SINTAXE DIACRÔNICA: UM ESTUDO DE CASO

Geraldo José da Silva (UEMS)

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho centra-se num levantamento de ocorrências sintático-semânticas dos conectivos Ca / que nas cantigas números 119 e 125, de Don Fernan Garcia, Esgaravunha, do Cancioneiro da Ajuda, edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. O estudo em tela levará em consideração o fenômeno sintático do uso do significante Ca / que e sua incidência valorativa na constituição dos textos em análise. Assim, vemos a complexidade que a estrutura frástica imprime ao fazer textual em composições arcaicas e, também, a necessidade de uma busca histórica do constructo sintático para melhor entender as relações sintáticas em situação atual. Portanto, um estudo balizado num viés diacrônico possibilitará um trato com maior consciência da tessitura textual em Língua Portuguesa, em registro sincrônico. Justifica-se tal estudo dada a ocorrência limítrofe do significante Ca / que em textos, ocasião em que podem assumir função sintática coordenativa e, por vezes, subordinativa.

 

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Considerando a variedade de uso do ca / que e sua polissemia, vê-se que esse significante ora é coordenante, ora é subordinante, podendo na fase arcaica da língua equivaler, também, ao que integrante e ao do que ou que de enunciados comparativos e consecutivos. O uso do ca explicativo ou quia ou qua latinos é muito freqüente na documentação arcaica. Mattos e Silva assim assevera:

A dificuldade da classificação do ca não está, como ocorreu com adversativas e conclusivas-explicativas, em considerá-lo conjunção ou adverbial, mas em considerá-lo subordinante ou coordenante e, optando-se por uma dessas duas possibilidades, que tipo de subordinante ou coordenante: causal (classificação mais generalizada), consecutiva, explicativa. A dificuldade é de natureza sintáctica e semântica. (1989:690).

Em Estruturas trecentistas, a autora afirma que “os enunciados introduzidos por ca estão naquela duvidosa zona limítrofe da coordenação e da subordinação”. Isto nos remete à grande dificuldade de análise da ocorrência desse significante nos enunciados da língua em uso arcaico e, mais ainda, no aspecto sincrônico. Em consonância com a autora, percebemos que o enunciado introduzido por ca (coordenante) sempre sucede, como em qualquer coordenada, ao enunciado a que se liga, explicitando-o ou justificando-o; com os enunciados subordinados circunstanciais, as causais iniciadas sobretudo por porque (semanticamente afins aos iniciados por ca) podem anteceder ou suceder o enunciado básico.

Em situações causais, faz falta o falante nativo para informar se o ca e o porque teriam nestes contextos valor idêntico, se seriam, portanto, intercambiáveis. “Ide-vos a boa ventura, ca non ei eu mester cavalo.” (MATTOS E SILVA, 1989: 692).

Mattos e Silva (1993:111) argumenta que no período arcaico o que, integrante, varia com ca , mas essa variante tem freqüência baixa em relação a que e começa a deixar de ser documentada no século XV. Para a autora o que, no período arcaico, como hoje, é o “pronome relativo primário em português. Representa, historicamente, um nivelamento do nominativo latino que (Masc.), quae (fem.), quod (neutro) e dos acusativos quem, quam, quod também”.

Na documentação arcaica, embora pouco freqüente, o relativo que ocorre grafado ca, tal como ocorre com a integrante que. No processo de constituição das línguas românicas, a partir do latim corrente, poucas das conjunções subordinativas do latim clássico permaneceram: que < quid, como < quomodo, quando < quando, se < si, ca < quia.

A coordenação explicativa tem como conectivo mais corrente na documentação arcaica o ca, cujo étimo em geral proposto é o quia do latim. Mantém-se presente até o século XVI, mas se perderá em proveito de pois, etimologicamente um temporal (< lat. post). (Mattos e Silva, 1993: 121).

Vale chamar a atenção para o fato de que este ca, homógrafo do ca integrante e relativo antes referidos, remete diacronicamente para o quia latino.

Ainda para a autora,

As explicativas e causais estão no limite entre coordenação e subordinação, se se admitir que esses mecanismos representam um continuum de possibilidades que vai da subordinação plena, como é o caso das completivas marcadas, sobretudo, pelo que, constituinte essencial à sentença de que depende, até a coordenação plena que é a adição simples, marcada pelo e (1993: 122).

