O Jogo da Inocência:
uma
experiência acre-doce

Maria Mercedes Ribeiro de Barros (UERJ)

 

Esta comunicação é mais um trajeto do que propriamente uma conclusão, que se insere numa investigação mais ampla, focada na investigação das estratégias de que se valem poetas e ficcionistas, ao lidar com a temática da “perda da inocência”, sempre que haja o protagonismo de crianças na passagem da Infância para a Adolescência, ou enredos que abordem a questão. O que observo é que essa passagem é sempre encarada como perda da inocência.

A temática da “perda da inocência” opera num “entre-lugar”, entre os limites do visível e do invisível, do dizível e do indizível. Em outras palavras: quando o autor trabalha com a “perda da inocência”, ele opera com o “silêncio”, com a necessidade de dizer, mas, ao mesmo tempo, o direito de manter algo em segredo. Nesta linha de raciocínio, cito Jacques Derrida, que diz: “Um texto é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo[1].

Um texto que sabe dosar o que ocultar e o que revelar é um texto que não se esgota, pois seus espaços vazios se acham disponíveis para o leitor. Ler um texto passa, assim, a representar uma “partida individualentre texto e leitor. O jogo é posto em movimento a partir das diferenças entre os sistemas extratextuais e intratextuais: do movimento contínuo entre os mundos intratextual e extratextual, ou seja, do encontro das diferenças – e conseqüente desejo de erradicação das mesmas, num constante ir e vir –, daí nasce um jogodual”, que, ao mesmo tempo em que promove a diferença entre os dois mundos (da realidade e da ficção), luta para erradicar essa diferença, entendendo-se comoerradicar essa diferença” a chegada a um resultado ao final da leitura, isto é, o entendimento da “moral da história”. De forma paradoxal, o jogo procura preservar a diferença que ele mesmo procura dissimular.

A partir do entendimento de que o texto comporta em si diferentes jogos, o propósito desta comunicação é tentar demonstrar como a temática do jogo – filosoficamente desenvolvida por Immanuel Kant, Friedrich Schiller e Colas Duflo, apenas para citar alguns de seus mais importantes debatedores – serve como critério para a leitura do conto Preciosidade, de Clarice Lispector, conto que integra a coletânea intitulada Laços de Família. A leitura que ora se pretende fazer está voltada para a temática do jogo em algumas de suas facetas – o jogo sob o prisma filosófico, o jogo textual praticado pela autora, bem como o jogo praticado pela protagonista.

Desde Aristóteles, o jogo era aceito como prática infantil e, assim o sendo, para que, de uma atividade menor viesse a galgar o status de objeto de estudo filosófico, seria necessário que a criança fosse olhada com interesse pela sociedade, o que ocorrerá a partir do século XVI. É deste período a obra De Pueris Instituendis (1529), de Erasmo de Roterdam, que entende o jogo como uma prática com fins educativos. Ainda no século XVI, Pascal lança um novo olhar sobre o jogo, sob o enfoque matemático. No século XVII, dentro da mesma linha de pensamento, também com preocupações matemáticas, Leipzig confere ao jogo um lugar de destaque em seu estudo sobre as probabilidades estatísticas[2].

No século XVIII, Immanuel Kant, na Crítica da Faculdade do Juízo, vai ressaltar o papel do jogo como mediador entre os juízos teórico e prático e associar a idéia de fenômeno estético ao “livre jogo das faculdadesracional e sensível, ou seja, Kant essa interação sujeito-objeto como um jogo[3] que varia de indivíduo para indivíduo. A realidade pode não ser a mesma para dois sujeitos, que cada indivíduo tem sua própria forma de ser sensibilizado – com prazer ou desprazer – pelas coisas que o cercam. Neste jogo kantiano das faculdades – seja envolvendo a imaginação e o entendimento, no que concerne ao Belo, seja envolvendo a razão e a imaginação, no que tange ao Sublime – cabe à imaginação um papel secundário, como mera encarregada de dar subsídios à razão, esta, sim, a faculdade que controla, organiza e estrutura o mundo.

