A questão da brasilidade
em Drummond e Mário

Matildes Demetrio dos Santos (UFF)

 

Sou hereditariamente europeu, ou antes: francês. Amo a França. (Carlos D. de Andrade)[1]

 

Em Belo Horizonte, desde 1921, Carlos Drummond de Andrade pertencia a um grupo de intelectuais que se reunia no Café e Confeitaria Estrela[2], para discutir sobre arte, literatura e política. Eram moços em início de carreira que ansiavam por trazer a modernidade para a acanhada sociedade mineira, à margem das inovações estéticas preconizadas pelos modernistas dos grandes centros urbanos. Assim, em 1924, quando a agitada caravana paulista, formada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars, dentre outros, chegou à capital, depois da célebre visita às cidades barrocas, muitos daqueles jovens foram ao bar do Grande Hotel para travarem conhecimento com os responsáveis pelas inovações que movimentavam a cena artística daquela época. Nesse encontro nasceu a amizade entre Mário e Drummond, que se aprofundou em uma substanciosa correspondência, que se estende de 28 de outubro de 1924 a 23 de fevereiro de 1945, apenas dois dias antes da morte do escritor paulista.

Em Confissões de Minas, no ensaio intitulado “Suas cartas”, Drummond redimensiona essa amizade ao afirmar a importância capital que Mário exerceu sobre sua vida pessoal e artística. Ele diz que as missivas de Mário “eram torpedos de pontaria infalívelque tinham a força de destruir preconceitos culturais e estéticos, eliminando distorções e interpretações errôneas. Nas cartas, o poeta de Minas se deixava ver: relatava suas atividades como jornalista, confessava-se inadequado à vida social, pouco motivado a tomar decisões pessoais e até ofendido por ter nascido em um paísinfecto”, como o Brasil.

Em um trecho da carta de 22 de novembro de 1924, ele fala da importância que tinha Anatole France, o “gênio francês”, em sua vida acadêmica. Fora ele quem o ensinou “a duvidar, a sorrir e a não ser exigente com a vida”. Persistia em Drummond a herança de uma geração melancólica, em estreita ligação com o desencanto que imperava no mundo após a 1.ª Guerra Mundial. Essa carta, sem nenhuma ironia e humor, traz o tom de muitas outras cartas, que marcariam a postura do gauche em confronto com o mundo à sua volta, um jovem cético, cansado precocemente da vida e envergonhado de ter nascido no Brasil:

Não sou ainda suficientemente brasileiro. Mas, às vezes, me pergunto se vale a pena sê-lo. Pessoalmente, acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Tenho uma estima bem medíocre pelo panorama brasileiro. Sou um mau cidadão, confesso. É que nasci em Minas, quando devera nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado. (ANDRADE, 2002: 56)

Nessa confissão, Mário percebia de imediato que a influência anatoliana era um mal que contaminava os moços de sua geração, tirando-lhes a vontade de agir, tornando-os infelizes, contaminados pelo que chamava de “moléstia de Nabuco”, uma doença grave que impedia o trabalho de abrasileiramento do país, pois os jovens viviam com os olhos voltados para a Europa. Aos olhos de Mário, o moço de Minas, com apenas vinte anos, julgava-se velho, nutria-se de literatura, era requintado intelectualmente, admirava os mestres franceses do final do século XIX e, sob essa influência, adotava uma postura filosófica que o afastava da vida e do convívio com os outros homens. Por seu lado, comprometido com o projeto de modernização do país, Mário acreditava na construção de um futuro promissor para a história nacional e considerava um dever denunciar o caráter falso e prejudicial da cultura importada na literatura brasileira. Fiel a esse princípio, toma para si a missão de empreender uma campanha contra a influência dessa tradição européia ancorada na descrença e no pessimismo. Pensando dessa maneira, diz a Drummond que faltava à juventude brasileira o otimismo pessoal e social que edifica e, para exemplificar seu ponto de vista, confessa que, no seu cotidiano, ele cultivava o gosto pela vida com todas as suas conseqüências e responsabilidades. Afirmava que era possível atingir a plenitude que engrandece o ser humano quando se passa a viver a vida com religião ligado a tudo o que existe e o segredo estava em gostar da vida. Para comprovar sua tese, revelava que para o seu próprio bem estar, ele buscava a reconciliação entre o gozo do corpo e do espírito: “Eu tanto aprecio uma boa caminhada a no alto da Lapa como uma tocada de Bach”.[3]

