FICÇÃO A SERVIÇO DA REALIDADE
EM “A HORA DA ESTRELA” DE CLARICE LISPECTOR

Darcy Piva Dessimoni (UNINCOR)
Aparecida Maria Nunes (
UNINCOR)

 

O que instiga a pesquisar esse assunto é a oportunidade de poder refletir e estabelecer parâmetros comparativos à relação realidade/ficção.

O objetivo maior seria delimitar como a ficção se faz realidade na sociedade, denunciando as desigualdades sociais, culturais, econômicas da sociedade contemporânea e a própria existência humana.

Por que se deseja tudo isso? Talvez por pensar que a sobrevivência depende de tais detalhes e, portanto, talvez os homens sejam capazes de compreender que não podem ser, ao mesmo tempo, estúpidos e livres. Uma população que não possa ou não deseja pensar sobre os seus problemas não ficará livre e independente por muito tempo. Daí pensar o paradigma ficção ou realidade para mudar o status quo da sociedade brasileira.

No desenvolver do trabalho, há necessidade para melhor compreensão do texto, delimitar criteriosamente o significado de ficção e realidade. Para tal questiona-se: O que significa ficção? Criação da imaginação, da fantasia, coisa sem existência real, apenas imaginário?

O texto de ficção expressa uma interpretação do real e do imaginário, passando a ter uma forma real ou mística, ou mesmo arquetípica a essa interpretação. É transformando o real em mítico ou arquetípico que a ficção o torna mais real.

Judith Grossmann explica como o artista demonstra todo seu desconforto com o real que se apresenta infeliz a seus olhos.

O ficcional significa, a quebra da ilusão em relação ao real, o descontentamento com as aparências, o eterno inverno desse descontentamento, feito gloriosa estação pelo aparecer da essência (GROSSMANN, 1982).

Focalize, agora, o que é realidade, “o real”.

O que Luckman expõe, revela que a realidade deve ser considerada a partir dos enfoques a que está sujeita e são determinantes da época. Cada vez que mudamos a nossa perspectiva sobre o mundo, ele apresenta uma nova fase. Conforme a nossa intenção ele se revela de um jeito.

O interesse sociológico nas questões da ‘realidade’ e do ‘conhecimento’ justifica-se assim inicialmente pelo fato de sua relatividade social. O que é ‘real para um monge tibetano pode não serreal para um homem de negócios americano. O ‘conhecimento’ do criminoso é diferente do ‘conhecimento’ do criminalista. (BERGER e LUCKMANN, 1990).

Toda construção humana seja na ciência, na arte, na filosofia ou na religião, trabalha com o real ou têm nele o seu fundamento, seu ponto de partida ou de chegada. O melhor a ser feito é questionar o sentido da vida humana que, dotada de um consciência reflexiva, construiu seus conceitos de realidade, a partir dos quais se exerce no mundo e se multiplica, alterando a cada momento sua visão de mundo.

É importante saber que realidade não é algo oferecido de graça, à disposição dos humanos. O homem não é um ser passivo que apenas grava aquilo que o choca ou eleva, mas ele que constrói sua realidade; o estranho é que sendo o construtor o homem não se apercebe assim, percebe-se como estando submetido à realidade, conduzido por forças naturais ou sociais sobre as quais ele não tem ou não pode ter controle algum.

A maneira de perceber, interpretar e de estabelecer relações entre as forças naturais ou sociais são características apenas do ser humano. Daí a noção da verdade ligada à noção de realidade, a realidade do cotidiano por excelência, na qual vivemos.

Platão, em o Mito da Caverna (PLATÃO, 1997: 7, 225-227) nos mostra que a visão de mundo das pessoas varia de acordo com o lugar que cada um ocupa no espaço geográfico, social, político, econômico, etc. “Não se pode falar de um real estático, pronto, pré-construído”.

