O INTERTEXTO
NA PROSA-POÉTICA DE MÁRIO QUINTANA

Marcos Borba (UERJ)

Introdução

Desde os primeiros contatos, ainda na adolescência, com a obra de Mário Quintana, o “estilo do inesperado” despertou minha curiosidade. O autor apresentava-se multifacetado, ora com características românticas, ora realistas, outras surrealistas e outras ainda com visão irônica (modernista) em relação à vida sem sentido do homem contemporâneo. Tudo isto, no entanto, com uma criatividade desconcertante através de textos marcados por enganadora simplicidade.

Pode-se constatar a afirmação acima em passagens como o poema O auto-retrato em que o velho impregnado de reminiscências da infância adverte-nos sobre seu (nosso) futuro:

No final que restará?

Um desenho de criança...

corrigido por um louco!

Em outros momentos inspirados, o cidadão do século XX, sem deixar de ser de todos os tempos, discute as suas (nossas) eternas dúvidas como únicas certezas:

O poeta

Venho do fundo das Eras

Quando o mundo mal nascia...

Sou tão antigo e tão novo

como a luz de cada dia!”

e

Interrogações

Nenhuma pergunta demanda resposta

cada verso é uma pergunta do poeta

E as estrelas...

as flores...

o mundo...

são perguntas de Deus.

Às verdades científicas contrapõe as (in)certezas individuais/universais. Os jogos com conceitos, dogmas, certezas e ilusões desvendam o poeta que só acredita naquilo que, no momento, parece sentir como verdade. Apesar de que esta pode e deve mudar a cada momento devido às infinitas possibilidades de “verdades” existentes em cada novo dia:

POEMA

E se o que tanto buscas só existe

em tua límpida loucura

¾ que importa? ¾

isso...

exatamente isso

é o teu diamante mais puro

Cabe observar que a razão e a emoção amalgamam-se neste poeta universal de Porto Alegre a fim de revelar outros meios de apreender o inapreensível. Em outros termos, Quintana empreende a busca da “cor do invisível”.

As contradições, em um mundo com tantas certezas absurdas, afloram em poesias impregnadas de antíteses, paradoxos, oxímoros que acabam por desvendar a missão do poeta.

Simultaneidade

¾ Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo!

Eu creio em Deus! Deus é um absurdo!

¾ Eu vou me matar! ¾ Eu quero viver!

¾ Você é louco?

¾ Não, sou poeta.

No poema, Quintana deixa claro que o Poeta não pode se fechar em um mundo estático, mas antes refletir todas as opções de percepção de mundo em qualquer momento da vida do homem.

Cumpre salientar que em “Simultaneidade” Mário dialoga com o metapoema “Motivo” de Cecília Meireles em que ela afirmava:

... Eu canto porque o instante existe

E minha vida está completa

Não sou alegre

Nem sou triste

Sou Poeta.

Este aspecto fundamental na obra de Quintana ¾ suas constantes releituras de outros autores, do mundo e de si mesmo ¾ levou-me a empreender esta pesquisa sobre o intertexto na prosa-poética do autor.

Considerações teóricas

Durante a década de 90, os estudos lingüísticos privilegiaram a investigação do texto em função das noções de coerência e coesão. Esta perspectiva inovadora questiona a visão reducionista da gramática tradicional que fragmentava o texto enfatizando a classificação de orações e a análise de termos. A nova abordagem recebe suporte teórico da Lingüística Textual (LT) e da Análise do Discurso (AD). Diversos trabalhos surgem, destacando-se três estudos: Beaugrande & Dressler, Halliday & Hasan e Charolles.

No Brasil, tais estudos tornam-se a base para as pesquisas de Koch, Fávero, Fiorin, Costa Val, Valente entre outros.

Tanto a Lingüística Textual quanto a Análise do Discurso fazem do texto a fonte de onde desenvolvem suas teorias.

Entre as várias definições para texto, destacam-se as seguintes de Halliday & Hasan: “uma unidade lingüística concreta em uma dada interação comunicativa” ou “a palavra texto é usada em lingüística para referir-se a qualquer passagem, falada ou escrita, de qualquer tamanho, que realmente forma um todo unificado”. (Halliday & Hasan)

Outro princípio fundamental para esta abordagem é a textualidade, ou seja, “o conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto, e não um amontoado de frases.” (Halliday & Hasan)

Mas, o que seria coerência e coesão em um texto dado?

Para Fávero, no livro Coesão e coerência textuais, o princípio da coerência é o da unidade de sentido do texto, isto é, ela estaria ligada ao nível macrotextual enquanto que a coesão, “ligação das idéias do texto” estaria no nível microtextual ou o da realização concreta do texto.

Fávero destaca 3 (três) aspectos para uma boa compreensão de um texto, a saber:

1º) o pragmático: refere-se ao funcionamento, à atuação informacional e comunicativa;

2º) o semântico-conceitual: relativo à sua coerência;e,

3º) o formal: concernente à sua coesão.

A partir desses pontos de vista é possível empreender diversas análises de um mesmo texto.