Com indignação, insistia que Anatole representava a inteligência estagnada, a indiferença diante do futuro, uma maneira de ser que obstruía a construção de uma sociedade que buscava a modernidade. Portanto, Drummond, um jovem em início de carreira, deveria reconciliar-se com a realidade brasileira e não insistir na repetição da tradição livresca e passadista, mas criar perspectivas próprias, fixar objetivo e rota para sua arte, como ser brasileiro, diferente por natureza do europeu. Com convicção e franqueza, definia sua posição:

Mas meu caro Drummond, pois você não que é todo o mal que aquela peste amaldiçoada fez a você! Anatole ainda ensinou outra coisa de que você se esqueceu: ensinou a gente a ter vergonha das atitudes francas, práticas, vitais. Anatole é uma decadência, é o fim de uma civilização que morreu por lei fatal e histórica. Não podia ir pra diante. Tem tudo que é decadência nele. Perfeição formal. Pessimismo diletante. Bondade fingida porque é desprezo, desdém ou indiferença. [...] Fez literatura e nada mais. E agiu dessa maneira com que você mesmo se confessa atingido: escangalhou os pobres moços fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem coragem, duvidando se vale a pena qualquer coisa, duvidando da felicidade, duvidando do amor, duvidando da , duvidando da esperança, sem esperança nenhuma, amargos, inadaptados, horrorosos. Isto é que esse filho-da-puta fez. [...] Você diz que ele ensinou você a não ser exigente com a vida... Como isso! Se você se confessa um inadaptado e tem um errado desprezo pelo Brasil e os brasileiros. (Carta sem data, p. 67-68)

A crítica lançada num estilo límpido e espontâneo reprovava aquela forma de vida diletante de ser. Drummond não sabia harmonizar o trabalho intelectual com o prazer do corpo, tudo porque não sabia gostar da vida. Mário, naqueles primeiros anos do Modernismo, reafirmava a alegria de viver e tinha a sensibilidade aberta para o mundo à sua volta. Em vários momentos da correspondência, ele aconselhava o amigo a não olhar a vida com temor, pedia que saboreasse as paisagens de Minas e procurasse conversar com toda a gente, principalmente, com as pessoas humildes e sofridas, buscando as “fontes emocionais” da cultura brasileira.

No propósito de unir vida e arte, ele relata um fato que viveu no Rio de Janeiro, num sábado de carnaval, que o motivou a escreverCarnaval Carioca”, publicado na obra Clan do Jaboti. Explica que o poema nasceu quando ele, reconciliado dos ritos e da festa carnavalesca, foi surpreendido pela lembrança da negra que dançava como se estivesse possuída por um deus triunfante. Ela requebrava e cantava com tamanha paixão que beirava o divino. Mário observou que, ao seu redor, havia muita animação, mas as pessoas dançavam maquinalmente, olhando para os lados, atentos às excitações externas. Ela, ao contrário, “não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança”. [4] Conclui: aquele fervor religioso, seja para salvar-se ou perder-se, era a lição que o artista deveria imitar desde o princípio.

A crença na vida requeria, portanto, uma doutrina estética que respondesse com vibração aos temores e desejos dos homens. “Carnaval” oferecia uma resposta moderna: descrevia uma festa nacional, cantava a alegria, o transitório da vida, a sensualidade, o prazer de viver, numa linguagem viva, própria das cidades modernas, com seus barbarismos e neologismos. Evoca a música com suas múltiplas associações, do acorde erótico dos corpos em movimento ao acorde das diferenças coletivas, captava flashes de pessoas anônimas, impondo-se sobre o preconceito das imposições sociais, exprimindo um jeito carioca de ser. No poema, de 1923, dedicado a Manuel Bandeira, pode-se ler:

Carnaval...

A baiana se foi na religião de Carnaval

Como quem cumpre uma promessa.

Todos cumprem suas promessas de gozar.

Explodem roncos roucos trilos tchique-tchiques

E o falsete enguia esguia rabejando pelo aquário multicor.

Cordões de machos mulherizados,

Ingleses evadidos da pruderie,

Argentinos mascarando a admiração com desdéns superiores

Degringolando em lenga-lenga de milonga,

Polacas de indiscutível índole nagô,

Yankees fantasiados de norte-americanos...