É também do século XVIII a obra Emílio ou de l’éducation, de Jean-Jacques Rousseau, obra na qual a Educação assume um lugar de destaque. Embora considere o jogo no adulto “o recurso de um desocupado” (Apud DUFLO, 1999: 54), Rousseau vai tolerar e até defender o jogo na infância, alegando ser ele necessário e educativo. De acordo com Rousseau, ao se submeter livre e prazerosamente às regras do jogo – auto-impostas ou impostas por terceiros –, a criança aprende não apenas o conceito de liberdade como também se prepara para o convívio social e para o ingresso no mundo do trabalho.[4] (Cf. DUFLO, 1999: 57) Seguindo a mesma linha de raciocínio de Rousseau, no século XX, Jean Château afirma que “a infância tem (...) por objetivo o treinamento pelo jogo das funções tanto psicológicas quanto psíquicas” (CHÂTEAU, 1987: 15). O jogo conquista, assim, o lugar de “centro da infância”.

Ainda no século XVIII, as idéias de Kant se converterão no trampolim para a filosofia estética do filósofo pré-romântico que mais lhe deu desenvolvimento. Trata-se de Schiller, a quem se deve o mérito de haver retirado o jogo do âmbito da discussão exclusivamente matemática ou moral, para lhe destinar o papel de mediador entre as preocupações científicas e as preocupações estéticas, esse lugar híbrido, mesclado ou intermediário, que não cabia na organização da crítica kantiana, mas o próprio Kant sabia que era o lugar mais propriamente da expressão humana – o lugar das passagens. Segundo Schiller[5], somente o jogo consegue ampliar a natureza do homem, desdobrando “de uma vez sua natureza dupla” (SCHILLER, 2002: 79), e, assim, tornando o homem completo. É de Schiller a máxima que define o homem, na sua relação com os jogos: “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga”. (SCHILLER, 2002: 80)

É na esteira dessas reflexões que se situa nossa leitura do conto Preciosidade, de Clarice Lispector. Interessa-nos entender o jogo praticado pela protagonista adolescente, jogo esse que é parte integrante do jogo textual “jogado” entre autora e texto, que, por sua vez, terá um final “epifânico”, fruto do jogo livre praticado pelas faculdades racionais e sensíveis (razão e imaginação) do leitor. Embora o repertório textual deste conto remeta ao cotidiano simples de uma menina de 15 anossua rotina diária casa-escola-casa –, Preciosidade é um exemplo de como o autor pode transformar o que é rotineiro, no mundo real, em algo inusitado, que irá conduzir o leitor ao inesperado e ao sublime, sublinhando o indizível e o interdito, dentro de uma temática absolutamente familiar e atemporal.

Preciosidade fala de desejo e tensão. As perspectivas do narrador e da protagonista transmitem a tensão entre o desejo vital de ser amada e admirada e o medo da entrega, expresso numa barreira construída entre a protagonista e as pessoas que estão fora do convívio familiar. Ao desejo reprimido da menina – o de ser admirada por todos - junta-se o desejo de “não-ser” olhada por ninguém, no trajeto da casa para a escola e da escola para casa. A atmosfera de perigo que perpassa todo o conto é fruto de uma eficaz estratégia textual vinculada à perspectiva da personagem adolescente. Com exceção da sala de aula e dos limites de sua casa, o perigo está em toda parte. Ao pressentir o perigo, a protagonista apela para o supra-sensível e assume um comportamento quase religioso. Razão e Imaginação caminham “de mãos dadas” durante grande parte da narrativa, e o melhor exemplo desta convivência pacífica está no jogo praticado pela personagem fora dos limites de sua casa. É menos um jogo de interesse como o são os jogos de sorte – do que um jogo de pensamentos. Sob regras auto-impostas, o jogo da nossa protagonista, livre de qualquer interesse, além de dar vida à sua rotina, vai proporcionar-lhe um sentimento de plenitude, de “poder supremo” e de afirmação do seu eu.

