O HINO CANTA/CONTA
A HISTÓRIA DE TRÊS CORAÇÕES

Lisa Paula Andrade Vilela de Oliveira (UNINCOR)
Marcelino Rodrigues da Silva
(UNINCOR)

“Se você tiver uma boa idéia, é melhor fazer uma canção”, já disse um famoso compositor brasileiro. Mas além de ser um veículo para uma boa idéia, a canção e a música como um todo também ajuda a pensar a sociedade e a história.

A palavra história costuma carregar uma duplicidade de sentido. Pode ser utilizada para designar a experiência humana em sua dimensão temporal, no seu processo de contínua transformação. História tende a se confundir , em tal caso, com a própria realidade humana. A mesma palavra, contudo, pode designar não a experiência humana em si, mas o seu relato. Neste outro caso, o termo história é sinônimo de historiografia, forma de registro da realidade.

Em qualquer sociedade, o desenrolar dos fatos que se sucedem a cada momento possui historicidade, isto é, pode ser entendido como um conjunto de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ocorrem no tempo. Em torno dessas relações, constrói-se uma memória que é significativa por meio de ritos, símbolos, valores e crenças.

“A memória onde cresce a História, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro” (JAQUES LE GOFF, 1990: 423)

Numa cidade, os espaços da memória transformados em patrimônio estão em toda parte, são variados, dependem da própria história do lugar. Correspondem a quaisquer objetos, monumentos, praças, espaços da natureza variada que representam acontecimentos capazes de , coletivamente, aguçar a memória das pessoas que ali vivem. Os lugares da memória não são, necessariamente, espaços físicos. Podem ser manifestações artísticas, musicais, danças etc.

Maurice Halbwachs na análise da “memória coletiva” enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que estruturam nossa memória e que a inserem na memória da coletividade a que pertencemos.

A memória, esta operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra em tentativas mais ou menos consciente de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade.

A produção da memória é, por si mesma, um gesto político e cultural. Os fatos rememorados na narrativa ou nos registros representam a sua realidade, como elas a constróem.

Cada povo possui uma série de características próprias e exclusivas que marcam a sua identidade, a sua cara, que reúne não apenas aspectos físicos ou idioma, mas que conjuga também valores morais, religiosos, culturais, históricos ... diferenças sutis e difíceis de conceituar, mas que podemos reconhecer como formadora de sentimento patriótico.

A busca de nossa identidade está relacionada a duas questões: - que elementos históricos e culturais compões a identidade nacional? / - como ela relaciona com a nossa memória como povo e com a construção do patrimônio cultural?

Através da análise de uma produção literária “O Hino de Três Corações” conheceremos um pouco da história e da construção da comunidade tricordiana.

O Hino de Três Corações foi composto pelo jornalista e poeta tricordiano Darcy Brasil para a festa da cidade, em 23 de setembro de 1961.

A letra do Hino é um sintagma (combinação de signos) narrativo de natureza histórica e linear. Para contar a história de Três Corações, Darcy Brasil integra duas versões míticas e uma versão histórica.

A narrativa conta a história de três boiadeiros de Goiás que chegando nesta terra (“E do rio as três voltas no chão” - representando nosso primeiro topônimo, ou seja, as três voltas que o rio faz ao redor da cidade desenhando três corações) conhecem três moças: Jacira, Juçara e Moema - cujos nomes parecem ser de origem indígena, pois, os primeiros habitantes desta terra foram os índios cataguases, no século XVI, antes do internamento dos bandeirante pelas Minas Gerais, e, ao partirem, deixam os três corações chorando. Mas, não chega a ser uma desgraça, pois, as velhas missões conseguem consagrar os corações das três “Marias” a Jesus, Maria e José.

O Hino, também faz, implicitamente, referência, a versão histórica. O português Capitão Tomé Martins da Costa embriagado pela abundância das lavras de ouro, estabeleceu nesta terra e em sua propriedade - a fazenda Rio Verde - mandando construir a primeira Capela, em 1761. Capitão Tomé consagrou a capela aos Santíssimos Corações de Jesus, Maria e José. E, como a Capela não tinha imagens, mandou talhar “três corações” em madeira, originando o nome da cidade (segundo topônimo da localidade). De acordo com os estudiosos de Três Corações esta é a versão verdadeira.

A partir daí, a cidade começou a desenvolver (“Foi crescendo a Princesa de Minas”).

Segundo dados históricos, em 1764, o governador de Minas Gerais - Dom Luiz Lobo Diogo da Silva - de passagem pela região para demarcação de limites, visitou Tomé em sua fazenda, encontrando alguns casebres ao redor da capela que nada mais era do que a sobrevivência das temárias incursões das famosas bandeiras.

Em 1790, o Capitão Domingues Dias de Barros, genro do Capitão Tomé Martins da Costa, pediu licença para construir uma ermida no lugar da antiga Capela, que foi inaugurada em 1801, tendo seu altar-mor talhado pelo mestre Ataíde.

Em Julho de 1832, foi instalada a freguesia de Três Corações do Rio Verde e a paróquia dos Sacratíssimos Corações. Em 1860, houve grandes comemorações na elevação à Vila da Freguesia de Três Corações do Rio Verde e na inauguração da Igreja Matriz. Em 1873, o presidente da província de Minas Gerais sancionou a lei incorporando à Vila o território pertencente à Freguesia.