Coiòsada emproada se aturdindo turtuveando

Entre os carnavalescos de verdade

Que pererecam pararacas em derengues meneiros cantigas,

Chinfrim de gozar! (ANDRADE, 1979: 112)

Refutando sempre a influência de Anatole France, Mário aconselhava Drummond a fugir das inspirações fáceis e a não ceder às modas literárias, fugindo da retórica clássica e do didatismo dos parnasianos e simbolistas. Ele, por sua inteligência privilegiada, deveria somar esforços na luta pelo abrasileiramento do país. A idéia do modernista paulista era formar aqui uma comunidade de jovens atuantes, lendo a história do Brasil, renovando e procurando, pela invenção e criatividade, integrar o país no movimento universal das idéias. No mesmo ano de 1924, Mário intensificava seu estudo sobre os valores cultuados pelo povo brasileiro e pesquisava o substrato nacional expresso na literatura oral e folclórica. Dedicava-se às pesquisas sobre a língua falada no cotidiano, catalogando palavras que tinham peso significativo, anotando adágios e provérbios que ilustravam a sabedoria popular.

Na opinião de Mário de Andrade, as discussões sobre o Modernismo abriram um espaço na cultura brasileira que precisava ser preenchido. No princípio, a arte nacional fora um reflexo da arte européia mas houve sempre um desejo de transgredir o modelo oficial. A partir de 1922, esse desejo se intensifica e os artistas nacionais buscavam construir uma arte cosmopolita, expressão de uma maneira própria de ser. Era urgente persistir nesse caminho, uma vez que a literatura brasileira ainda estava impregnada de regionalismos ou provincialismos, uma visão estreita que se perdia no preciosismo ou na banalidade, ora enaltecendo ora denegrindo a terra e o homem do interior. Naturalmente, ele respeitava o regionalismo de Valdomiro Silveira, de Simões Lopes Neto, de Hugo de Carvalho Ramos que contribuíam para a compreensão de ambientes rurais ignorados para a ficção brasileira mas pecavam pela fidelidade de descrição, herança de uma práxis herdada do Naturalismo.

Da mesma forma, parecia-lhe absurda a oposição entre nacionalismo e universalismo. Existe, dizia ele, “mau nacionalismo ouregionalismo exótico”, ambos ineficientes como expressão nacional. O primeiro tem por base uma ideologia que exalta a grandeza da pátria, sem espírito crítico. O segundo é forma estática e isolada, que não atinge o particular da situação brasileira e, socialmente, nada traz de novo, porque esteriliza as deficiências vigentes. Os seus argumentos se apoiavam na idéia de que o processo de modernização do país deveria encarar criticamente a realidade nacional, em um trabalho que exigia seriedade e disciplina, sem a passividade do regionalismo, restrito à descrição do circunstancial e do geográfico; e logo em seguida evoluir para o universalismo que, na sua opinião é uma forma harmoniosa de ser em união com as demais etnias. Aproveitando-se da linguagem musical para explicar sua teoria, Mário tece uma linha de pensamento conciliador que todas as raças comoacordes musicais”, logo o Brasil precisava realizar o seu acorde para entrar na “harmonia da civilização”. Melhor dizendo: não se tratava de querer nivelar, tentar ser igual ou superior mas somar em nível de igualdade. Com uma lógica impecável, ele expunha seu pensamento:

De que maneira nós podemos concorrer pra grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemãs? Não, porque isso está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que formos inteiramente brasileiros e brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lambanças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização. Me compreende bem? [...] Você faça um esforcinho pra abrasileirar-se. Depois se acostuma, não repara mais nisso e é brasileiro sem querer. (Carta sem data, 2002: 70)

Nesta concepção de construção literária, a resposta para o “abrasileiramento do brasileiro” significava estudar, analisar e interpretar a cultura brasileira, questionando e considerando as particularidades da história, da língua, da vida nacional. Não se tratava de combater o passado em nome da atualização/modernização da arte brasileira mas de introduzir a ótica do nacionalismo crítico no processo de renovação. Confiante, Mário teorizava sem correr o risco de parecer otimista demais ou pessimista em excesso, pois a solução para eliminar o apertado dilema entre nacionalismo e universalismo era a crença na sabença, termo empregado por ele. Nessa perspectiva, a tarefa do intelectual brasileiro era a de integrar-se ao mundo civilizado, emitindo seu própriosom”, em meio a outros sons, como se fosse uminstrumento acorde”, diferenciado e harmonioso.