Almeida (1999: 352-355) explica que as conjunções explicativas “ligam duas orações, explanando ou continuando a segunda o sentido da primeira: Ex.: Morreu, ou seja, deixou de incomodar-nos”. as conjunções causais “ligam duas orações, das quais uma depende da outra, como o efeito depende da causa; a que indica o efeito é a principal, e a que representa a causa é a subordinada. Ex.: Cansado que fiquei, procurei apoio.”

O autor discute a questão conceitual trazida pela NGB no tocante ao uso do que ora causal, ora explicativo. A NGB (Apud ALMEIDA, 1999: 355) traz: “As conjunções que e porque e equivalentes ora têm valor coordenativo, ora subordinativo; no primeiro caso, chamam-se explicativas; no segundo caso, causais”. Segundo o autor, há grave engano nesse trato conceitual e ainda questiona o exemplo: “ Não suba, que você cai” onde apresenta uma análise em que a subordinada constitui uma explicação, sem porém deixar de implicar motivo. E acrescenta Almeida (1999: 355) “A admitir as causais como explicativas, forçoso se torna admitir como explicativas as finais, as temporais e ainda outras”.

Polemiza também se que, quando tem valor subordinativo, é causal, pode-se dizer que no período “Gostaria que eles estudassem” é causal? E se que com valor coordenativo é explicativo no período “Mexe que mexe”?

Conclui o autor “ parece que o que houve foi terem dado à palavraexplicativa o sentido lato de ‘declarativa’, ou terem confundido conjunção com oração, ou gramática com filosofia” (1999: 355).

Cunha e Cintra (1985: 567-572) conceituam as conjunções explicativas como sendo a ligação entre duas orações, a segunda das quais justifica a idéia contida na primeira. Ex.: Vamos comer, Açucena, que estou morrendo de fome. (Adonias Filho). Também registram que as conjunções adverbiais subordinadas causais iniciam uma oração subordinada denotadora de causa. Exemplos: Tenho continuado a poetar, porque decididamente se me renovou o estro. (A . de Quental); Como as pernas trôpegas exigiam repouso, descia raro à cidade. (G. Ramos)

Mesquita (1996: 436-445) apresenta o que explicativo coordenativo no exemplo: “ Parem esse troço que eu vou descer” (L. F. Veríssimo) e que causal subordinativo emEu choro que ( = porque) a saudade existe.

O autor trabalha com a valoração coordenativa (explicativa) e subordinativa (causal) da conjunção porque. Assim, o porque com valor coordenativo explicativo ocorre na oração coordenada que apresenta uma idéia nova explicando uma afirmação anterior; geralmente é separada da antecedente por ponto-e-vírgula ou vírgula. A primeira oração apresenta, geralmente, o verbo no imperativo (Anda, Maria, porque começa a noite). o porque com valor subordinativo causal situa uma causa em relação à conseqüência que foi exposta na oração principal. Pode ser anteposta a esta quando a conjunção é substituída por como , o que não ocorre com a coordenativa explicativa. Ex.: “Desprezam-me porque sou pobre[conseqüência > causa] e “Como sou pobre, desprezam-me ” [causa > conseqüência].

Infante (1995: 441) conceitua as orações coordenadas explicativas como aquelas que expressam o que levou alguém a fazer uma declaração anterior. Ex.: “ Não o perturbe, que ele precisa trabalhar”. O autor chama a atenção para que não confundamos explicação com causa. Segundo ele uma explicação é sempre posterior ao fato que a gerou; uma causa é sempre anterior à conseqüência que dela resulta. Ao apresentar as orações coordenadas (explicativas) Ulisses Infante segue as orientações da NGB e este reconhece a problemática conceitual da questão: coordenativas explicativas e / ou subordinativas adverbiais causais. Segundo a NGB, as orações coordenadas sindéticas devem ser classificadas de acordo com o tipo de conjunções que as introduzem, levando-se em conta as conjunções que encabeçam essas orações e não o sentido da relação que se estabelece. Corroborando essas limitações, o autor discute os exemplos: “ Você quer ajuda, e eu não posso o ajudar” e “ Faça o que lhe digo e será bem-sucedido” , os quais apresentam a segunda oração como orações coordenadas sindéticas aditivas, encabeçadas pela conjunção e, seguindo orientação da NGB. Por outro lado, é claro que essas orações não são puramente aditivas: no primeiro caso, há um valor adversativo [ Você quer ajuda, mas eu não posso ajudar]; no segundo caso, percebe-se um valor consecutivo [ Faça o que lhe digo e em conseqüência será bem-sucedido].