O município teve um grande desenvolvimento em 1884, com a visita de Imperador Dom Pedro II e a família Imperial para a inauguração da estrada de ferro Minas & Rio. A repercussão da visita foi tão grande que três meses depois, em 23 de setembro de 1884, a Vila foi emancipada, sendo elevada a categoria de cidade.

A Feira de Gado inaugurada em 1900, também foi muito importante para o progresso da cidade. E, com o título de “Feira de Gado” o jornal local “ A Luta” publicou, em seu número de 25 de fevereiro de 1900, o seguinte:

O ilustre Mineiro Dr. Penido Filho, deputado federal pelo 4º distrito, e que se acha em Belo Horizonte, telegrafou para o “País” dando a grata notícia do estabelecimento das feiras de gado em Benfica e Três Corações. Eis o telegrama:

O presidente do Estado, altamente interessado pelo desenvolvimento da indústria pastoril, resolveu estabelecer as feiras de gado em Três Corações e Benfica, em condições muito favoráveis. Dentro de quatro ou cinco dias será expedido regulamento e chamada concorrência. (FONSECA, 1984:.77)

Em 07 de setembro de 1923, Três Corações do Rio Verde passou a dominar apenas Três Corações.

Outras personalidades importantes continuaram visitando nossa cidade, como: o presidente Getúlio Vargas, os governadores Milton Campos e Juscelino Kubitscheck. Juscelino inaugurou a ponte do Rio Verde, nosso aeroporto e como candidato a Presidente da República, falou aos tricordianos no coreto da praça Odilon Rezende de Andrade.

Tanto os dados históricos mencionados acima como a letra do Hino de Três Corações nos mostram a construção da comunidade tricordiana de uma forma tranqüila, bonita, próspera e rica.

Nestas serras de doces colinas

Sob um céu sempre igual, sempre azul

O recanto mais belo do Sul

Foi crescendo a Princesa de Minas

A beleza que doura e que veste.

É agradável a perspectiva desta localidade: cobre-a um céu benigno, rodeiam-na belos e produtivos campos, corre ao pé o importante Rio Verde, passando em pequena distância o Rio do Peixe; encerra ela uma população a tudo laboriosa, e isso deve a formosa freguesia a fundada esperança que tem de próspero futuro.

É uma versão unívoca, contada do ponto de vista dos vencedores, ou seja, dos que foram beneficiados. Pois não fala em nenhum momento dos trabalhadores das lavras de ouro, das lavouras personagens muito importantes na construção da cidade.

A letra do Hino, no início, faz referência a pobreza (“Boiadeiros” / “Tropeiros”) e ao sofrimento (“três Marias deixaram a chorar”), mas predomina a exaltação da riqueza e da beleza (“Princesa” / “Beleza que doura e que veste” / “Recanto mais belo do Sul - uma referência ao Sul de Minas, sinônimo de região rica).

O refrão convida as pessoas a conhecerem a cidade de Três Corações, afirmando ser uma cidade rica, formosa, tranqüila e de pessoas unidas.

A composição musical é uma marcha (muito usada por ser um ritmo utilizado durante a marcha dos soldados nas paradas militares ao longo dos séculos) e a letra, uma narrativa épica que mostra o passado de Três Corações impondo sua identidade.

 

ANEXO

HINO DE TRÊS CORAÇÕES Letra: Darcy Brasil Música: D.C. Doudement De Goiás eram os três boiadeiros E do rio as três voltas no chão... Três violas traziam os tropeiros - Fundadores do nosso torrão Ao deixarem esta terra morena Três Marias deixaram a chorar: É Jacira, é Juçara, é Moema De olhos verdes, das cores do mar Rezam as lendas que velhas missões Paladinas de Deus e da Fé, Consagraram estes três corações A Jesus, a Maria e a José Nestas serras de doces colinas Sob um céu sem igual, sempre azul Foi crescendo a Princesa de Minas - O recanto mais belo do Sul Refrão: Vinde ver, brasileiros do Leste E do Sul, ou de outros rincões A beleza que doura e que veste A cidade de Três Corações

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Elementos da Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1993.

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 1972.

FONSECA, Lygia. Contando Histórias. Pouso Alegre: Tipografia Profissional, 1980.

FONSECA, João Garcia da. Três Corações e sua história. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1984.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

KUPSTAS, Márcia (org.). Identidade Nacional em Debate. São Paulo: Moderna, 1997.

MIRANDA, Wander Melo. As fronteiras internas da nação. Anais do 5º Congresso da Abralic. Cânones e contextos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SANTOS, Myrian S. dos. O pesadelo - a amnésia coletiva; um estudo sobre os conceitos de memória, tradição e traço do passado. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v.3, nº 38, 1993.

SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. Livraria Almedina, 1982.

SOUSA, Benefredo de. Boiada Vai, Máquina Vem!... Tipografia Profissional. Pouso Alegre, 1975.

SOUSA, Benefredo de. Três Corações Adentro. Gráfica Véritas, 1982.

SOUZA, Eneida Maria de. Sujeito e Identidade Cultural. Revista de Literatura Comparada, nº1, mar. 1991, p.34-40.

Veredas - Formação Superior de Professores: módulo 5 - Volume 1/SEE-MG; organizadoras: Maria Umbelina Caiafa Salgado, Glaura Vasques de Miranda - Belo Horizonte: SEE-MG, 2004.