Clarice Lispector, em sua condição de mulher, demonstra sua sensibilidade aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus personagens é serem sem relevância aos olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes...) mas ricos em sua interioridade. Ela faz os personagens viverem o processo chamado de epifania, ou seja, revelação, isto é, de repente, diante de ocorrências mínimas o personagem se descobre e revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.

Clarice Lispector não permite que a ficção esteja a serviço da realidade a não ser quando propositalmente assim o queira.

No decorrer da leitura, cada personagem do livro A hora da estrela (LISPECTOR, 1993: 44, 48, 55, 68, 70, 79, 102, 103) se reveste de instrumento canalizador denunciante dos problemas sociais gerados pelas desigualdades sociais, pelos interesses das classes dominantes em detrimento aos interesses das classes populares, a imposição de preceitos de vida e de valores, a solidão e o sofrimento do retirante na grande metrópole e num país do 3º mundo.

Por centenas de milhares de anos, o objetivo fundamental do homem foi sobreviver e a maior parte dos primeiros pensamentos humanos provavelmente servia a esse fim. E depois chegou o momento em que o homem não precisava apenas pensar ou apenas viver - mas em viver melhor, e viver melhor hoje requer que se posicione entre o que é ficção e o que é realidade.

Platão, que acreditava no reino das idéias como modelo de todas as coisas, dizia que o homem deveria ser educado para sair da obscuridade para a luz. O real para Platão era o ideal - o mundo das idéias; a cópia seria o mundo em que vivemos - o mundo dos sentidos e o simulacro, a cópia da cópia, a imitação inútil e perigosa.

No livro O que é ficção (WALTY, 1985), Ivete Lara questiona: não seria pois, a existência da ficção que nos permitiria pôr em causa a realidade tal como nós a percebemos? E que uma boa forma de se pensar sobre isso é verificando o espaço concedido à ficção em nossa sociedade, seja em forma de arte ou de qualquer outra manifestação? Portanto, onde está a ficção? Como convivemos com ela?

Se reparar bem, verá que ficção tem espaços bem delimitados na sociedade em que vivemos - o cinema, a TV, os livros, as revistas em quadrinhos etc. - mas que ela penetra até redutossagradoscomo a escola, a igreja, a família e se questiona, por que ela não é temida e proibida, como acontecia na República de Platão?

Ivete Lara considera que a sociedade está dividida em dois segmentos distintos: as coisas “sérias”, ligadas ao trabalho, à técnica, à ciência, ao progresso etc. - e as coisas não “sérias”, ligadas à diversão, ao lazer, ao riso, à fantasia, com o cuidado de ambas conviver estabelecendo limites para que a fantasia não ameace o real.

Relacionando ficção com o ato de criar, torna-se criação e a sociedade industrializada, progressista, subordina-se a outra palavra que se opõe àquela: produção.

Criação e produção tornam-se, portanto, palavras opostas. quem produz é valorizado.

Portanto, vê-se que a produção se liga ao senso comum ditado pela ideologia dominante, e a criação poderia se relacionar ao não senso e ameaçar a ordem instituída, o status quo. A sociedade teme tudo que é diferente e trata logo de assimilar aquilo que a ameaça. A nossa sociedade privilegia quem tem respostas e marginaliza quem insiste nas perguntas.

Criar é propor novas ordens, novos sistemas de pensamentos e novas maneiras de ver o mundo, logo a criação ameaça a ordem instituída, as bases em que a sociedade se apóia.

Segundo Freud,[1] o id é regido pelo princípio do prazer, o domínio do inconsciente. O ego é o mediador entre o id e o mundo externo funcionando como proteção contra agressões exteriores. O ego que substitui o princípio do prazer pelo princípio da realidade. O superego desempenha o papel da censura e repressão através da figura do poder. O ser humano adapta-se à realidade através de se ego, sua máscara social, assimilando inconscientemente as normas que controlam seu modo de ser e sobreviver. A fantasia, então, funciona como reduto da liberdade e está livre do princípio da realidade. Logo, a arte é a libertação do que foi reprimido pelo poder e pelo princípio da realidade que se subordina à ideologia dominante. Hoje, até os desejos e sonhos são controlados e até produzidos pela sociedade em que se vive.

