O LEITOR IMPLÍCITO NAS NARRATIVAS INFANTIS
DE CLARICE LISPECTOR

Telma Maria Vieira (Unicastelo)

 

Clarice Lispector é reconhecidamente uma das grandes escritoras brasileiras do século XX. Sua obra em muito contribuiu com as renovações ocorridas em nossas letras, a partir dos anos 40. Desde a publicação do primeiro romance, Perto do coração selvagem, em 1943, o monólogo interior, as reflexões de sondagem existencial, a denúncia dos limites e da insuficiência da linguagem marcaram sua produção. A tentativa de resgatar experiências intuitivas e reuni-las, de modo aparentemente sem sentido, para dar-lhes um sentido maior, ao mesmo tempo em que analisava, sub-repticiamente, o processo de criação literária, levou ao uso de linguagem simbólica e imagens insólitas, que lhe valeram o estigma de escritora enigmática. Na verdade, para ela, a literatura é um espaço para diálogo entre realidade e ficção: meio de conhecimento do outro e de si mesma. Nesse espaço, ela cria personagens fragmentadas, em episódios também fragmentados, que revelam uma escritura voltada para a problemática do ser e do dizer.

As reflexões e questionamentos a respeito do fazer literário são incorporados à narrativa, transformando-a em uma rede metalingüística, na qual o trabalho do escritor torna-se objeto da própria ficção, ou seja, o texto e todos os elementos que contribuem para o processo de criação literária são ficcionalizados. Há a “ficcionalização” do autor: Clarice Lispector-autora é, a todo momento, textualizada, pois não está apenas narrando uma história, mas um processo que freqüentemente vivencia; há a “ficcionalização” do narrador que, em alguns momentos, se confunde com o autor, tendo em vista que ambos são textualizados; há, ainda, a “ficcionalização” do leitor que, como o autor e o narrador, adquire status de personagem e exibe características que definem seu perfil.

Segundo Umberto Eco, “um texto requer movimentos cooperativos, conscientes e ativos da parte do leitor” (Eco, 1986:36); logo, o autor prevê seu leitor e age no sentido de organizar o texto para que ocorra um tipo de leitura, que ele, autor, considera adequada às suas intenções. Assim, não apenas conjetura um leitor-modelo para seu texto, mas utiliza estratégias para que este preencha certas condições, estabelecidas por ele.

As produções de Clarice Lispector ratificam as afirmações de Umberto Eco. Nelas, a Autora prevê e direciona o leitor que considera ideal para seus textos. Para isso, utiliza elementos textuais que guiam a atividade interpretativa dele, como, por exemplo, técnicas, como a suspensão de impressões e idéias, que são resgatadas posteriormente.

Ontem no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. (...)

Ontem de manhã - quando saí da sala para o quarto da empregada - nada me fazia supor que eu estava a um passo da descoberta de um império. (A paixão segundo G.H.)

Na obra utilizada como exemplo, a narradora insinua que experimentou algo diferente que a afetou intimamente. Contudo, não narra o fato imediatamente, ao contrário, desenvolve reflexões a respeito de outras coisas e deixa em suspenso o que lhe aconteceu, para retomar adiante, quando, então, faz referências a um império, cujo mistério é revelado ao fim da narrativa. Além disso, também recorre a construções irregulares, tais como: “o mundo se me olha”; “Eu não sou Tu, mas mim és Tu, que conduzem o leitor a reflexões a respeito da existência e da utilização da linguagem. Essa atividade bastaria para que ele fosse co-autor da obra, porém ela exige mais: “Preciso terrivelmente de você. Nós temos que ser dois. Para que o trigo fique alto” (Água Viva).

A participação deverá ser de tal ordem que ambos construam a obra concomitantemente, com o mesmo grau de envolvimento para com a literatura e a vida.

Clarice Lispector tem como aspiração transcrever os momentos de vida, captados na observação do cotidiano, como podemos constatar nas personagens-narradoras, como G.H., de A paixão segundo G.H., que pretende narrar a experiência que vivenciou ao esmagar uma barata na porta de um guarda-roupa; a narradora de Água Viva, que deseja narrar ao amado as “sensações do atrás do pensamento”; Rodrigo S. M., de A hora da estrela, que quer narrar a história da nordestina Macabéa; o Autor, narrador de Um sopro de vida, que ambiciona escrever um livro e cria uma personagem para auxiliá-lo. Porém, todas as personagens-narradoras esbarram no problema da linguagem, pois pretendem trabalhar com sensações.Os textos surgem da tentativa de narrar as sensações, por isso são inusitados, exigindo decifração do leitor.