O conto Preciosidade está estruturado sobre a linha tênue que separa o cotidiano e o caos: entre eles há uma rotina de medo que culmina no terror. A tensão gera dois campos semânticos em torno de religião e guerra. Quanto a esta última, a protagonista se dedica a um jogo meticulosamente planejado – a “batalha das ruas” – com direito a andar como um soldado, cerco, enfrentamento, silêncio de trincheira, recuo, trégua, perigos, feitos heróicos, pernas heróicas, coragem em continuar e sapateado de vitória. Ela “nascera para a dificuldade”, cultuava o destino ignorado e, portanto, tinha que avançar: “Como recuar, e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás de uma porta?” Ela admite que o enfrentamento no jogo não é fruto da coragem, mas, sim, de umdom” – “a grande vocação para um destino”. (LISPECTOR, 1998: 84-90)

O jogo textual praticado em Preciosidade não comporta o uso do ornamento nem de figuras de linguagem, que poderiam vir a reduzir o potencial de emoção no pólo estético. A ausência de “desvios”, além de evitar o efeito “anti-clímax”, leva à construção da atmosfera necessária ao final “epifânico”. Notam-se ainda tanto o uso de orações curtas, que evitam o afrouxamento do jogo do sublime, como também o uso de orações sem conectivos, bem mais ágeis, eficientes na transmissão de (des)carga emocional, no fluxo ininterrupto da leitura.

A transformação da “preciosa” infante-adolescente vai ocorrer numa manhã aparentemente igual às outras. A caminho da escola, ainda na escuridão que precede o amanhecer, a menina dois homens vindo em sua direção, como se houvessem saído de “dentro do vapor”. Ela protagoniza, então, um jogo de sensações que vai culminar numa seqüência de terror: razão e imaginação entram em conflito. O fenômeno do sublime ocorre quando, na obscuridade da rua, a personagem tenta, a princípio, fazer um juízo lógico da situação. Rapidamente, decide-se pela continuação da prática do “jogo habitual”. Neste jogo – seguindo o raciocínio kantiano do sublimeembora a razão exija que a imaginação a acompanhe, tal não ocorre: a razão se perdida, abalada, não maistodo-poderosa”, e se dá a “escalada do sensível” (COSTA LIMA, 2000: 195). Instala-se o caos e, junto com ele, o terror, fruto da inadequação entre objeto e receptor, resultado do desconcerto, da ilimitude e da desmedida. Neste momento, ao se dar a perda da inocência, a jovem menina, paralisada e sem raciocínio, consegue ouvir o ruído dos saltos dos sapatos dos dois rapazes que se afastam em disparada. O jogo subjetivo entre as faculdades do ânimoimaginação e razão – acaba produzindo um conflito que irá culminar no fenômeno do sublime. (KANT, 1995: 104-105, § 99)

Mas por que joga a nossapreciosaadolescente? Por que ela cria regras abstratas e imperativas para a consecução de seus jogos? A verdade é que, em um dado período da infância, toda criança – algumas mais do que outras – secreta mitos, aceita e assimila aqueles que lhe são propostos, cria situações imaginárias compensatórias, ou inventa brincadeiras para superar situações-problema, via compensação simbólica. A criançavida aos sonhos, quando o mundo sensívelexterior a ela – torna-se insuportável. Animais, insetos, objetos e vegetais, podem transformar-se em personagens fantásticos. A criança convive bem com o estranhocom o que não é visível aos olhos dos outros, com o que não existe para todos, com aquilo que é criado pela imaginação, o que é “subjetivo”, particular a um determinado indivíduo, num dado momento. Na criança, sonho e realidade se interpenetram, os contornos do real e do irreal se esfumaçam, razão pela qual a atmosfera fantástica, feita do insólito, pode muito bem ser a realidade comum das outras pessoas.