Beaugrande & Dressler, na obra Introduction to Text Linguistics, por sua vez, propõem sete princípios da textualidade. Os dois primeiros, a coerência e a coesão referem-se aos elementos lingüísticos e conceituais do texto. Ao lado desses, outros cinco (aceitabilidade, intencionalidade, informatividade,intertextualidade e situacionalidade) tratariam mais do aspecto pragmático do processo comunicativo. A aceitabilidade refere-se à atitude do receptor frente aos textos, isto é, se os textos apresentam relevância ou utilidade para ele.

A intencionalidade concerne à atitude do autor que busca apresentar um texto coerente e coesivo, ou seja, o remetente intenta criar um texto com sentido para o destinatário.

Cabe ressaltar o elo de ligação forte entre a aceitabilidade e a intencionalidade, já que a primeira depende da segunda.

Outro princípio essencial, a informatividade procura alcançar o equilíbrio entre informações novas ou não. Isto se dá porque, tanto o excesso quanto a escassez de dados pode prejudicar o entendimento de um texto.

Convém lembrar que o conhecimento de mundo partilhado entre o autor e o receptor facilita sobremaneira a compreensão da mensagem.

O fenômeno da relação dialógica entre textos ou intertextualidade ressalta como fundamental para o entendimento do texto. Segundo Laurent Jenny, ela pode ser: a) interna: quando o autor cita a si próprio; ou b) externa: quando cita outros autores.

A intertextualidade externa comporta uma subdivisão, a saber: a) explícita: quando há a citação na íntegra de frase, verso ou fragmento de texto; e b) implícita: quando ocorre a citação parcial, modificada.

Não me parece ocioso ressaltar que os meios de comunicação utilizam em larga escala o recurso da intertextualidade ou intertexto. (ex: Propaganda de fábrica de automóveis retomando a expressão popular cristalizada “Só no dia de São Nunca!”com nova leitura.)

Cumpre diferençar a intertextualidade, isto é, o trabalho consciente de transformação e assimilação de vários textos em um texto centralizador com sentido, da soma confusa e misteriosa de influências.

O último princípio, o da situacionalidade, trata dos fatores relevantes de um texto em uma situação comunicativa.

Neste momento, parece-me oportuno citar as conclusões apresentadas por Halliday & Hasan sobre coesão e coerência:

O conceito de coesão é semântico; refere-se às relações de significado que existem dentro do texto, e que o definem como um texto. A coesão ocorre quando a interpretação de algum elemento do discurso é dependente de um outro. Um pressupõe o outro, no sentido de que ele não pode ser efetivamente decodificado exceto por referir-se ao outro.

Voltando à intertextualidade, objetivo de nosso estudo, podemos afirmar que a externa prevalece sobre a interna, pois esta última, amiúde, pode ser vista como “demonstração de vaidade ou cabotinismo” (Valente: 181). No entanto, a intertextualidade interna pode revelar, no contexto da obra de um autor, uma reflexão, ou melhor, uma mudança de rumo na visão do escritor sobre o mundo ou até sobre sua própria poética.

A intertextualidade externa implícita exige do receptor / leitor um conhecimento partilhado de mundo maior, caso contrário o destinatário não conseguirá decodificar a mensagem:

Fatalidade

O que mais enfurece o vento são esses poetas inveterados que o fazem rimar com lamento.

No poema acima, Quintana, de forma irônica, critica certas escolas que valorizariam apenas a sonoridade (rima), não se importando com o conteúdo, com a mensagem da poesia.

Laurent Jenny, no artigo “A estratégia da forma” inserido no livro “Poétique” define intertextualidade como “a soma dos textos existentes” (p.21). Tal conceito nos remete ao de polifonia e ao de dialogismo de Bakhtin. Em outros termos, poder-se-ia afirmar que cada novo texto ou se apresenta como uma “estilização” (convergente/concordante) ou como uma “paródia” (divergente/discordante) de outro (s) texto (s) anteriormente escritos.

Affonso Romano, sobre o assunto, divide um novo texto em “paródia” ou “paráfrase”. O consagrado escritor define esta como “dizer-se a mesma coisa com outras palavras”, ou seja, fazer-se a reescritura de um texto.

Análise de textos de Quintana
segundo estudo e divisão
de Laurent Jenny de Intertextualidade

Com base nos conceitos aqui expostos, seguem-se comentários sobre textos de Mário Quintana (retirados, principalmente, do livro Caderno H) em que a intertextualidade encontra-se bem marcada.

Intertextualidade interna: quando o autor cita a si próprio

Cabe relembrar que se trata de um tipo mais raro porque pode revelar vaidade do autor. No entanto, num sentido maior, pode assinalar uma revisão na visão de mundo ou na concepção de arte do autor.

Texto 1: Canção de muito longe

Foi-por-causa-do-bar-quei-ro

E todas as noites, sob o velho céu arqueado de bugigangas,

A mesma canção jubilosa se erguia.

A canoooavirou

Quem fez ela virar? Uma voz perguntava.

Os luares extáticos...