Como a Autora, que é constantemente textualizada, se analisa e se constrói com o processo metalingüístico do texto, o leitor ao “auxiliá-la” poderá, “num exercício de coragem”, realizar suas próprias reflexões sobre sua vida, ou seja, poderá, como ela, analisar-se e construir-se. Para isso, deverá também ser um operário da linguagem e, por meio da leitura, incidir sua narrativa (leitura) na voz narradora, reescrevendo, assim, um novo texto.

Levado a confrontar um texto propositadamente obscuro, que põe em xeque a linguagem, elemento de organização do homem, o leitor clariceano é obrigado a assumir a postura de Édipo e decifrar o enigma para não ser devorado por ele. Ao fazê-lo, leitor e texto completam um circuito comunicativo, que é possível mediante a interação entre ambos.

Não poderíamos tratar da interação texto-leitor sem realizarmos algumas considerações sobre a chamada Estética da Recepção, o que se faz pertinente devido sua proposta, que é estudar a literatura tendo como parâmetro o leitor. Essa teoria surge no conturbado contexto dos anos 60/70, quando todos os setores da sociedade experimentavam transformações consideráveis e tem na figura de Hans Robert Jauss seu principal defensor. Contrapondo-se ao estruturalismo, que apreciava nas análises literárias apenas o texto, e ao marxismo, cuja relevância estava no aspecto social, ele considerou que todo texto literário é destinado a um leitor e não a interpretações filológicas e históricas. Logo, a existência de uma força histórica e criadora lhe é imanente.

Esse fundamento concedeu ao leitor um espaço como sujeito agente na obra literária e direcionou vários outros teóricos, cujas pesquisas se voltam para a atividade do leitor. Dentre eles, destacamos Wolfganger Iser, cujo nome é freqüentemente associado a Jauss. Porém, diferencia-se dele que julga o leitor como um indivíduo histórico, explícito ao texto, responsável pela recepção positiva ou negativa da obra literária; Iser considera que o texto literário contém lacunas e pontos de indeterminação que exigem um “preenchimento” por parte do leitor e que a obra exerce sobre ele um efeito estético, ou seja, resposta ou reação a partir da leitura. Esse leitor virtual está implícito na narrativa.

Segundo Iser, o processo comunicativo entre texto e leitor ocorre da interação entre ambos, isto é, as exigências daquele e a resposta deste. Contudo é imperativo destacar as diferenças existentes entre interação texto-leitor e interação interpessoal. Nas relações interpessoais há uma atividade interpretativa da imagem do outro, ou seja, as pessoas, ao se comunicarem, procuram agir de acordo com o que acreditam serem as expectativas do interlocutor, embora seja impraticável corresponder totalmente, tendo em vista a impossibilidade de conhecê-las. Paradoxalmente, essa impossibilidade funciona como elemento propulsor de ações interpretativas, isto é, na relação face a face, por exemplo, valemo-nos de perguntas e respostas, na tentativa de superar prováveis contingências, que comprometeriam a comunicação.

Na relação texto-leitor, em que o confronto face a face é impossível, como é o caso do leitor e do texto, há um desequilíbrio, ao qual Wolfganger Iser denominou “vazios”, que são fundamentais no processo de interação. Eles assinalam a quebra das conexões dos segmentos textuais, ou seja, indicam quais devem ser conectados de acordo com o ponto de vista do leitor que, ao fazê-lo, enriquece sua atividade ideativa. Também impõem dificuldades ao leitor, induzindo-o a se afastar de um contexto de ações pragmáticas, para atingir algo além de suas projeções.

Assim, os vazios ampliam o leque de possibilidades de significações das conexões dos segmentos textuais e, conseqüentemente, da atividade ideativa do leitor.

Ao classificar os possíveis tipos de vazios em uma obra, Wolfganger Iser verificou que um romance de tese limita e controla a participação do leitor, pois oferece um objeto dado, ou seja, uma situação pré-determinada, de acordo com os valores do público visado, deixando como opção uma projeção de sim ou não diante da obra. Por outro lado, os folhetins, que alcançaram seu auge no século XIX, procuram comercializar a atividade do leitor ao considerar suas normas e valores na elaboração do texto, além de conseguir êxito promovendo os cortes nos momentos de tensão máxima, estimulando a imaginação.