Pragmático, Mário confessava a sua determinação em priorizar a pesquisa em detrimento da criação artística. Ele tinha a noção de que “se sacrificava” em prol do país. A luta para sedimentar o credo modernista, a língua que passa a escrever, as leituras e pesquisas sobre a cultura brasileira, as viagens de reconhecimento pelo cidades brasileiras, enfim, o transitório seria o que não podia ser sacrificado. O que seria sacrificado então? O eterno, a realização de uma obra duradoura. Fiel a esse objetivo, contribuiu para uma série de áreas do pensamento nacional, pesquisando e catalogando cantigas e canções antigas, escrevendo artigos e ensaios, correspondendo-se com intelectuais e artistas pelo Brasil; deixando, como confessa, a criação literária de lado ou fazendo dela veículo para a realização plena das novas idéias. A consciência de sua missão, depreende-se na mesma carta de dez de novembro de 1924: “A minha vaidade hoje é ser transitório. Estraçalho a minha obra, penso ingênuo, pra chamar atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil”.

Depois da publicação de Paulicéia desvairada, Mário desenvolve os conceitos de “literatura de circunstância para definir a obra que se inscreve criticamente no presente de seu país. O fato de escreverlíngua imbecil” e de “pensar ingênuo era uma maneira consciente e corajosa de chamar a atenção para o português falado pela maioria do povo brasileiro. Da mesma forma, quando viajava seu propósito era descobrir os traços fundamentais da psicologia dos brasileiros para depois exercer a crítica sobre as realidades detectadas. Num movimento dinâmico, volta-se para o remetente e faz o convite:

Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. O natural da mocidade é crer e muitos moços não crêem. Que horror! Veja os moços modernos na Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda parte: eles crêem, Carlos, e talvez sem que o façam conscientemente, se sacrificam. Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos felicidade. (Carta de 10 de novembro de 1924, .51)

O companheiro mais moço não se julgava propenso ao sacrifício porém buscava nas lições do amigo uma compreensão mais ampla para o homem, o poeta e sua lírica. Grande parte da correspondência de Drummond é marcada pela reflexão do sujeito desajeitado diante de tantos desejos, tantos sentimentos, tantos enigmas. Face a um destinatário carismático e aberto para o futuro, no entanto, ele se predispõe ao diálogo, partilhando preocupações, tematizando idéias que usaria para estabelecer a desejada relação entre vida e obra.

Considerando o apertado dilema entre nacionalismo e universalismo de Mário, o intelectual mineiro se afirmava herdeiro de uma tradição ocidental sem fronteiras culturais. No seu ponto de vista o artista é um cidadão do mundo, dono de uma liberdade espiritual aberta a todas as possibilidades. De antemão, concordava que o modelo anatoliano era redutor e deveria ser rejeitado, no entanto nacionalizar a arte, tingindo-a com as cores da pátria, era também um erro. O artista que agisse desse modo estaria solapando a verdade e comprometendo a validade de sua obra. Para ele havia uma distinção entre ser nacionalista, ter princípios, trabalhar com ética e honestidade, fazer estatutos que beneficiem a coletividade, e ser artista com a tarefa de construir uma obra em consonância com o mundo:

Como dizer a um escritor: escreva brasileiro se deseja ser? Há mil maneiras de ser. Um dia, eu serei, e acabou-se... Se não for, é porque sou um cretino irremediável, e de nada me valerá recorrer aos enternecimentos patrióticos [...] Escute. Há ocasiões em que eu me sinto enquadrado no meio natal. Sou um com a minha gente. Nessas ocasiões sou brasileiro como os que mais o sejam [...] E como é bom ser brasileiro! Contudo, não é o único bem da vida. Daí amanhecer, outros dias, norueguês ou tchecoslovaco (mais freqüentemente, francês). Isto é o que eu chamo de liberdade espiritual. Este, sim, o maior bem da vida. Ser. Mas ser tudo. Não somente brasileiro. É tão pequeno o Brasil. (Carta de 30 de dezembro de 1924: 79)

Assim, enquanto Mário clamava pela tradição brasileira no contexto universal, Drummond reafirmava a tradição européia no Brasil e, ao mesmo tempo, lastimava o qualpequeno” , inculto e pouco civilizado era o seu país de origem. Entretanto, pouco a pouco, os argumentos de Mário tiveram o poder revolucionário de ampliar os valores cultuados pelo poeta amigo, despertando sua potencialidade criativa, pois o “professor” sabia como nenhum outro passar lições de forma envolvente, com exemplos lúcidos, citando tópicos de sua obra, aprofundando dados estéticos, alargando perspectivas, divergindo quando necessário, no esforço de legitimar uma nova concepção do mundo e da literatura.