A ficção a serviço da realidade torna-se corriqueira no mundo atual quando o trabalhador, através do merchandising, entrar em sua casa os sonhos do capitalismo através da televisão, das revistas, cinema, etc. Nesses casos, ao ver uma telenovela, ele, juntamente com a ficção, recebe uma dose maciça de realidade, vibrando com as atitudes do galã, as desventuras da mocinha, rindo das piadas, assimilando todos os valores que interessam à ideologia dominante. O consumismo estimulado pelas propagandas da manutenção da ordem social regente.

O merchandising é o exemplo maior da ideologia dominante. O anúncio é feito indiretamente durante a trama novelesca assistindo a um capítulo da novela, onde se idealiza a compra do carro do galã, da jóia da protagonista. Todos, crianças e adultos, direta e indiretamente são atingidos por esse recurso utilizado pelos interesses da classe que detém o poder.

“A fantasia está a serviço da realidade”. Essa ficção mata aquilo que deveria ser a sua essência, a magia, a poesia, a criação, e instaura o senso comum, o bom senso.

Quando a ficção é ficção? Quando o ser humano associa arte à criação e desliga-se dos critérios de avaliação e julgamento de valores. A ficção estaria a serviço não da realidade, mas da realização do homem com a libertação do eu e sua reconciliação com o todo.

Ligado ao verbo fazer, ao verbo criar, a ficção tem na arte o seu sentido original, como afirma Ivete Lara: A arte seria o veículo de libertação e, considerando o exposto, a ficção pode ser mais real o que se quer realidade, e o real pode ser mais ficcional que o que se quer ficcional.

Clarice Lispector em A hora da estrela olha o mito Macabéia como uma leitura da realidade, através de sua própria leitura enquanto personagem, pode-se ler com nitidez a sociedade de que ela faz parte.

É claro que como escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro - e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a humildemente - mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que não seria humildade - limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, que escrevia tão mal, tinha até o terceiro ano primário. (LISPECTOR, 1985: 29).

Quando a escritora se questiona por que escreve, de forma simples responde que antes de tudo ela aplicou o espírito da língua e assim, às vezes a forma é que faz o conteúdo. Escrevo e portanto não por causa da nordestina, mas por motivo de “força maior ", como se diz nos requerimentos oficiais, porforça de lei”. era a sua necessidade de comparar-se a Macabéia, sozinha no mundo hostil como ela mesma, pois eu também sou o escuro da noite. (LISPECTOR, 1993: 32)

Através de sua obra ficcional, critica a sociedade capitalista; a reação de cada um de acordo com sua cultura ao pressentir “o diferente”!

... sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. E minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. (LISPECTOR, 1993: 55)

Clarice Lispector, denuncia a forca do patrocinador, a forca da ficção a serviço da realidade ao criticar o refrigerante mais popular do mundo.

Também esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter que começar - pois não agüento a pressão dos fatos - o registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada, refrigerante esse espalhado por todos os países. Aliás foi ele quem patrocinou o último terremoto em Guatemala. Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de unhas, de sabão Aristolino e plástico mastigado. Tudo isso não impede que todos o amem com servilidade e sobrevivência. Também porque - e vou dizer agora uma coisa difícil que eu entendo - porque essa bebida que tem coca é hoje. Ela é um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente. (Idem, p. 38)

A ficção como criação e arte denunciando a ficção a serviço da realidade.

Quando a criatura se volta contra o criador, o homem não tem consciência de que somente ele é capaz de mudar a realidade e chora diante de um drama na TV quando no cotidiano, vira o rosto e ignora o menino de rua que o intercepta no trânsito.