Na obra clariceana, os vazios são multifacetados porque possibilitam preenchimentos variados e diferenciados. Portanto, diferem dos vazios encontrados, por exemplo, em romances de tese. Nas narrativas, há um texto não manifestado verbalmente que faz da obra um trabalho inacabado, isto é, não-palavras, entrelinhas e silêncios que impulsionam o leitor a acrescentar seus traços individuais ao ato da leitura.

Assim, a escritura de Clarice Lispector procura romper com as fronteiras do signo, necessitando, portanto, de um leitor especial que esteja disposto a ler de forma ilimitada e se construir ao longo da narrativa, pois, para ela, “a compreensão do leitor depende muito de sua atitude na abordagem do texto, de sua predisposição, de sua isenção de idéias preconcebidas” (A descoberta do Mundo).

Desse modo, o perfil do leitor, implícito nas narrativas dirigidas a adultos, é de alguém capaz de abdicar de conceitos prévios, para conseguir, como ela, ultrapassar os limites do signo e ler o subtexto, expresso nos vazios e nas entrelinhas: realizar uma leitura com tendência ao sensorial e, desse modo, captar a essência das coisas, como ela procura escrever. Esse seria, portanto, o leitor-modelo-clarice para a produção literária composta de romances, crônicas e contos. Porém, na obra clariceana, também encontramos narrativas voltadas ao público infantil, as quais, provavelmente, prescindem de um leitor diferenciado deste.

Clarice Lispector produziu cinco obras infantis: O mistério do coelho pensante, A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura, Quase de verdade e Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras, que elegemos como corpus de nossa análise. Nessas obras, também metalinguagem, o que indica a possibilidade de traçarmos o perfil do leitor infantil-modelo-clarice, implícito nas narrativas.

O primeiro livro infantil da Autora, O mistério do coelho pensante, foi, segundo ela, escrito a pedido de seu filho Paulo; é uma homenagem dela a dois coelhos que ele e seu irmão Pedro possuíram.

Publicado em 1967, o livro traz um texto introdutório que prepara o leitor para as páginas seguintes; artifício que ela utilizou no romance A paixão segundo G.H., publicado em 1964. Por tratar-se de uma história para crianças, Clarice, no prefácio, dirige-se aos adultos que eventualmente realizem a leitura da narrativa, aos quais, diz tratar-se de uma históriapara exclusivo uso doméstico” e que, por isso, as entrelinhas devem ser completadas com explicações orais, ou seja, para ela, o melhor da história, pois se trata de uma história de mistérios, que levará a criança a descobrir outros mais.

O livro segue a tradição das produções anteriores: colhe um episódio do cotidiano - “Pois olhe, Paulo, você não pode imaginar o que aconteceu com aquele coelho” - e o apresenta ao leitor de maneira impactante.

Esse, por sua vez, familiarizado com o estilo de Clarice Lispector, imediatamente realiza conexões com outras obras, nas quais os recursos estilísticos rompem com as normas de enunciação, apontando para uma semantização complexa. Em A paixão segundo G.H., por exemplo, a narrativa inicia-se por seis travessões, que assinalam a ruptura da personagem com seu mundo para entrar no mundo que irá proporcionar-lhe reflexões e, conseqüentemente, mudanças interiores.

Em O mistério do coelho pensante, o texto é iniciado pela palavrapois”. Morfologicamente, esta palavra é uma conjunção e, como tal, tem por função básica ligar duas orações, ou seja, explicar algo que se disse anteriormente. Logo, pressupõe-se existir um assunto que se desenrolava sem que o leitor participasse dele, mas, como é irrelevante, a partir desse momento, a história tem início.

Esta narrativa, como as demais obras de Clarice Lispector, pontua um determinado momento, geralmente situações corriqueiras do dia-a-dia, vividas por personagens comuns. Por isso ela diz “que esta história é uma história real” e que o coelho, chamado Joãozinho, era comum, “um coelho branco”, cujo atributo especial era franzir o nariz rapidamente enquanto tinha idéias.