Infante (1995: 442) assevera “ Por isso, voltamos a insistir em que você se preocupe mais com o uso efetivo das estruturas lingüísticas do que com as intermináveis discussões dos gramáticos sobre questões de nomenclatura...”

Kury (1997: 89-125) admite a complexidade conceitual ao tratar de orações coordenadas explicativas e orações subordinadas causais. Ele apresenta, didaticamente, alguns artifícios práticos na otimização do processo analítico.

1°) Tendo sempre em mente que a oração subordinada adverbial vale por um adjunto adverbial ( o que não acontece com a coordenada explicativa, sintaticamente independente), tente-se substituir a oração desenvolvida iniciada com que, pois, porque por outra equivalente, reduzida de infinitivo, iniciada pela preposição por. Se isso for possível, sem forçar o sentido é sinal evidente de que a oração em tela é causal. Segundo o autor esse processo é o mais eficiente de todos.

2°) Na maior parte dos casos, a oração que antecede uma explicativa tem o verbo no imperativo, indicando tempo futuro; compare-se: “ Não chores, porque estou a teu lado.” (explicativa); “ Não chores [ porque estou a teu lado] (causal), que não te farei mal.” (explicativa); “Chorava [ porque a mãe não estava a seu lado]”. (causal).

3°) Na sua maioria, as orações causais de que, pois, porque podem substituir-se por equivalentes com os conectivos como (no início do período), uma vez que e análogos, o que não é possível com as explicativas.

A aplicação conjunta destes critérios, mormente o primeiro, sanará talvez todas as dúvidas, principalmente se não se esquecer este fato : é subordinada adverbial causal a oração que exerce, em relação à outra, a função de adjunto adverbial de causa. (KURY, 1997: 90).

O autor apresenta exemplos para aplicação prática.

1) “Fala-lhe tu, que eu não quero que ele me conheça.” (Camilo, AP, 65.) Veja-se que, neste exemplo, é perfeitamente possível a omissão do conectivo: “ Fala-lhe tu: eu não quero que ele me conheça” , o verbo da oração anterior está no imperativo; seria forçada a substituição da oração indicada por outra introduzida por como, ou por uma oração reduzida. Tudo isso indica que se trata de oração independente explicativa, coordenada à anterior.

2) “O povoléu intacto fugia espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do carregador.” O segundo exemplo posto, também, nos possibilita o entendimento de que a oração pode ter equivalência reduzida ( ... por não se atrever ninguém...), ou introduzida por uma vez que, ou visto que, ou como. Assim, concluímos que se trata de oração subordinada adverbial de causa.

O desafio de estudar a Língua Portuguesa, requer de nossa parte um olhar mais amplo, sem perder de vista os aspectos diacrônicos e sincrônicos deste código. Isto posto, a retomada de textos arcaicos é oportuna, pois no registro de textos atuais encontramos fenômenos lingüísticos que, também, exigem maior atenção para compreensão e interpretação, levando-se em conta o processo estrutural e de construção de sentido.

Observando estes aspectos, especificamente os morfossintáticos, centramos nosso estudo no corpusCantiga 119 e 125 do Cancioneiro da Ajuda(de Don Fernan Garcia, Esgaravunha) na edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

 

CANTIGA 119 ( Tr.133). Carolina Michaëlis de Vasconcelos

 

Quan muit’ eu am’ ũa molher                    2875

non - no sabe Nostro Senhor ;

nen ar sabe quan gran pavor

ei og’ eu d’ela, cuido - m’eu;

5      ca se eu o soubesse, sei eu

ca se doeria de mi,                                        2880

e non me faria assi

f.31( = 67)b             querer bem a que me / / mal quer.

 

      Pero que dizen que negar

10       non xe lhe pode nulla ren

      que el non sábia, sei eu ben                 2885

      que aind’ el non sabe qual

      ben lh’eu quero, nen sab’ o mal

      que m’ela por si faz aver;

15       ca se o soubesse, doer-

             s’ –ia de mi, a meu cuidar.           2890

 

          Ca Deus de tal coraçon é

      que, tanto que sabe que ten

      eno seu mui gran coit(a) alguen,

20       que logo lh’ i conselho pon.