As discussões evoluem e, das cartas, ganham a literatura. Nesse ponto, o leitor reconhece que o poeta mineiro, sob a influência do mestre paulista, enveredava a passos largos pelo Modernismo, mostrando-se solidário às manifestações da vida e fortemente empenhado na função de refletir criticamente sobre a realidade do seu tempo. O exemplo mais imediato dessa mudança aparece em dezembro de 1925, quando o jornal A Noite publicou uma série de textos sob o título “O Mês Modernista”, com a finalidade de divulgar as novas concepções artísticas. Mário foi convidado a participar e inclui o amigo de Minas entre os colaboradores. Drummond estréia na edição de 29 de dezembro de 1925, com “Taí!”, um texto muito bem-humorado, que desconcerta os leitores mais tradicionais pelo radicalismo das posições de seu autor. O título é empréstimo de uma marcha-canção de Joubert de Carvalho, sucesso na voz de Carmem Miranda. Ferindo as normas gramaticais, o artigo inicia com um pronome oblíquo: Me parece que o Modernismo brasileiro precisa abandonar de todo o respeito de papão da tradição, e insiste nessa prática comum na linguagem oral. Para escândalo dos saudosistas, assume uma postura contra o passadismo, combatendo as “fórmulas caducas”, reagindo contratudo quanto é antigo, carunchoso, pau”. Para o jovem curado da “doença de Nabuco”, o Modernismo brasileiro tinha como valor inestimável o princípio de evolução, uma vez que graças a Deus o Brasil não tem tradição. É terra que nasceu ontem e treme ainda no alvoroço das descobertas. E conclui fazendo a apologia da vida e do presente, reiterando sua aversão a tudo o que é caduco.[5]

Entretanto, além das irreverências e dos exageros de vanguarda, o “gauche” não escondia o seu desconcerto no mundo nem o esforço da luta obstinada pela expressão poética, dados que irão marcar substancialmente a sua obra: (Gastei horas pensando um verso/ que a pena não quer escrever./ No entanto ele está dentro/ inquieto, vivo...Poesia”, Alguma poesia). Ou a memória que se inscreve em fragmentos que a escritura poemática transcreve: (Carrego comigo/ há dezena de anos/ há centenas de anos/ o pequeno embrulho. “Carrego comigo”, A rosa do povo). Sensível, o artista percorre caminhos, tropeçando no cotidiano, respondendo aos apelos da vida social, profundamente armado a cada manifestação poética de alguma revelação fundamental.

A cada carta, Mário percebia a mudança de mentalidade do amigo que se revela em toda a sua dimensão na primeira obra publicada, Alguma poesia, que contém a produção poética entre 1923 a 1930. Nela, encontra-se o famoso “No meio do caminho”, considerado por muitos críticos como uma síntese do espírito polêmico do Modernismo e um flagrante da psicologia dramática do poeta e também o poemaFuga que aborda de forma zombeteira a saída estratégica do poeta anatoliano, vestido de fraque preto, deixando o país sob vaias estridentes:

O poeta vai enchendo a mala,

Põe camisas, punhos, loções,

Um exemplar da Imitação

E parte para outros rumos.

[...]

Povo feio, moreno, bruto,

Não respeita meu fraque preto.

Na Europa reina a geometria

E todo mundo anda como eu – de luto.

Não se pode duvidar da intenção humorística, visando ridicularizar os defensores das tradições francesas no Brasil moderno. Neste contexto, delineia-se a convicção de que cabia ao artista escolher um rumo dentro do país contra a adesão cega aos modismos das vanguardas estrangeiras. Outro poema dotado do mesmo senso de humor é o “Lundu do poeta difícil”, de Mário de Andrade, da obra A costela do grão cão, em que se rejeita a velha mentalidade de que muitos artistas brasileiros, divorciados de sua origem, se reconhecem e se integram perfeitamente à cultura importada.

