântico, prosódico, entre outros possíveis. Para Greimas, submeter um poema à análise estrutural equivale reconhecê-lo como discurso de uma linguagem em segundo grau, que reorganiza o significante e / ou o significado (ibidem, p. 150). Assim, esquematiza esta linguagem da seguinte forma, observando as transformações pelas posições das flechas:


 

 

Caixa de texto: Significante            /         Significado     1º grau
 
 
 1             2                 3                 4 
Significante            /             Significado     2º grau
 

 

 


 



 

A segmentação textual é uma estratégia de leitura que Greimas & Courtés (1979: 390) preconizam se constituir na primeira etapa do estudo analítico com o texto-discurso, e se realizar nas partes menores do texto-objeto. Apesar das dificuldades que a segmentação do texto da cantiga nos apresenta, em vista de estar num plano de expressão verbal complexo, a abordagem ao sentido feita em partes possibilita-nos a percepção distinta das modalizações de estado ser / parecer e as de / fazer / (manipulação, competência, performance, sanção) dos sujeitos envolvidos e as relações euforia / disforia entre elas, permitindo-nos, conseqüentemente, uma visão do conjunto e da estrutura global do discurso, que nos faz compreender as premissas norteadoras da leitura do discurso.

Existem vários critérios que fazem a organização da segmentação dos elementos a serem analisados; contudo, asseveramos a sugestão de Greimas (1993: 19), em recorrermos, de início, aos critérios referentes à temporalidade e à espacialidade, presentes em todo discurso pragmático, por relatarem acontecimentos ou fatos que marcam, no texto, os aspectos espácio-temporais, que possibilitam a narratividade ao texto. A cantiga de estrutura pragmática narrativa permitiu-nos trabalhar com os recursos especificamente textuais lingüísticos estilísticos como: léxico preciso que fala por meio de metáforas, metonímias, hipérboles, entre outras figuras de linguagem (elementos da expressão) e elementos da organização textual quanto à forma, constituída por versos e estrofes que explicitam um discurso direto entre os sujeitos, poeta e dona feia, para vestir os planos de significação (expressão e conteúdo) que, combinados, evocam o plano de manifestação e, conseqüentemente, o discursivo.

Na cantiga, por exemplo, temos com relação ao léxico preciso os adjetivos “fea, velha e sandia” para possibilitar, necessariamente, a descrição do Ov que promove a busca do S1 e S2. Temos também a expressão metafórica “gran coraçon” e hiperbólica “tan gran coraçon” que gera a transformação do S1 em um outro sujeito (S3) que aceita / fazer / a “loaçon” paradona féa”.

No nível discursivo, os critérios que enfatizam a disjunção actorial, temporal e espacial possibilitam-nos a apreensão do texto como um todo, pois fundamentam-se nas oposições e / ou diferenças que promovem o pressuposto e o implícito, identificados por meio do posto, nos enunciados nocionais do texto. Neste caso, temos o elemento “fea” que se opõe à “beleza (pressuposta pela expressão “tan gran corazon”) ou oposição gregáriabeleza física” x feiúra e “beleza física” (externa e concreta) x “beleza espiritual” (interna e abstrata).

A segmentação textual para a leitura semiótica da cantiga estruturou-se conforme o seguinte esquema:

1.                       Introdução – 1ª estrofe

Ai, dona fea, foste-vos queixar

que vos nunca louv(o) em meu cantar;

mais ora quero fazer um cantar

         em que vos loarei toda via;

e vedes como vos quero loar:

         dona fea, velha e sandia!

Explicitamente introdutória do discurso, essa estrofe utiliza-se à composição do sentido expressões sintaticamente dialógicas do enunciador (interlocutor) com o enunciatário (interlocutário), em que de início inicia a narrativa expressando os seus elementos básicos: temporalidade (passado, presente e futuro), actoralidade (“Dona fea” (enunciatário-interlocutário) e o poeta trovador (enunciador-interlocutor); a ação (“queixar, louv(o), cantar, loarei), para dinamizar o discursivo.

