POMPÉIA: UM RELICÁRIO DO LATIM VULGAR

Eliana da Cunha Lopes (FGS e USS)

Baseando-se no corpus escrito nas paredes da cidade de Pompéia, destruída pela erupção do vulcão Vesúvio , em 79 de nossa era, o presente trabalho buscará mostrar que as mensagens grafadas a carvão, nos muros da cidade arrasada, transformaram-se em preciosíssimo relicário para os pesquisadores e estudiosos do latim vulgar.

Os graffiti, do latim graphium, ou inscrições parietais encontrados nas ruínas de Pompéia contêm, em suas estruturas, caracteres lingüísticos que nos permitem, não só uma visão da sociedade romana antiga mas também nos auxiliam, como fonte riquíssima, no estudo e aprofundamento do latim vulgar.

São mensagens baseadas em diversos temas como convites sedutores, conselhos, declarações de amor ou ódio, inveja, erotismo, súplicas etc., que nos mostram a linguagem corrente das classes incultas de Roma da época.

Nosso trabalho é uma pesquisa ainda em fase de desenvolvimento. São apenas algumas citações baseadas, exclusivamente, no latim vulgar. Sabemos que há entre os graffiti pompeianos textos do poeta latino Públio Ovídio Nasão mas estes textos clássicos, para o presente trabalho, não nos interessam.

Há exatamente 2025 anos, no dia 24 de agosto de 79 de nossa era, data que deve ser relembrada por pesquisadores e estudiosos do latim vulgar, uma chuva de cinzas e pedra- pomes e sucessivos tremores de terra transformaram o dia, na cidade da Itália, às margens do Mar Tirreno, em noite e destruíram tudo e todos que se opunham a sua passagem.

Pompéia, cidade produtora de vinho e azeite, viveria, naquele 24 de agosto, um dia festivo. Seus habitantes assistiriam a um espetáculo teatral com atores vindo de Roma que se apresentariam no Grande Teatro, a partir das 11h da manhã prolongando-se o espetáculo, como era de costume, até a noite. Passava das 10h da manhã. As arquibancadas quase repletas: os vendedores ambulantes, com seus cestos de pão e doces, dirigiam-se para o teatro. Nos bares ao ar livre, as thermopolia as últimas taças de posca eram saboreadas. Os comerciantes cerravam as últimas portas de seus estabelecimentos.O dia ensolarado e quente convidava ao lazer.No auge dos preparativos para a festa, ouve-se uma explosão. Era apenas o início.A população perplexa visualiza o topo do Vesúvio. O vulcão partira-se em dois e, do seu interior, rompe-se uma tocha de fogo. Inacreditável!!! Os habitantes de Pompéia se entreolhavam e com uma pergunta / resposta sufocada na garganta constataram: É uma erupção!.O Vesúvio que adormecera por pelo menos 900 anos estava ali, diante deles, dando sinal de vida e de opulência. Na manhã seguinte (25 de agosto), quando a cidade já se encontrava sob os entulhos vulcânicos, o Vesúvio despejou toda a sua fúria em forma de gases quentes (vapores clorídricos). A temperatura, segundo pesquisadores, atingiu a marca de 600 graus Celsius.Todos os habitantes de Pompéia e Herculano foram soterrados na mais terrível erupção vulcânica. Na época, Pompéia possuía entre 15 e 20 mil habitantes. Acredita-se que, por serem constantes os terremotos nesta região, os habitantes não perceberam a gravidade de tal fenômeno.Os pompeianos, na tentativa de fuga pelas ruas, foram mortos por asfixia e queimados, outros, no seu próprio leito. Os que sobreviveram, foram tragados no final da tarde do dia 25. Foi o golpe fatal, nada restando das cidades províncias.

As cidades de Pompéia e Herculano, no sul da Itália, permaneceram, durante muito tempo, soterradas pela erupção violenta do vulcão,. sob metros e metros de cinzas e pedras.

Anos mais tarde, os pesquisadores efetuaram escavações na área soterrada e descobriram um vasto material arqueológico e lingüístico.