Os pregadores do Modernismo são particularmente virulentos, inclinados à alegria barulhenta, ao riso e à parodia. Todavia, a vinculação de Drummond aos postulados de vinte e quatro evidencia-se de forma ambivalente. Seus poemas têm o tom do riso moderno, discreto e reflexivo. O poeta reage contra o artifício, o psicológico e o gratuito, torna-se participante e solidário, adquirindo a ambigüidade fundamental do homem. EmExplicação”, o poeta se apresenta, de antemão, como o brasileiro sem pretensão de criar para si novas paisagens ou pretender fugir para terras distantes; todos os gestos são de aceitação e todo o desejo é de viver a condição de ser gente entre sua gente. Quer o homem maduro estabelecer um elo de identidade com o bem e o mal de sua terra e quer ainda se julgar livre para criticar à vontade, numa atitude irônica, de não levar nada a sério, na certeza de que uma hora tudo se arranja da melhor maneira:

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra

e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.

Para mim, de todas das burrices a maior é suspirar pela Europa.

[...]

Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha ,

o jornal, mete a língua no governo,

queixa-se da vida (a vida está tão cara)

e no fim certo.

O adepto dos postulados modernistas valoriza a comunicação imediata, em íntimo contato com a fala coloquial. Versos longos, explicativos, conversa, tipo confissão e desabafo, característica de um tipo de público acostumado a discussões junto aos amigos: uns protestam, outros criticam, os mais indiferentes, dançam com os ombros; no final se reconciliam. É uma poética que se expressa como depoimento/documento de uma postura ideológica.

As posturas de descontentamento, protesto, ironia no entanto sem perda da esperança marcam as obras dos intelectuais modernistas. Em A rosa do povo, o poeta capta o sentimento triste do mundo assolado pela guerra, no entanto não perde a esperança na redenção e na utopia de uma mudança para a humanidade. Solidário e fraterno, o novo homem caminha com maturidade, descobrindo e experimentando, através de sua arte, a vida em meio ao caos: Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/ garanto que uma flor nasceu. [...] É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. (“A Flor e a Náusea”)

A partir desse momento histórico, os dois intelectuais se unem na defesa de um projeto artístico renovador em que a arte não é rota de fuga porém um modo de integrar-se à vida e à existência palpáveis. Trata-se da defesa de um novo estado de espírito apoiado na crença inabalável de que a arte tem uma função libertária e integradora, caso tenha como base o saber do artista moderno ligado à noção de alegria. Nesse contexto, a alegria aparece como uma aprovação incondicional a toda e qualquer forma de existência. O homem alegre, ao contrário do homem anatoliano, descobriu-se livre da servidão milenária imposta a si próprio e preocupa-se em viver a vida, adaptando-se a ela com seriedade e equilíbrio. O prazer escrevia Mário, na carta de 10 de novembro de 1924, estava em dar importância ao que se faz, numa articulação harmoniosa dos opostos, visando a totalidade, religado a tudo o que existe. Assim ele traça o perfil de sua personalidade como um tipo ousado que não tinha receios de experimentar o que a vida pode oferecer: “Eu sempre gostei muito de viver, de maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente”.

Na esteira desse pensamento estaria a postura de vida do artista moderno: um ser dionisíaco que integra em si vida e poesia, espírito e matéria, prazer e dor, vida e morte, felicidade e dor. Nas palavras de Mário, as contradições e tensões que povoam a existência humana não é empecilho à felicidade e cabia ao ser humano a tarefa de eliminar preceitos que norteavam e “escangalhavam” certos moços brasileiros. Ele explica:

Pra felicidade inconsciente por assim dizer física do homem comum qualquer temor qualquer dor é empecilho. Pra mim não porque minha sensibilidade exagerada, pela qual eu conheço por demais, a dor principia, a dor se verifica, a dor me faz sofrer, a dor acaba, a dor permanece na sua ação benéfica histórica moral, a dor é um dado de conhecimento, a dor é uma compreensão normalizante da vida, a própria dor é uma felicidade. E sabe qual é o resultado de tudo isso? É que a gente se torna feliz dentro da vida meu caro, é um conceito não egoístico porém maravilhoso condescendente que faz da gente uma criança. (Carta de 27 de maio de 1925: 129)