2. Desenvolvimento composto pela estrofe e pelos 4 primeiros versos da 3ª estrofe.

Dona fea, se Deus mi pardon,

pois avedes (a) tan gran coraçon

que vos eu loe, en esta razon

          vos quero loar toda via;

e vedes qual será a loaçon:

           dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei

em meu trobar, pero muito trobei;

mais ora um bom cantar farei,

em que vos loarei toda via;

Constituído de figuras de linguagem que denotam a transformação do Sujeito de estado (S1) a um / parecer / condoído pela falta que cometera o sujeito de fazer (S1 antes da transformação).

Na 2ª estrofe ocorre, implicitamente em oposição ao termo “fea”, a categoria semântica Beleza (elemento que representa o Ov “inspiração” do S1, obviamente como recurso expressivo para estimular a produção da louvação, ou seja, a composição de um canto para o S2 (dona fea). Para tanto, o S1 transforma o conceito de “beleza” à significação “bondade explícita na expressão “avede (a) tan gran coraçon”, que, a nosso ver, denota como a um clichê que evidencia “um ser compreensivo, bom, solidário, confiável, amável, entre outros aspectos que descrevem uma pessoa muito bela espiritualmente).

Nesta estrofe também aparece a categoria semântica do arrependimento, denotada pelo sintagma verbal “se Deus mi pardon”, expressão que denota a falta, ou seja, o não reconhecimento de outras belezas identificáveis num sujeito feio, velho e louco (fea, velha e sandia). Estas idéias (belezas identificáveis) são reforçadas pelo sintagma verbalque vos eu loe, en esta razon”.

Na 3ª estrofe, o S1 descobre a importância da louvação à “dona fea” tanto para o S2 quando para ele mesmo (S1), pois será uma cantiga diferente das que tem feito: “Dona fea, nunca vos eu loei / em meu trobar, pero muito trobei;” e, qualifica-a “mais ora um bom cantar farei,”; entretanto, reforça a sua ideologia de “beleza” ao reafirmar (inclusive como a um refrão) que explicitará em seu discurso que a musa da sua inspiração para aquela cantiga é “fea, velha e sandia”, mas ela “avede (a) tan gran coraçon”.

3. Como conclusão, tanto das estrofes como da narrativa da cantiga, ocorre, conforme dito como a um refrão em todas as estrofes, os versos, “e vedes como vos quero loar: / dona fea, velha e sandia!” (1ª estrofe); “e vedes qual será a loaçon: / dona fea, velha e sandia!” (2ª estrofe), e, “e direi-vos como vos loarei: / dona fea velha e sandia!” (3ª estrofe); denotadores de estado do S1 em que explicita a transformação do / parecer / para o / ser / em oposição ao / não parecer / para o / não ser / trovador de “dona fea”.

São versos que reafirmam a falta, mas não sua permanência da “loaçon”, como também a postura do trovador diante da problemática:“ter que compor uma cantiga paradona fea” (S2) da narrativa, pois esta é o Ov deste sujeito actante.

As estrofes 2ª e 3ª denotam dois programas narrativos nucleares do sujeito x anti-sujeito (S1 e S3, respectivamente); logo, explicitam-se nelas dois percursos narrativos cujos Ov são, respectivamente, a louvação e a inspiração (a beleza-bondade) do poeta trovador (Sujeito do / fazer / ).

Esses programas narrativos instigam as intencionalidades do trovador sobre a compreensão de comoloar”, ou seja, “ter que fazerpara compor a cantiga.

Desde a introdução, a cantiga é essencialmente um diálogo direto livre entre dois protagonistas: sujeitos do / ser / e do / fazer / (destinador / interlocutor e destinatário / interlocutário). Contudo, há uma certa subjetividade, em discurso direto, que são envolvidos outros sujeitos como a simultaneidade de postura do S1 e seu modo de pensar, marcado pela repetição de como louvará “dona fea”.

Entretanto, para chegarmos ao entendimento desses contrapontos, iniciamos a leitura da cantiga pelas estruturas sêmio-narrativas em que, por meio da sintaxe e da semântica narrativas, procuram explicitar, sintagmaticamente, os programas narrativos (PN) dos sujeitos (S1, S2 e S3) constituídos de um enunciado de / fazer / que rege um enunciado de estado, representados pelas formas descritas a seguir:

PN = F [S1  (S2  Ov)

PN = F [S1  (S2 Ov) S3

onde: F = função;

S1 = sujeito de fazer (poeta trovador);

S2 = sujeito de estado (dona fea);

S3 = sujeito de estado e de fazer (poeta trovador transformado)

O = objeto (suscetível de receber um investimento semântico sob a forma de v = valor)

Ov = objeto-valor

* = enunciado de fazer

(   ) = enunciado de estado

 = função fazer (resultante de conversão da transformação).