Segundo Jean Château, na criança, “quase toda atividade é jogo”, pois “a criança é um ser que brinca/joga, e nada mais” (CHÂTEAU, 1987: 13-14) e, assim sendo, dificilmente o jogo empreendido por nossa protagonista teria alguma motivação relacionada com as necessidades de “enganar o vazioou de “matar” o tédio, mais próprias do homem na fase adulta. (DUFLO, 1999: 49-50) Talvez o ludismo de nossa protagonista esteja a expressar seu gosto por sensações novascomo o delight –, fruto da alternância entre o “amargo sofrimento” e o “doce prazer”; talvez a atividade lúdica extravase o seuduplo”, tornando-a um ser mais pleno, mas, certamente, seus jogos adolescentes – apaixonados e, às vezes ascéticos, sofridos, como os rituais de iniciaçãosão jogos levados a sério, jogos que mobilizam todas as suas forças e reduzem a realidade externa à dimensão de seus jogos, colocando a jovem protagonista no centro do mundo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981.

BORBA, M. Antonieta Jordão de O. Teoria do Efeito Estético. Niterói: EdUFF, 2003.

CHÂTEAU, Jean. O Jogo e a Criança. Trad. Guido de Almeida. S. Paulo: Summus, 1987.

COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. RJ: Civilização Brasileira, 2000.

DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.

DUFLO, Colas. “Legalidade e invenção, ou como Kant prepara Schiller”. In: ___. O Jogo: de Pascal a Schiller. Trad. Francisco Settineri e Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

HELD, Jacqueline. O Imaginário no Poder: as crianças e a literatura fantástica. Trad. Carlos Rizzi. São Paulo: Summus, 1980.

ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. vol. 1. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996.

ISER, Wolfgang. “O Jogo do Texto”. In: COSTA LIMA, Luiz (coordenação e tradução). A Literatura e o Leitor: textos de estética da recepção. RJ: Paz e Terra, 1979.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

LARROSA, Jorge. “O Enigma da Infância ou o que vai do impossível ao verdadeiro”. In: Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

LISPECTOR, Clarice. “Preciosidade”. In: Laços de Família. RJ: Rocco, 1998.

SCHILLER, Friedrich. A Educação Estética do Homem numa série de cartas. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2002.


 


 

[1] A Farmácia de Platão, de Jacques Derrida, 1991: 7.

[2] Ao escolher o jogo como objeto de estudo matemático, Leipzig confere um peso maior às probabilidades estatísticas de ocorrências dentro do jogo do que o conferido, até então, ao “acaso”.

[3] Colas Duflo discorda do uso do termojogo quando o assunto é o sublime. Para ele, o termo cabe apenas no tocante à experiência com o belo, que no belo a “imaginação e o entendimento remetem um ao outro, e a consciência do belo nada mais é do que a sensação do efeito desse jogo das faculdades, que é também sentimento de sua concordância recíproca (...)”; em se tratando do sublime, segundo ele, não cabe o termojogo”, por não haver nem mediação nem circulação. (DUFLO, 1999: 60)

[4] Kant discorda do pensamento de Rousseau no que tange à importância do jogo para a criança como treinamento para o ingresso no mundo do trabalho. Segundo Kant, na proposta rousseauniana, há 2 erros conceitual e pedagógico. Se o jogo é uma “ocupação que é agradável por si própria”, o trabalho é, por oposição, uma “ocupação que por si própria é desagradável (penosa) e é atraente somente por seu efeito (por exemplo, pela remuneração), que, por conseguinte, pode ser imposta coercitivamente”. (KANT, 1995: 150, § 176)

[5] Em suas Cartas sobre a Educação Estética do Homem, publicadas em 1795, Schiller se apóia principalmente nas idéias expressas na Crítica da Faculdade do Juízo, na qual Kant confere ao jogo o papel de mediador entre duas tendências humanas – a tendência formal e a tendência sensível.