A idéia que Joãozinho “cheirou” foi fugir de sua casinha toda vez que sentisse fome e se esquecessem de alimentá-lo. Mas, como a casinha tinha grades muito estreitas e ele era muito gordo, encontrou-se diante de um dilema: como fugir? Surpreendentemente, ele conseguiu, pois, não se sabe como, freqüentemente era encontrado fora das grades. Na verdade, Joãozinho tomou gosto pelas fugas e mesmo depois que seus donos perceberam que elas estavam relacionadas à falta de alimento, e passaram a cuidar para que isso não ocorresse, continuou a realizá-las, pois, além de sentir-se feliz, a liberdade lhe proporcionava oportunidade de experiências e aprendizado acerca do mundo. Essa prática misteriosa do coelho é o desafio ao leitor:

Você na certa está esperando que eu agora diga qual foi o jeito que ele arranjou para sair de .

Mas é que está o mistério: não sei!

E as crianças também não sabiam. Porque, como eu lhe disse, o tampo era de ferro pesado. Pelas grades? Nunca! Lembre-se de que Joãozinho era um gordo e as grades eram apertadas.

(O mistério do coelho pensante)

Para esse mistério, a narradora se nega a fornecer qualquer explicação. Deixa, portanto, ao leitor a elucidação do fenômeno que, como afirma no texto introdutório, “ acaba quando a criança descobre outros mistérios”.

Em 1968, Clarice Lispector publica sua segunda obra infantil: A mulher que matou os peixes. A temática é a confissão de um crime: “essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu”.

O leitor comum certamente espera uma narrativa linear sobre o “assassinato”. Porém, é informado pela narradora de que, antes de tratar da morte dos peixes, narrará outras histórias sobre bichos:

Por enquanto posso dizer que os peixes morreram de fome porque esqueci de lhe dar comida. Depois eu conto, mas em segredo, vocês e eu vamos saber.

(A mulher que matou os peixes)

Assumindo o mesmo tom intimista de O mistério do coelho pensante, conta a respeito de todos os animais que conheceu, como a gata que teve na infância e os “bichos naturais”, “aqueles que a agente não convidou nem comprou”: baratas, moscas, ratos e lagartixas. Narra histórias sobrebichos convidados”, aqueles aos quais “às vezes não basta convidar: tem-se que comprar”: coelhos, patos, pintos, cães, macacos, periquitos, borboletas, cavalos-marinhos, estrelas-do-mar. Há histórias alegres, mashistórias tristes, como o conturbado relacionamento de amor e ódio, amizade e vingança, dos cães Bruno e Max, que acabam matando um ao outro.

Assim, o leitor é preparado para o tema central, a morte dos peixes, retomada ao término da narrativa. A morte foi conseqüência de seu esquecimento em alimentar os peixes dourados de seu filho; ela justifica o ocorrido, “mas é que sou muito ocupada, porque também escrevo histórias para gente grande”, e pede o perdão dos leitores.

O terceiro livro infantil, A vida íntima de Laura, publicado em 1974, traz a história de Laura, uma galinha, casada com o galo Luís, que “vive no quintal de Dona Luísa com outras aves”. Segundo a narradora, Laura “tem o mesmo sentimento que deve ter uma caixa de sapatos”, isto é, tem uma existência calcada apenas em “pensamentozinhos e sentimentozinhos”, servindo ao propósito da natureza: procriar. O cotidiano de Laura reflete sua existência. Há bons momentos, como o nascimento de seu filho Hermany, e as visitas e presentes das outras galinhas e até de Dona Luísa. Também há os maus, como, por exemplo, o dia em que um ladrão tentou roubá-la do galinheiro ou quando Dona Luísa emprestou-a para um quintal vizinho e ela, além de ter que conviver com galinhas desconhecidas, ficou sem ver Luís. O único episódio relevante da vida de Laura foi o contato com um habitante de Júpiter - Xext -, que prometeu protegê-la para que ela não fosse comida.

Nessa obra, a protagonista é representante do destino feminino no contexto masculino: tem uma existência apagada, com obediência rígida às leis da maternidade; pois o que faz com perfeição é pôr ovos. Em contrapartida, Luís, seu marido, representante do universo masculino, “era muito vaidoso. Orgulhava-se de ser casado com Laura, orgulhava-se de cantar bem alto, bem rouco e bem estridente, logo que o Sol dava mostras de querer nascer”.