*           = função (conjunção ou dispersão) que indica o estado final, a conseqüência do / fazer / .

A função / fazer / é representada pleonasticamente pelos dois símbolos: F e .

Greimas & Courtés (1979: 52) explicitam que as descrições e os modelos são possíveis pela formulação conceptual, através da análise semântica comparativa, dos elementos envolvidos no texto, que denotam conceito exaustivamente interdefinidos para garantir a sua participação na significação do enunciado e do texto.

Entendemos narrativa como o discurso de caráter figurativo, que se constitui de personagens que realizam ações, inscritas em coordenadas espácio-temporais. Na concepção propiniana, narrativa é como uma sucessão temporal de funções (no sentido de ações) (Greimas & Courtés, 1979: 297), que promovem a dinamicidade dos elementos que comportam essas funções, internas no dito em curso. Assim, concebida como figurativa e temporal, a narrativa define-se simples, que pode ser reduzida a uma frase analisável como a passagem de um estado anterior a um estado posterior, possibilitada pela operação de um / fazer / (ou processo); conseqüentemente, a narrativa simples passa a gerar um programa narrativo.

Greimas & Courtés (ibidem, p. 294) asseveram que, no nível das estruturas discursivas, “a narrativa designa a unidade discursiva, situada na dimensão pragmática, de caráter figurativo, obtida pelo procedimento de debreagem enunciativa”.[2]

Entendemos, portanto, coerência narrativa, os elementos do enunciado que se relacionam conceptualmente num determinado tempo e espaço, marcados pelas ações enunciativas (promovidas pelos actantes da enunciação) e registradas pela debreagem enunciva[3]. Na cantiga, a coerência narrativa se faz presente desde o vocativo “Ai, dona fea,”, por se tratar de um recurso que denota o diálogo entre personagens, no caso, o trovador e sua inspiração (“dona fea”, denotando a falta pela presença da interjeição “Ai” que comporta um conjunto de significados como o sofrimento, a dor, o pesar, a necessidade do perdão, entre outros).

Conforme pudemos observar nas explanações acima, em semiótica, sintaxe e semântica são elementos congruentes na geração do sentido. A lógica concebe sintaxe como a que se preocupa em descrever as relações que estabelecem os elementos constitutivos da palavra, da frase, por meio de regras de construção. A semiótica preconiza que o estatuto de uma sintaxe não pode ser determinado senão em relação à semântica (ibidem, p. 431), pois, enquanto, a primeira é elaborada sem nenhuma referência à significação, a segunda, que se preocupa com a sintaxe conceptual, reconhece as relações sintáticas como significantes (como pertencentes à forma do conteúdo), mesmo se são abstratas e assimiláveis as relações lógicas (ibidem, p. 431). Mas, as duas sintaxes (a formal e a conceptual) tratam do estudo da sintaxe da frase, verificando-lhe as combinações, as substituições e as equivalências que ocorrem na unidade sintagmática. Contudo, ao direcionar a leitura do sintagma, da frase à narratividade, a sintaxe conceptual (ou semiótica) explicita organizações sintagmáticas mais amplas, pois, nessa concepção, a uma frase de superfície, podem corresponder duas ou mais frases de nível profundo.

A análise dessa cantiga se fez por meio da verificação da sintaxe em concomitância com a semântica, a fim de enfatizar uma visão acuidada de como os sujeitos e objetos são concebidos no percurso com seus respectivos valores em relação aos sujeitos que atuam na narrativa do texto. Vale relembrar que a construção do sentido sob a forma de percurso gerativo concebe o plano do conteúdo em duas estruturas básicas: além das sêmio-narrativas (profundas e superficiais) explicita também as estruturas discursivas. As sêmio-narrativas atuam com o conteúdo enquantosignificado” constituído de “substância e forma”, e, a discursiva, com a “substância do conteúdo”.As sêmio-narrativas profundas (nível fundamental), que é o abstrato, alicerçam o narrativo; é onde ocorre a significação como uma oposição semântica mínima, para fazer germinar outras oposições semânticas que constituirão o sentido do texto.