      E por esto sei eu que non                   2895

      sab’ el a coita que eu ei;

      nen eu nunca o creerei

      por aquesto, per bõa .

 

 

TRADUÇÃO DA CANTIGA 119 [1]

 

Quanto eu amo uma mulher                    (1ª estrofe)

não, não sabe Nosso Senhor

Nem também sabe quanto pavor

tenho hoje dela, penso eu

porque se o soubesse, eu sei

que se compadecia de mim,

e não me faria assim

querer bem a quem (que) me quer mal.

 

Por isso que dizer que negar                   (2ª estrofe)

não se lhe pode nada

que ele não saiba, eu sei bem

que ainda ele não sabe qual (tamanho)

bem lhe quero, nem sabe o mal

que me fez ela por si mesma

porque se o soubesse, compadecer-se-ia de

mim, ao meu ver.

 

Pois Deus de tal coração é                       (3ª estrofe)

que, tanto que sabe que tem

e no seu grande sofrimento alguém,

que logo põe-lhe remédio (auxílio)

E por isto eu sei que não

sabe ele o sofrimento que eu tenho;

nem nunca o acreditarei (crerei)

por tamanho (coração), por boa .


 

CANTIGA 125 ( Tr.139). Carolina Michaëlis de Vasconcelos

 

                Des oge mais ja sempr’eu rogarei

f.32( = 68)b Deus por mia morte, se mi – a dar / / quiser,        2975

    que mi – a cedo; ca m’é mui mester,

    senhor fremosa, pois eu per vos sei

5      ca non á Deus sobre vos tal poder

   per que me faça vosso ben aver:

 

   E ja eu sempre serei rogador               2980

    Des oge mais pola mia mort’ a Deus,

    chorando muito d’estes olhos meus,

10           pois per vos sei, fremosa mia senhor,

ca non á Deus sobre vos tal poder

per que me faça vosso ben aver.           2985

 

                   Ca enquant’ eu coidei o[u] entendi

   ca me podia Deus vosso ben dar;

15      nunca lh’eu quis por mia morte rogar;

   mais, mia senhor, ja per vos sei assi

      ca non á Deus sobre vos tal poder 2990

                   per que me faça vosso ben aver.

 

 

TRADUÇÃO DA CANTIGA 125 [2]

 

De hoje em diante eu sempre rogarei a                 (1ª estrofe)

Deus por minha morte, se ma quiser dar

oxalá (que) ma cedo (logo); porque me é muito importante (necessário)

senhora bela, pois eu por vos sei

que não tem Deus sobre vós tal poder

pelo qual me faça ser correspondido (vosso bem possuir).

 

E doravante sempre serei rogador                         (2ª estrofe)

De agora em diante pela minha morte em Deus,

chorando muito destes olhos meus,

pois (porque) por vós sei, minha formosa senhora,

que não tem Deus sobre vós tal poder

pelo qual me faça ser correspondido (vosso bem possuir)

 

Pois enquanto eu meditei (inquietei-me) entendi     (3ª estrofe)

que me podia Deus vosso bem dar,

nunca eu quis por minha morte rogar-lhe

mas, minha senhora, daqui em diante por vos sei assim

que não tem Deus sobre vós tal poder

pelo qual me faça ser correspondido (vosso bem possuir).

 

 

ANÁLISE DO CORPUS
CANTIGAS 119 E 125” DE DON FERNAN GARCIA,
ESGARAVUNHA, (CANCIONEIRO DA AJUDA)
- edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

Tendo como aporte teórico a obra Estruturas Trecentistas de Mattos e Silva, nos propusemos a fazer um levantamento das ocorrências sintático-semânticas do ca / que nas Cantigas 119 e 125 (de Don Fernan Garcia, Esgaravunha) do Cancioneiro da Ajuda, na edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Para a Cantiga 119, consideramos a análise de Bortolanza (2003), que apresenta de forma didática algumas estruturas frásicas do texto em estudo. Vale lembrar que, para este trabalho, elegemos apenas os significantes Ca / que destacando a incidência destes conectivos sintaticamente marcada pelo contexto. Assim, percebemos que estes elementos assumem – ao longo do textovalores adjetivais, integrantes e causativos circunstanciais.