A identidade entre homens e animais, como variação da relação entre o eu e o outro, é uma constante na obra de Clarice Lispector. Sob um texto aparentemente descompromissado em que histórias como o nascimento de um pintinho, Hermany, e de como a galinha Zeferina, prima de Laura, foi transformada em galinha ao molho pardo, o leitor é levado a refletir acerca da vida e da morte.

O quarto livro infantil é póstumo. Publicado em 1978, um ano após sua morte, Quase de Verdade revela uma grande carga de sentido mítico, a começar pelos nomes das personagens, que imediatamente nos remetem a obras clássicas: o cão Ulisses, o galo Ovídio e a galinha Odisséia. Como nas epopéias gregas, A Ilíada e Odisséia, as narrativas têm interferência de entidades míticas: as bruxas Oxélia e Oxalá, que auxiliam as ações das personagens. Curiosa e intencionalmente, todas têm os nomes iniciados pela vogal “O”, que, segundo o narrador, vinha da palavra ovo[1].

Ulisses, o narrador-cachorro, como Joãozinho, o coelho protagonista de O mistério do coelho pensante, adivinha pelo cheiro. A história que conta foi “cheirada” no quintal da senhora Oniria[2]. A trama é protagonizada por Ovídio e Odisséia, respectivamente rei e rainha do galinheiro, que se vêem envolvidos com uma figueira, que não dava frutos e, por isso, invejava as aves. Por despeito, a figueira aliou-se a uma bruxa má, Oxélia, que a ajudou a manter-se iluminada à noite e, desse modo, fazer com que todas as aves acreditassem que era dia e mantivessem as atividades normais, pondo ovos durante vinte e quatro horas, os quais eram vendidos por ela, que enriquecia rapidamente.

Ao contrário de Luís e Laura, Ovídio e Odisséia pensavam muito e eram muito espertos. Por isso, lideraram as galinhas e, com o auxílio de Oxalá, a bruxa boa, conseguiram acabar com a escravidão a que todos foram submetidos pela figueira.

Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras também foi publicado em 1978. Trata-se de histórias curtas encomendadas a Clarice Lispector para ilustrar um calendário, patrocinado pela fábrica de brinquedos Estrela. Nas doze narrativas, uma para cada mês do ano, a Autora resgata elementos da cultura popular, como: Saci-pererê, Uirapuru, Curupira, Iara, Negrinho do pastoreio, curumins, que sofrem transformações inusitadas, e animais, como: sapo, jabuti, onça, macaco, jacaré, que vivem situações nas quais suas qualidades, como esperteza, poder e ferocidade são postas à prova. Alguns temas comumente tratados por Clarice Lispector são recuperados pela intratextualidade, como, por exemplo, a problemática da linguagem[3], o que resulta na construção de personagens tão complexas quanto àquelas dos livros para adultos.

Ao considerarmos a tradição da literatura infantil, veremos que as cinco obras atendem às expectativas do leitor comum: as personagens são bichos que falam, transformam-se em gente e vivenciam situações de magia e mistério. Mas, enquanto personagens infantis, apresentam um tom instigante, que assinala a originalidade da Autora e a diferencia de outros autores infantis.

Em A mulher que matou os peixes e A vida íntima de Laura, por exemplo, o leitor infantil é levado a refletir sobre um tema geralmente evitado pelos adultos, em se tratando de crianças: a morte. Nem por isso os sentimentos infantis são melindrados; há, por parte da Autora, delicadeza e respeito, na abordagem do tema, pois por meio de declarações de afeto e um tom confessional, ela cria uma atmosfera de cumplicidade entre ambos de maneira que seus pequenos leitores se sintam “conversando” com ela e não apenas “ouvindo” uma história.

No “bate-papo com o leitor, prepara-o para o fato de que na vida real as perdas são inevitáveis, ou seja, por meio desse subterfúgio, narra uma história e também aborda com naturalidade assuntos como morte, tristeza, ciúme, vingança e solidão.

Vocês ficaram tristes com esta história? Vou fazer um pedido para vocês: todas as vezes que vocês se sentirem solitários, isto é, sozinhos, procurem uma pessoa para conversar. Escolham uma pessoa grande que seja muito boa para crianças e que entende que às vezes um menino ou uma menina estão sofrendo. Às vezes de pura saudade.

(A mulher que matou os peixes)

Valendo-se do ambiente de intimidade criado estrategicamente, ela seduz o leitor e o conduz a preencher lacunas e vazios com o próprio imaginário.