Nessa cantiga de Guilhade, a categoria semântica fundamental é Feiúra x Beleza. A “feiúra” manifesta-se, no texto, de várias formas como: “dona fea”, “velha” “sandira”, “se Deus mi pardon”, “todavia”, “como vos quero loar”, “qual será a loaçon”, “como vos loarei”. Essa categoria é determinada como negativa ou disfórica para os sujeitospoeta trovador” (S1), “poeta trovador (transformado) (S3) e “dona fea” (S2) e, ora eufórica (positiva) ora disfórica (negativa) para os sujeitos (1 e 3). O conceito de Beleza para o S1 é disfórica tanto para o S2 como para o S3. O primeiro está disfórico porque vive na verdade, no / ser / “fea” em oposição ao / não-ser / bela para estimular o / fazer / do S1, e, para o segundo (S3),a beleza é disfórica porque vive na mentira, na ilusão do parecer / não-ser solidário com o primeiro sujeito, como também porque vive, pressupostamente, numa verdade de beleza transformada quanto às características que a constituem. Assim transformada, a Beleza se faz eufórica tanto para o S2 quanto pra o S3, como também se faz eufórica a “feiúrapara os três sujeitos (1, 2 e 3). No quadrado semiótico que denota a relação entre semas temos:

Caixa de texto: VERDADE
FEIÚRA
BELEZA
                      SER                                            PARECER
                     FEA                                                  BELA
 
 
SEGREDO                                                                              MENTIRA
                                                                                               (simulacro)
 
                      NÃO-PARECER                       NÃO-SER
                      NÃO-BELA                              NÃO-FEA
FALSIDADE
BELEZA
FEIÚRA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Além dessas relações, ocorre nesse nível um percurso que entre essas categorias: da Feiúra (eufórica) à Beleza (disfórica), os sujeitos da narratividade passam pela não-feiúra (ou beleza ilusória), ou estado transitório (não-euforia) entre Feiúra x Beleza (transformada).

 

 

 


 

A negação da Feiúra aparece na cantiga, sobretudo, no clichê “tan gran corazón”, conteúdo mínimo fundamental à negação da feiúra ou a presença da beleza ilusória, sentidos como eufóricos, e, a afirmação da beleza disfórica. Assim temos, o sentido de Beleza transformado pelo clichê parabondade”. Observemos o raciocínio lógico da transformação com relação aos sujeitos (2 e 3):

 

 

 

 


 

Assim, no segundo nível, o das estruturas sêmio-narrativas superficiais, o elemento das oposições semânticas fundamentais assume valor pelo S1, transformado em S3, representado pelo Ov, pressuposto, “bondade”pertencente ao S2. (S2 Ov (beleza-bondade). Esse valor, para o S3, em contraponto ao valor (Beleza) do S1, trabalhado sob a forma de oposição determina, pressupostamente, a narratividade dos estados e fazeres desses sujeitos (S1 e S3). Com relação às funções de / fazer / do S3, figurativamente temos:.

S1 (poeta enunciador – sujeito do fazer); S2 (dona fea – sujeito de estado); S3 (poeta trovador transformado); Ov1 (objeto-valor do S1 – beleza x feiúra); Ov2 (Objeto-valor do S2 – bondade); Ov3 (Objeto-valor do S3 – beleza (bondade) x feiúra); S2

Segundo Barros (1990: 16),

A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o fazer do homem que transforma o mundo. Para entender a organização narrativa de um texto, é preciso, portanto, descrever o espetáculo, determinar seus participantes e o papel que representam na historiazinha simulada.

Para essa semioticista, a partir dessa concepção de sintaxe, concebe narrativa como mudança de estados, operada pelo fazer transformador de um sujeito que age no e sobre o mundo em busca dos valores investidos nos objetos, como também a concebe portadora da sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos. O enunciado da sintaxe narrativa identifica-se, portanto, pela relação de transitividade entre dois actantes (sujeito e o objeto) que define os laços desses elementos entre si. As relações (ou funções) transitivas se manifestam por meio de junção e transformação, a fim de diferenciar os estados e as transformações do sujeito em relação ao objeto.