A noite parada...

Foi por causa do barqueiro

Que não soube remar. (Nova Antologia Poética, p.16)

Texto 2: Segunda canção de muito longe

Havia um corredor que fazia cotovelo:

Um mistério encanando com outro mistério, no escuro...

(...)

Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos...

As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,

O chiar das chaleiras...

Onde andará agora o pince-nez da tia Tula

Que ela não achava nunca?

A pobre não chegou a terminar a Toutinegre do Moinho,

Que saía em folhetim no Correio do Povo!...

A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.

Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.

E ela nem se voltou para trás! (Nova Antologia Poética, p.28)

Texto 3: Terceira canção de muito longe

Da última vez que atravessei aquele corredor escuro

Ele estava cheio de passarinhos mortos...

(Nova Antologia Poética, p. 88)

A intertextualidade começa com os títulos. No texto 1, embora a palavra “primeira” não apareça explícita, parece evidente. Esta canção de muito longe, uma cantiga de roda (“a canoa virou”) remete às brincadeiras de infância, onde a presença da morte ainda não é nitidamente vislumbrada. Já na segunda, a morte da tia Tula, “dobrando aquele corredor escuro” revela a tomada de consciência da “dama branca” ( famosa metáfora de Manuel Bandeira) por parte do autor. Na terceira e “última vez que atravessei aquele corredor escuro / Ele estava cheio de passarinhos mortos...”. Aqui a cotidianização da morte emerge por meio dos adjetivos “cheio” e “mortos”. A metaforização da morte através das expressões “a canoa virou” (texto 1) e “aquele corredor escuro” (textos 2 e 3) demonstram as diversas visões a respeito da morte em etapas diferentes da vida e da obra do poeta.

Intertextualidade externa: quando cita outro (s) autor (es)
e/ou outro (s) gênero (s) de texto

Este tipo de conversa com outros textos pode ser:

1) Explícita: quando ocorre a citação na íntegra de uma frase, um verso ou fragmento de texto.

O mundo de Deus

Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que os primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu.

Porque, se deus é paz e paz é silêncio afinal, deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer estas palavras de um personagem de Balzac: “O deserto é Deus sem os homens”.

(Caderno H, p.3)

A citação de uma frase do afamado romancista francês assinala uma intertextualidade externa explícita. Parece-me haver coincidência entre a visão de Balzac e a de Quintana sobre como seria o mundo de Deus.

Cabe ressaltar outros diálogos implícitos com as declarações dos astronautas russos e americano sobre o encontro ou desencontro com Deus na lua.

2) Implícita: quando há uma citação parcial, modificada.

A herança

Se eu fosse um iluminado, com que habilitações poderia eu distribuir a minha carne e o meu sangue? Apenas diria aos discípulos famintos:

¾ Eis aqui os meus ossos. (Caderno H, p.2)

A intertextualidade externa implícita aqui se dá com a fala de Jesus aos seus apóstolos na última ceia. Naquele momento, o iluminado oferece a sua carne e o seu sangue. Quintana, parodisticamente, oferece os seus ossos, talvez insinuando que a humanidade não merecesse as partes nobres do corpo. Em outros termos, para quem é a “herança”, ossos bastam.

Versículo inédito do Gênesis

E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra de Criação. (Caderno H, p.6)

Quintana implicitamente menciona passagem do Gênesis sobre a Criação do mundo. Naquela, no sétimo dia, depois de ter criado tudo, Deus descansou. Mário deixa evidente a missão “divina” dos poetas: continuar “a obra de Criação”. Este texto lembra um metapoema do autor que reforça o caráter inovador da poesia:

O poema

O poema é um objeto súbito:

Os outros objetos já existiam... (Caderno H, p.64)

Conclusão

O eterno diálogo entre os textos parece ser a maneira que o homem descobriu para estar sempre inovando sem esquecer-se da tradição. Nas palavras de Laurent Jenny “Repetir para delimitar. Falar para obliterar. Ou então, pacientemente, negar para ultrapassar”. Em outros termos, a intertextualidade é a retomada da palavra para subvertê-la em um novo contexto.

Em Mário Quintana, mesmo sem querer, herdeiro não só das práticas dos modernistas de primeira hora como Oswald de Andrade (com seus poemas-piada) e Mário de Andrade, mas também das vanguardas contemporâneas, a prática intertextual abarca relações com o sujeito, o inconsciente e a ideologia.

Cabe citar o questionamento de Laurent Jenny: “Se o sujeito é verdadeiramente esse ser mumificado vivo pelos códigos sociais que cercam o seu cotidiano, que melhor ferramenta haverá do que a intertextualidade para quebrar a argila dos velhos discursos?”.

Em suma, o recurso da intertextualidade apresenta-se como a grande arma do homem contemporâneo para pôr em xeque os conceitos, dogmas, preceitos, regras que insistem em aprisioná-lo. Através dela pode-se criticar o peso do passado (sem negá-lo) para se poder sonhar com a gestação do novo que se entrevê nas brumas do horizonte.

Bibliografia

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