A despeito da necessidade que o texto ficcional tem de se enquadrar em uma dimensão semântica, existe a dimensão do imaginário, que pelo seu grau de imprecisão, não pertence à mesma natureza.

Na ficção, o imaginário se entrelaça com a realidade e é superado pela determinação semântica na interpretação do texto, pois a interpretação tem por meta a constituição de sentido (Cf. Lima, 1983:381). Porém, quando tratamos de recepção em que há uma tentativa de produzir, a partir de indicações, na consciência do receptor, o objeto imaginário do texto, existe uma exigência de atividade imaginativa também por parte do leitor.

Desse modo, a recepção amplia a interpretação, pois enquanto esta procura apenas semantizar o imaginário do escritor, aquela requer dos receptores capacidade para colocar em prática o próprio imaginário.

É o imaginário que possibilita à ficção não ser idêntica ao que ela representa e sim ser apenas a “possibilidade de relacionar o representado a outra coisa, diversa da que se dá a conhecer por sua formulação verbal” (Lima, 1983:380), ou seja, o imaginário oferece a amplitude de significação ao texto.

Clarice Lispector visa a aguçar o imaginário do leitor infantil e, para isso, além da estratégia de torná-lo seu cúmplice, realiza outras, como a quebra da circularidade narrativa. Em O mistério do coelho pensante, por exemplo, a narradora frustra o leitor comum, pois não desvenda o mistério da fuga do coelho, o que seria de se esperar ao término da narrativa. Em Quase de verdade, há a interrupção por quatro vezes pelo canto do passarinho de bico vermelho-vivo - “Pirilim-pim-pim, Pirilim-pim-pim, Pirilim-pim-pim” - que, grafado em azul e entre parênteses desvia a atenção do leitor, isto é, faz pausas na narrativa principal, proporcionando leveza ao texto nos momentos de conflito. Nessa obra, também há a expressão “patati e patatá”, utilizada pelo narrador com o intuito de que o leitor imagine o que ele deixará de contar.

Portanto, podemos afirmar que as narrativas infantis de Clarice Lispector trazem implícito um perfil de leitor que não difere daquele ideal para romances crônicas e contos. O leitor infantil-modelo-clarice não é a criança passiva de uma história linear com fundo moral. Como em toda sua produção, as narrativas infantis também prescindem de um leitor atuante, que deverá ser capaz de preencher as lacunas do texto com o próprio imaginário. Além disso, ter percepção aguçada para o fato de que ao ler aquelas histórias está diante de um mundo que embora seja “quase de verdade”, não o é: “ é verdade no mundo de quem gosta de inventar, como você e eu” (Quase de verdade).

Como o leitor adulto, os pequenos leitores clariceanos são conscientizados de que existe um mundo real no qualcoisas simples, como descobrir se devemos ou não engolir os caroços de jabuticabas, mas que tambémcoisas complexas, como a morte e sentimentos de amor e ódio. Esse mundo, como o universo das histórias, também é povoado de mistérios, que aguardam para serem desvendados por eles.


 

BIBLIOGRAFIA

ECO, Umberto. Lector in fábula. Trad. Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 1986. Col. Estudos, vol. 89.

ISER, Wolfganger. O ato da leitura - uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996, 2 vol.

JAUSS, Hans Robert et alli. A literatura e o leitor. Trad. e coord. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

––––––. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellarolli. São Paulo: Ática, 1994.

KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1990. Série Princípios.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 16ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

––––––. O mistério do coelho pensante. 7ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

––––––. A mulher que matou os peixes. 6ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

––––––. Água Viva. 11ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

––––––. A vida íntima de Laura. 8ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

––––––. Quase de verdade. Rio de Janeiro, Rocco, 1978.

––––––. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

––––––. Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, 2 vol.

ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da literatura. São Paulo: Ática, 1989. Série Fundamentos.


 


 

[1] - Lembremos que ovo e galinha são temas de outros textos de Clarice Lispector, como os contos “O ovo e a galinha” e “Uma galinha”; são recorrentes de reflexões a respeito de vida e morte, sempre presentes nos textos clariceanos.

[2] - Oniria: de Onírico = sonho. Segundo o Ulisses, Oníria é meio mágica, pois em sua cozinha realiza transformações de alguns ingredientes em alimentos.

[3] - No texto “A fruta sem nome”, o jabuti precisa dizer o nome correto da fruta para comê-la.