Em Pompéia, dentre os “achados”, permaneciam intactos os famosos graffiti, inscrições populares escritas, em sua maioria, a carvão. Esta descoberta trouxe, para o latim vulgar, uma contribuição riquíssima e ímpar.

A vantagem desta descoberta deve-se ao fato de que as mensagens têm um caráter lingüístico e social , revelando duas faces de uma mesma moeda. De um lado, forneceu-nos uma visão da forma de vida da sociedade de uma cidade da provincial, de outro, levou-nos ao estudo das alterações fonéticas, morfológicas e sintáticas de uma das fases da língua latina: o latim vulgar.

As inscrições de Pompéia foram estudas por Väänänen, Le latin Vulgaire des Inscriptions Pompéiennes, Helsinki,1937 (2ª ed.,1958) e reunidas no Corpus Inscriptionum Latinarum, conhecido pela sigla CIL, obra grandiosa editada pela Academia das Ciências de Berlim, iniciada em 1863 e ainda incompleta.

Dos dezesseis volumes que compõem esta obra, que reúne inscrições de diversas cidades e regiões, o quarto volume é de grande relevância. Nele, encontram-se registradas as inscrições parietais, gravadas com estiletes, e em menor escala a carvão, em paredes, monumentos, muros, banheiros etc.

Dos. graffiti encontrados na região destruída pelo vulcão , os que nos interessam são as inscrições de cunho popular, não literária e muitas das vezes fragmentária, mas que expressam, com clareza, a linguagem cotidiana dos soldados, colonos civis e militares e comerciantes da época, os falantes natos do latim vulgar. Estas inscrições registram, também, o modo de vida dos habitantes da província mostrando os resultados dos jogos de dado, declarações de amor ou ódio, inveja, erotismo, conselhos, súplicas etc

Os graffiti contribuíram para o estudo filológico e lingüístico na reconstituição do latim vulgar falado.A epigrafia, ciência que se ocupa da leitura, interpretação e datação das inscrições antigas em material resistente como pedras, metal, argila, cera etc em muito contribuiu para o estudo da reconstituição do latim vulgar.

O latim vulgar (<vulgo (latim) = povo) ou latim corrente, em oposição ao latim clássico, que é a norma culta do latim, está documentado em textos epigráficos, em textos literários e indiretamente nas línguas românicas.Não conhecemos na totalidade o latim vulgar.O que há, na verdade, são vestígios através dos quais os filólogos tentam reconstituir o que teria sido o latim vulgar.

O latim vulgar era uma língua falada em Roma e suas províncias, não havendo nenhum documento oficial escrito só nessa variedade lingüística .Concentra-se neste fato a maior dificuldade encontrada para a reconstituição desta forma lingüística.

A partir do corpus escrito nas paredes da cidade de Pompéia, analisaremos algumas inscrições à luz da morfologia, sintaxe e fonologia.

Há cerca de 15000 inscrições parietais recolhidas de Pompéia registradas no CIL. Os graffiti são bastante numerosos e diversificados, pelo hábito dos seus habitantes de todas as faixas etárias de rabiscarem as paredes com carvão. O nível de língua das inscrições parietais pompeianas varia bastante. Os habitantes locais zombavam do próprio hábito de rabiscarem as paredes numa linguagem bastante literária, conforme atesta o trecho abaixo:

Admiror, paries, te non cecidisse ruinis, qui tot scriptorum taedia sustineas.

(CIL, IV, 1904)

Admira-me, parede, não teres caído em ruínas, tu que agüenta o tédio de tantos escritores.

Entretanto, ao nosso trabalho interessam apenas os textos que revelam traços típicos do latim vulgar,como no exemplo infra:

Quisquis ama, valia,

Peria qui nosci amare!

Bis tanti peria quisquis

Amare vota.