Num primeiro momento faremos a análise da Cantiga 119, de Don Fernan Garcia, Esgaravunha, (Cancioneiro da Ajuda, na edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos) e, em seguida, o mesmo se fará com a Cantiga 125 – mesma fonte. Portanto, passamos a análise da Cantiga 119 em que destacamos, na primeira estrofe, quinto verso, “porque se o soubesse, eu sei” temos a primeira ocorrência do que com valoração causativa em se considerando o sexto verso como complemento sintático-semântico do [ca = porque] presente no quinto verso. No sexto verso, há outra incidência do que [ca = que] mas com função sintática de elemento integrante por iniciar uma oração subordinada substantiva completando a forma verbal “sei” marcada no quinto verso. Ainda, nesta estrofe, no oitavo verso, o significante que assume a função de pronome relativo adjetivo[que = quem] “querer bem a quem / que me quer mal

A segunda estrofe nos apresenta, no primeiro verso, duas estruturasque dizer” e “que negarcom função sintático-semântica de objeto direto da forma verbal “pode” do segundo verso, podendo ser retomadas pela anáfora representada na pró-forma nominal substantiva nada. [Não se pode dizer que, não se pode negar que...]. No terceiro verso, o que assume função sintática de pronome relativo, pois retoma nada que equivale a algo dito, a algo negado, marcado no primeiro verso pela forma infinitiva antecedida pelo pronome que estilisticamente. o que do quarto verso desempenha a função sintática de conjunção integrante, pois está subordinado à forma verbal “sei” inscrita no terceiro verso. [eu sei ben / que aind’ el non sabe qual]. O que inicial do sexto verso exerce a função de pronome relativo, uma vez que, e´ elemento reforçativo e referencial ao termo mal incidente no quinto verso. No sétimo verso o [ca = porque] aparece com valor causal, veja-se a construção frasal possível: “ca se o soubesse, doer- / s’ – ia de mi, a meu cuidar”. ( porque sabendo, compadecer-se-ia de mim).

Na terceira estrofe, o Ca inicial é tido como elemento continuador de uma narratividade, seu uso é optativo uma vez que não interfere na carga semântica do período frásico. O segundo verso desta estrofe nos apresenta duas ocorrências do que as quais possuem funções sintáticas distintas, a saber: “tanto que sabe..” com valor consecutivo e “sabe que tem...” assumindo valor de conjunção integrante. No quarto verso [ que logo lh’ i conselho pon.] este que desempenha função de pronome relativo por estar retomando “alguém” do verso anterior. No quinto verso [E por esto eu sei que non] o que tem valor morfossintático de elemento integrante. no sexto verso [sab’ el a coita que eu ei;], o que tem a função de pronome relativo e, semanticamente, imprime valoração intensificadora ao temo sofrimento.

Prosseguindo nosso trabalho, passamos a analisar a Cantiga 125, de Don Fernan Garcia, Esgaravunha (Cancioneiro da Ajuda, na edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos).

Na primeira estrofe é possível verificar a ocorrência do significante [ca = porque] com valor causal, no terceiro verso: “ que mi – a cedo; ca m’ é mui mester; ” e, também, um que iniciador do verso com valor integrante em relação à forma verbal “quiser” do segundo verso. O quarto verso mostra-nos um pois explicativo [a morte me é muito importante / pois eu por vós sei]. No quinto verso o [ca = que] desempenha função de elemento integrante em relação à incompletude da forma verbal “sei” do enunciado no quarto verso. , no sexto verso, o que é pronome relativo adjetivo e ainda restringe o ‘poder’ de Deus, neste constructo frasal, tem a função de elemento reforçativo discursivo.

A segunda estrofe nos permite analisar, no quarto verso, a ocorrência do significante [pois = porque / visto que], portanto com valoração causativa pela possibilidade de construção sintático-semântica “chorando muito destes olhos meus visto que / porque sei (minha formosa senhora)”. Veja-se que o fato de saber que nem Deus teria poder sobre a amada para sensibilizá-la ao seu amor, causava-lhe choro intenso. No quinto verso, o [ca = que] desempenha a função de elemento integrante morfossintaticamente, visto que está para completude da forma verbal “sei” do verso anterior. O sexto verso apresenta a mesma função ocorrida no sexto verso da primeira estrofe, o que podemos inferir que há uma retomada estrutural da forma de composição paralelística e / ou refrão, pertinente a este tipo de texto.