“A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um réu". (LISPECTOR, 1993: 55)

Os sonhos de Olímpio em ser deputado é a oportunidade da escritora denunciar o despreparo com que muitos entram para a política, afinal, quem era ele? A ficção como denúncia da realidade:

– Sou muito inteligente, ainda vou ser deputado. E não é que ele dava para fazer discursos? Tinha o tom cantado e o palavreado seboso, próprio para quem abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem. No futuro, que eu não digo nesta história, que ele terminou mesmo deputado? E obrigando os outros a chamarem -no de doutor. (Idem, p. 63)

Segundo Clarrisse Fukelman, na obra A hora da estrela, através da ficção, Clarice Lispector denuncia a penúria do nordestino e a incomunicabilidade que este se sujeito fora de seus habitat sem, no entanto, roubar-lhe a identidade. Consegue também provocar reflexão sobre o sentimento de exílio que assalta o homem que se pergunta a que veio ao mundo:

“O sertanejo é antes de tudo um ser paciente. Eu o perdôo” (LISPECTOR, 1993: 83)

A ficção, como se pôde ver, pode estar a serviço do real instituído pela classe dominante ou pode mostrar a saída para clarear as idéias na edificação de um mundo diferente, que margeia em uma terceira posição que não é policiada por interesses redutores, lógicos, classificadores, mensuradores.

A ficção é uma forma de poder estar a serviço da realidade, entrando em nossa vida de forma massificante, controladora, com objetivos pré-definidos, ou pode encontrar a outra saída: estar a serviço da arte, da criação.

Vivemos em uma sociedade capitalista globalizada, o que torna quase impossível ignorar o poder do sistema influenciando nossas condutas, opiniões, a vida, de modo geral.

Ivete Lara condensa com clareza esse pensamento:

Condenada ou consagrada, a ficção não foge ao controle do sistema; quando escapa da censura explícita, encontra-se sob outros mecanismos controladores velados, pois, como vimos, o sistema exclui ou assimila, modificando em proveito próprio, qualquer elemento que o ameace. Assim, um discurso-denúncia pode ser esvaziado, neutralizado como se desativa uma bomba que pode destruir tudo o que se encontra à sua volta.

E como você viu, um dos mecanismos de desativação da bomba é a restrição do espaço, é a difusão da crença de que ficção é coisa indigna de crédito, puro meio de lazer, de distração. Por isso você ouve, tantas vezes, alguém dizer que não gosta de ir ao cinema para pensar, pois acha que cinema é para distrair, para esquecer dos problemas, O mesmo ocorre em relação aos livros, à música, à TV.

Não quero, com isso, negar a necessidade do lazer e até da catarse, da liberação de sentimentos reprimidos, nem quero negar a ficção, a arte possam servir a tal objetivo, mas não se pode reduzi-las a isso. A ficção é um discurso tão digno de crédito como outro qualquer, porque, como qualquer outro, ela faz uma leitura do real. Reduplicadora ou contestador, não importa, mas uma leitura não confiável tanto a da ciência ou a da história. Não se trata, é claro, de checar os dados narrados com os acontecidos, mas de refletir sobre a visão de mundo ali presente.

Narrativa verossímil ou absurda, não interessa, o que importa é o real re-velado por ela, e, mais ainda, a sua atitude crítica enquanto leitor, ouvinte ou espectador. (WALTY, 1985: 79)

A ficção como obra de arte é a pequena fresta que anuncia uma visão diferente da que é imposta. É através destas frestas que o leitor poderá se instalar com seu próprio contexto de vida e de ser humano como membro de uma sociedade.

Resta-nos coser para dentro (LISPECTOR, 1993: 5) como aconselha Clarice Lispector, pois, mais uma vez citando-a, “a vida é um soco no estômago.” (Idem, p. 102)


 

BIBLIOGRAFIA

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WALTY, Ivete Camargos. O que é ficção. São Paulo: Brasiliense, 1985.


 


 

[1] FREUD, S. G W.,XIII, 262; S. E., XIX, 34; Fr., 189 e FREUD, S. G W.,XV, 72; S. E., XXII, 66; Fr., 94.