O raciocínio de Mário de Andrade procurava ajustar contas com o real e esse modo de encarar a vida exigia do sujeito o esforço de dissociar palavras que, de forma geral, aparecem vinculadas, como é o caso de confundir infelicidade com dor e associar sempre a palavra felicidade unicamente a prazer e satisfação. Segundo ele, o contrário de felicidade é infelicidade não é dor. Por isso afirma Losango cáqui: A própria dor é uma felicidade, se coincidir com a vontade consciente, corajosa e voluntária do sujeito. E o sofrimento que resulta da luta pela realização de um ideal não é infelicidade – é dor. Nessa ótica, a dor passa a ter um valor positivo, sem medo de assumir as responsabilidades que aparecem, deixando de lado as vaidades e preconceitos: tudo o que acontece na vida pode ser bom e pode trazer felicidade. “Antes de ser artista seja homem”, é o conselho ao jovem Drummond que parecia ter vergonha de casar, com medo do futuro.

De acordo com o poeta paulista, a felicidade apresenta-se como uma postura lúcida e positiva diante da vida, animada por um espírito crítico, desmistificador que utiliza sua inteligência para dissipar todas as ilusões que impedem o homem de pensar livremente. Tem pontos de contato com a filosofia nietzschiana do espírito livre, documentada na Gaia Ciência. , a sabedoria do espírito livre é comparada à sabedoria da águia que se lança por cima do estabelecido. E a frieza e desconfiança demonstradas significam uma negação que prepara o terreno para uma afirmação. o espírito livre é capaz de fugir à opressão, levando o homem a pensar com liberdade e a agir sem o deslumbramento do ilusório. O espírito livre de Nietszche aparece, portanto, como uma personagem dotada de traços maravilhosos. Ele é o grande cético, aquele que ilumina, penetra e traz à luz o conhecimento. Ao mesmo tempo, é audacioso e sedutor, aberto às experiências.

Na personagem do espírito livre, identifica-se o Mário de vinte influindo positivamente sobre o moço de Minas. Era o momento de superação de uma visão acanhada e provinciana. A necessidade de valorização do nacional exigia reflexões e questionamentos e era preciso dialogar com a tradição artística de seu tempo.


 

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos & Mário. Correspondência completa entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002.

––––––. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1998.

––––––. O mês modernista. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1994, p. 77-80.

ANDRADE, Mário de. Poesias completas. 5ª ed., São Paulo: Martins, 1979, v. 1 e 2.

MARQUES, Ivan. “Drummond entre o ser e as coisas”. In: Cult. Revista de Literatura. Ano VI, n. 62. São Paulo: Editora 17, p. 41-65.

MORAES, Marcos Antônio de (org.) Correspondência. Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Idusp/IEB, 2000.

MORAES, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

NIETSZCHE, F. A gaia ciência. 3ª ed., Lisboa: Guimarães, 1984.

SANTOS, Matildes Demetrio dos. Ao sol carta é farol. A correspondência de Mário de Andrade e outros missivistas. São Paulo: Annablume, 1998.


 


 

[1] Trecho da carta de 22 de novembro de 1924. ANDRADE, 2002: 56.

[2] Eles se denominavam o “Grupo da Estrela”, em homenagem ao nome do estabelecimento. Drummond, Pedro Nava, Gustavo Capanema Filho, Abgar Renault, João Guimarães Alves, Alphonsus de Guimarães, Ciro dos Anjos, dentre muitos outros, faziam parte do grupo.

[3] A sensibilidade de Mário na década de 20 o leva a abolir os antagonismos. Carta de 10 de novembro de 1924, em resposta à primeira carta de Drummond. Cf. p. 46.

[4] Na carta de fevereiro de 1923 a Manuel Bandeira, ele descreve a emoção de ter vivido o carnaval no Rio de Janeiro e menciona uma mulher fantasiada de baiana, que dançava com umfervor religioso”, alheia ao mundo exterior. Cf. MORAES, 2000: 84-85.

[5] Ler o artigo em O mês modernista 1994: 77-79. Neste volume, encontram-se também os textos de Sérgio Milliet, Manuel Bandeira, Martins de Almeida, Mário de Andrade e Prudente de Morais Neto, colaboradores nessa edição histórica.