CIL,IV, 1173)

Viva todo aquele que ama, pereça quem não sabe amar! Duas vezes pereça com tanta intensidade todo aquele que proíbe o ato de amar

Nele, cabe ressaltar os seguintes elementos:

a) a alta expressividade das antíteses empregadas:

valeat x pereat

amat x nescit amare

amat x amare vetat

b) as consoantes finais da desinência de terceira pessoa do singular (-t) dos verbos de modo finito apocopavam-se.

ama (-t);

valia (-t) ( = valeat)

peria (-t) ( = pereat);

vota (-t);

nosci (-t) ( = nescit);

c) a força da analogia na linguagem corrente em non scit empregado pelo tradicional : nescit

(ne-scio,-ivi,(-ii),-itum: não saber.);

d) a ultracorreção (ou hiperurbanismo) no uso do genitivo de preço:

bis tanti pelo usual bis tanto;

(o genitivo de preço é usado em concorrência com o ablativo de preço para indicar que a avaliação é feita de um modo mais geral, sendo particularmente freqüente com o genitivo de adjetivos e pronomes indefinidos quantitativos como: tanti, quanti etc)

e) uso intenso de arcaísmos:

vota < veta (-t);

f) há no vocábulo valia a evolução do hiato -ea para o ditongo -ia

valia (ditongo)<valea (hiato);

(valeo,-ui,-itum) (e longo de estado): ser forte, ter saúde.(vale!);

antevendo a palatalização que há em português, conforme vemos a seguir:

valia > valha

l(e,i) + vogal > -lh-: palea > palha;

folia > folha;

juliu > julho;

Tomemos como segundo exemplo para nossa exposição:

Talia te falant utinam mendacia, copo:

Tu vedes acuam et bibes ipse merum.

(CIL, IV, 3948)

Oxalá tais mentiras te enganem, taberneiro:

vendes água e bebes tu mesmo vinho puro

Vejamos nele algumas características fonéticas do latim vulgar:

a) no vocábulo copo, houve a redução do ditongo / au / - em vogal / -o- / :

caupo > copo, fenômeno lingüístico de origem rústica (rusticismo) e bastante difundido, como ocorrem nos seguintes exemplos:

paupere > popere > pobre (port);

lautus > lotus;

cauda > coda > coa (arcaica);

fauce > foce > foz (port);

laudare > lodare > loar (arcaica);

audire > odire > oir (arcaica)

O ditongo / au / conservou-se em algumas línguas românicas, como no velho provençal e no romeno:

audit (provençal) antigo -au;

aude (romeno);

No português o ditongo /au/ evoluiu para /ou/ auru > ouro.

Em certas partes de Portugal, o ditongo /au/ alternou-se com /oi/

ouro > oiro.

touro > toiro

b) síncope da nasal -n- no vocábulo vedes:

vendes > vedes

Este fenômeno é verificado também em algumas línguas românicas, como no português (e no gascão).

lana > lã;

manu > mão

sermones > sermões;

orphanu > órfão;

síncope com outras consoantes:

legale > leal ;

malu > mau;

veritate > verdade;

c) a indistinção entre / i / e / e / átonos:

vendes > vendis

bibes > bibis

Bibis e vendis são formas do presente do indicativo, enquanto vendes e bibes , do futuro, abolindo assim o elemento distintivo.Nenhuma língua românica herdou essa forma do futuro em -e-.

d) a ultracorreção (hiperurbanismo): preocupação de falar bem que redunda em erro; palavra, frase ou outro uso lingüístico incorreto, resultante de ultracorreção, como no exemplo a seguir:

acuam > aquam;

no latim vulgar substituía-se a lábio-velar / qu- / pela velar / c- / com som de / k- / .

anticus< antiquus;

ecus< equus;

como< quomodo

Após analisarmos uma das fontes do latim vulgar, os graffiti, devemos deixar claro que o latim vulgar não morreu, mas simplesmente modificou-se no tempo e no espaço. As línguas românicas são, em suma, a fonte mais ampla de que dispomos acerca do latim vulgar. Segundo nos deixa registrado Ernesto de Faria, na Fonética Histórica do Latim, 1970: p:11

O Latim, língua dos romanos e relicário do pensamento de Roma e de sua brilhante civilização, pertence à grande família das línguas indo-européias. Cumpre, porém, notar que essa língua polida dos vigorosos escritores do período áureo da literatura latina não saiu já,assim, burilada do primitivo indo-europeu. Fruto amadurecido de uma prolongada elaboração, representa o momento de seu maior esplendor. Este momento, pois, no decurso de sua alongada história, fora precedido de vários estágios perfeitamente demarcados , e a ele se seguiram outros estágios subseqüentes, que iriam culminar na formação das línguas românicas hodiernas, as quais nada mais são do que o próprio latim transformado através do tempo e do espaço.