Conforme observamos, as operações sintáxicas, também chamadas de transformações, mostram-se pelos estágios de “negação” e “asserção”. A negação explicita termos contraditórios; a asserção reúne-os, situando-os no eixo dos contrários e no eixo dos subcontrários. Assim, esta sintaxe é totalmente relacional e, simultaneamente, conceptual e lógica. Esta sintaxe, para constituir uma oração, combina o predicado a uma série de argumentos, ou, une um verbo de ação a um sujeito agente que age sobre um objeto ou sujeito paciente; assim, a oração manifesta uma ação-processo. Esse esquema relacional, dotado de um conteúdo, pode receber diversos investimentos semânticos.

S1 → S2    Ft = (S1 ∩ S2) → S1 = S3

S1 – poeta trovador

S2 – dona fea

S3 – sujeito de estado (S1 transformado em trovador de dona fea)

Ft – função transformadora

∩ – conjunção

→ - transformação

Contudo, vale destacar que ocorrem no texto elementos que denotam a não-transformação de dona fea em portadora de beleza física. Para demonstrar essa não-transformação, ou seja, o S2 continua a ser “fea” para o S1 e para o S3, podemos observar nos versos que finalizam as estrofes do poema como a um refrão, marcando assim a continuidade do fato permanenteser fea” reafirmando, também, o Ov do S1 (a busca da beleza física para louvar (compor e cantar versos). O Ov (loaçon) apresentado nesta categoria é virtual para o S2, porque sendo “fea, velha e sandia”, o poeta trovador, provável possuidor deste objeto, poderá não oferecê-lo a esse sujeito, inclusive, poderá ser este descartado. Logo, o que o S2 busca é o oposto do que lhe apresenta o S1, permanecendo, assim, aquele em um mundo, totalmente, ilusório, porque não passa a pertencer ao mundo do poeta (S1), mas se apresenta, sob outro aspecto de valor, ao mundo do S3.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho será finalizado com a apresentação de um sistema de distribuição das modalidades encontradas na análise da cantiga, uma vez que, para tanto, apoiamo-nos na intratextualidade, ou seja, o texto dialogando com ele mesmo, possível por meio da visão semiótica baseada na teoria de A.J. Greimas. Estas modalidades serão distribuídas em duas seqüências, sendo que a primeira delas representará o percurso do S1 (o poeta trovador antes da transformação), numa visão não-disjuntiva (eufórica) a um Ov que acredita ser a única inspiração para compor trovas e, a segunda, no percurso do S3, então competente para compor o cantar e cantar para o S2 (dona fea).

É um texto muito interessante onde encontramos um sujeito, sincronicamente, atuando em dois papéis, mas sem deixar as características do primeiro, fato que nos estimulou à análise da actoralização do segundo sujeito, pressuposto (S3) que aceita fazer a louvação à Senhora Feia, velha e louca em vista de observar neste sujeito um outro valor, quem sabe, o verdadeiro da real beleza que o ser humano precisa ver e que, hoje, somente sendo poeta, que o íntimo, que a alma do seu próximo, consegue enxergar.

 


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

BERTRAND, Denis. Caminhos da Semiótica literária. 2003.

CHABROL, Claude (Org.) Semiótica narrativa e textual. Tradução de Leyla Perrone Moisés, Jesus Antonio Durigan (e) Edward Lopes. São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1977.

D’ÁVILA, Nícia Ribas. “Renart e chanteclerc” – visão semiótica baseada na teoria de A.J. Greimas. Leopoldianun – Revista de Estudos e Comunicações. [Santos]: Unisantos da Universidade Católica de Santos. Vol. XVI, nº 47. 1990. Santos, p. 23-41.

GREIMAS, Algidas Julien. Os atuantes, os atores e as figuras. Trad. de Jesus Antonio Durigan. In: Chabrol, Claude (org.). Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1977, p. 179-195.

––––––. Maupassant, a semiótica do texto: exercícios práticos. Trad. de Terezinha Oenning Michels et alii. Florianópolis: UFSC, 1993.

–––––– et alii. Ensaios de semiótica poética. Trad. de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1975.

–––––– & COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. Trad. de Alceu Dias Lima et alii. São Paulo: Cultrix, 1979.


 


 

[1] Codificado por Nícia Ribas d’Avila

[2] Projeção dos actantes da enunciação, no momento do ato de linguagem ou do seu simulacro, no interior do discurso pelo enunciado.

[3] Projeção dos actantes do enunciado no discurso.