A terceira estrofe apresenta um [ca = pois] como conjunção circunstancial, no início do enunciado, o que podemos dizer que o mesmo assume função optativa, uma vez que é apenas um coadjuvante composicional enunciativo conforme o que atesta Mattos e Silva “... o ca poderia deixar de estar presente sem prejudicar a informação transmitida pela narrativa; do ponto de vista sintáctico, da mesma forma, parece ser dispensável que não está coordenando enunciados, mas em início absoluto de uma narrativa” (1993:695). O segundo verso [ca = que] assume a função de elemento integrante por completar frasticamente a forma verbal regente no primeiro verso “entendi” [algo]. O quinto verso, o que também apresenta a mesma função, ou seja, elemento integrante em relação ao verbo saber flexionado e enunciado no quarto verso. no sexto, a estrutura composicional se repete tal qual nas estrofes anteriores que constituem a cantiga.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das cantigas de Don Fernan Garcia, Esgaravunha – corpus deste trabalhonos possibilitou verificar a complexidade sintático-semântica dos significantes Ca / que em uso constitutivo dos versos. Percebemos a relatividade analítica possível quando da estruturação frásica. Notamos, também, que estes conectivos desempenham funções sintáticas ora de cunho coordenativo ora de cunho subordinativo, levando-se em conta o contexto de suas ocorrências. Estudos gramaticais sincrônicos, por vezes, deixam lacunas quanto à explicação de processos sintáticos. Vimos que uma abordagem diacrônica, uma busca histórica da construção de sentenças da Língua Portuguesa poderia esclarecer ou, pelo menos, mostrar os fenômenos frásicos do código utilizado para registro escrito. Não queremos, com isso, refutar o trato normativo da NGB, mas sim ressaltar que uma abordagem diacrônica sempre terá seu espaço no que se refere ao estudo e ao ensino da Língua Portuguesa.

Os significantes Ca / que nas cantigas analisadas corroboram a alternância sintática que incide nas estruturas frásicas como elementos conectivos que ora desempenham função coordenativa, ora função subordinativa, assumindo valoração causativa circunstancial, valoração pronominal relativa adjetival e, também, posição de elemento integrante interfrásico. Isto posto, consideramos que, mesmo em textos arcaicos, a relação sintática é construída de forma lógica mas não ortodoxa, fechada em si mesma, sem levar em conta o contexto. Assim, instiga-se uma reflexão dos fenômenos sintáticos que ocorrem hoje em situação sincrônica o que justifica o estudo lingüístico sob a ótica diacrônica, pois tudo tem um porquê histórico que nos motiva a buscar no passado luzes para compreender e entender o presente.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, N.M. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 44ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

CANCIONEIRO DA AJUDA. Ed. de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Vol. I. Reimpressão da edição de Halle (1904), acrescentada do prefácio de Ivo de Castro e do Glossário das Cantigas (Revista Lusitana, XXIII). Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1990.

BORTOLANZA, J. O Latim e o Ensino de Português. Revista Philologus, Rio de Janeiro: setembro / dezembro 2000, n. 18, p. 77-85.

BORTOLANZA, J. Lições do arcaico. Revista Brasileira de filologia. Ano II, n° II, 2° semestre / 2003, p.70-76.

CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

INFANTE, U. Curso de Gramática Aplicada aos Textos. São Paulo: Scipione, 1995.

KURY, A. G. Novas lições de análise sintática. 7ª ed. São Paulo: Ática, 1997.

MATTOS E SILVA, R.V. Estruturas trecentistas. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1989.

MATTOS E SILVA, R.V. O Português Arcaico Morfologia e Sintaxe. São Paulo: Contexto, 1993.

MESQUITA, R. M. Gramática da Língua Portuguesa. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

SILVA, G. J. A palavra QUE subordinante interface causal-explicativa: uma abordagem diacrônica. Morfossintaxe. Cadernos do CNLF, Vol. VII, n° 11, p.27-39. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2003.


 


 

[1] Tradução de Geraldo José da Silva, pesquisador  do Núcleo de   Estudos Clássicos e Diacrônicos da UEMS.

[2] Tradução de Geraldo José da Silva,  pesquisador do Núcleo de   Estudos Clássicos e Diacrônicos da UEMS.