Algumas considerações sobre o latim vulgar

Bruno Bassetto, em seu livro Elementos de Filologia Românica (2001:p.92-99), no capítulo 3 Origem das línguas românicas, define de forma clara e precisa as características do latim vulgar. Diz-nos o autor:

... as línguas românicas provêm do latim vulgar (...) Para caracterizar o latim vulgar é prático e concludente compará-lo com o literário (...) .desse cotejo conclui-se que o latim vulgar, em relação ao literário. É mais simples em todos os níveis, mais analítico, mais concreto, mais expressivo e mais permeável a elementos estrangeiros.

A diferença entre o latim vulgar (vulgo = povo) e o latim clássico (literário) podemos concluir que o primeiro é mais simples e que se torna mais analítico e flexível pelo uso de preposições, advérbios,pronomes e verbos auxiliares. A diferença entre ambos dá-se em quatro campos distintos a saber: no vocabulário, na morfologia, na fonética e na sintaxe.

No campo do vocabulário , podemos citar:

a) o emprego de palavras diferentes para significar a mesma idéia que havia no latim clássico

ignis (latim clássico) > focus; edere (latim clássico) > manducare (latim vulgar); pulcher (latim clássico) > bellus (latim vulgar).

No campo da fonética:

a) o latim vulgar evitava as palavras proparoxítonas

viridis > virdis; calidus > caldus;frigida > fricda; masculus > masclus

b) a prótese da vogal i, nos grupos consonantais: st / sc / sp quando iniciais

spiritus > ispiritus; scribere > iscribere; stare > istare

c) freqüente assimilação de fonemas

ipse > isse;persicum > pessicum;dorsum > dossum

d) a confusão propiciada pelos fonemas b / v

servus > .serbus; baculus > vaclus; alveus > albeus

e) pela transposição do acento tônico em circunstâncias especiais

integrum > integrum; cathedra > cathedra; mulieris > mulieris

No campo da morfologia, assinalemos:

a) as cinco declinações do latim clássico foram reduzidas a três no latim vulgar. A quinta declinação confundia-se com a primeira declinação; a quarta com a segunda.

luxuries,-ei (5ª) luxuria,-ae (1ª);

materies,-ei (5ª) materia,-ae (1ª)

dies,-ei (5ª) dia,-ae (1ª)

glacies,-ei(5ª) glacia,-ae (1ª)

domus,-us (4ª) domus,-i (2ª)

Em conseqüência , uma parte das línguas românicas herdou a distribuição do léxico nominal em três grupos, baseando-se nas três declinações do latim vulgar, como o português que abarca em sua morfologia nomes da primeira declinação em -a (mensa > mesa); da segunda declinação em -o (libru > livro) e da terceira declinação em -e ou consoante (occidente > ocidente); feroce > feroz.

b) a preferência pelas formas analíticas do superlativo e do comparativo em substituição as sintéticas

altior > plus ou magis altus;iustissimus > .multum iustus

c) a redução das quatro conjugações existentes no latim clássico para três no latim vulgar. A terceira conjugação com vogal temática -e- (breve), passou para vogal -e- (longa) , unindo-se com a segunda conjugação . Alguns verbos da terceira conjugação passaram para a quarta conjugação.

capere (3ª) (v.t.-e- breve) > capere (2ª) (v.t.-e- longa) ;

legere (3ª) > legere (2ª);

fugere (3ª) > fugire (4ª)

Na sintaxe, há no latim vulgar preferência:

a) pela ordem direta:

b) pela regência diferente de alguns verbos;

c) pelo emprego mais freqüente das preposições em vez dos casos;

d) pelas construções analíticas.

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