A ESTILÍSTICA E O ENSINO DE PORTUGUÊS

Castelar de Carvalho (UFRJ, ABF)

A Estilística

Definida como a disciplina lingüística que estuda os recursos afetivo-expressivos da língua (ou sistema, no sentido estruturalista de Ferdinand de Saussure), a estilística é uma ciência recente (fundada no início do século XX pelo suíço Charles Bally e o alemão Karl Vossler), mas um saber muito antigo, que remonta à tradicional retórica dos gregos. Tendo em comum o estudo da expressividade, distinguem-se, contudo, por seus objetivos: a retórica era uma doutrina com finalidade pragmático-prescritiva, enquanto a estilística, como ciência, apresenta um caráter mais descritivo-interpretativo, sem considerações de natureza normativa. Essa preocupação fica reservada à gramática, sistematização dos fatos contemporâneos da língua, com vistas a uma aplicação pedagógico-escolar.

Há quem veja os estudos estilísticos antes como um procedimento metodológico do que propriamente uma ciência. De acordo com essa visão, a estilística seria considerada um subdomínio das ciências da linguagem, fundamentando-se em teorias lingüísticas e literárias de diversas tendências, como o idealismo, o estruturalismo, o gerativismo, a semiótica, etc.

Dividida por Pierre Guiraud (1970: 62) em estilística da língua ou da expressão (linha estruturalista de Bally: ênfase à expressividade latente no sistema) e estilística genética ou do autor (corrente idealista de Vossler e Leo Spitzer: ênfase à criação expressiva individual), trabalha com algumas categorias básicas, como funções da linguagem, estilo, desvio e escolha.

Categorias estilísticas

Estilo é o uso individual dos recursos expressivos da língua ou, como ensina Sílvio Elia (1978: 76), é “o máximo de efeito expressivo que se consegue obter dentro das possibilidades da língua”. Trata-se de um conceito intimamente relacionado com as noções de desvio e escolha, pois, como lembra o saudoso mestre na pág. 77 de suas Orientações: “A tensão entre o espírito criador e as normas gramaticais é que explica o fenômeno do estilo, na sua gênese mais profunda”.

O efeito estilístico resulta não raro da singularidade, do desvio em relação ao padrão normativo e da escolha diante das virtualidades oferecidas pelo sistema. Por exemplo, Machado de Assis optou pelo desvio gramatical, para poder reproduzir com fidelidade a fala do escravo Prudêncio em Memórias póstumas de Brás Cubas (LXVIII): “É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele (e não deixei-o) na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na (e não à) cidade”. Outro exemplo pode ser apreciado neste passo de Vieira, em que o autor, com o intuito de valorizar cada núcleo do sujeito composto, preferiu deixar o verbo no singular: “Mas nem a lisonja, nem a razão, nem o exemplo, nem a esperança bastava (e não bastavam) a lhe moderar as ânsias”.

O poeta Carlos Drummond de Andrade, para enfatizar a importância do deus Kom Unik Assão, não hesitou em transgredir a norma gramatical a respeito da formação do plural: “Eis-me prostrado a vossos peses / Que sendo tantos todo plural é pouco”. Lembremos, contudo, que só é estilístico o desvio que tem finalidade expressiva. E quanto à escolha, Gladstone Chaves de Melo (1976: 23)) ensina que ela é “a alma do estilo”.

A respeito das três funções primordiais da linguagem, foram elas depreendidas pelo alemão Karl Bühler: representação, expressão e apelo, que correspondem, respectivamente, às faculdades de inteligência, sensibilidade e desejo ou vontade.

A representação é a linguagem referencial e denotativa, operando linearmente no eixo sintagmático. A expressão é a exteriorização psíquica de nossos anseios e sentimentos, e o apelo é o meio pelo qual exercemos influência sobre nossos interlocutores ou leitores, no caso da língua literária. Essas duas funções podem ter caráter conotativo e operar simbolicamente no eixo paradigmático. Por exemplo, uma definição do tempo de natureza puramente representativa diria: “O tempo é a sucessão das horas e dos dias e pode ser aproveitado de muitas maneiras”. Já um exemplo em que sobressaem a expressão e o apelo pode ser encontrado na elaborada e genial definição de Machado de Assis (Esaú e Jacó, XXII): “O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo”. A função de apelo adquire relevância no discurso publicitário, em frases como esta, divulgando uma tradicional instituição de ensino: “Inglês é cultura. Cultura Inglesa”. Ou esta outra, exaltando a solidez de uma seguradora: “Sul América: o nosso negócio é seguro”. As funções expressiva e apelativa geralmente caminham pari passu.

Cumpre ressaltar que, enquanto a representação, por sua natureza intelectiva, diz respeito à lingüística, as outras duas funções - expressão e apelo - interessam à estilística, devido à impregnação afetiva de que se revestem. Na prática, essas três funções se integram, tanto no texto informativo quanto no literário, podendo ocorrer o predomínio de uma ou de outra, dependendo do tipo de discurso.

Quanto às relações entre a estilística e a gramática, cabe salientar que essas duas disciplinas não são excludentes, ao contrário, são complementares, como adverte o professor Evanildo Bechara (1999: 615): “Ambas se completam no estudo dos processos do material de que o gênero humano se utiliza na exteriorização das idéias e sentimentos ou do conteúdo do pensamento designativo”. Cumpre lembrar que muitas das aparentes irregularidades registradas pela gramática têm sua origem em motivações de natureza estilística, sobretudo no campo da sintaxe. O método de análise estilística segue inclusive as divisões clássicas da gramática, daí a tripartição em estilística fônica, léxica e sintática.

Estilística fônica

Estuda os recursos expressivos presentes no nível fônico da língua. Na prosódia, por exemplo, os acentos de altura e intensidade podem apresentar valor afetivo, como se percebe na valorização prosódica do vocábulo no célebre soneto Sete anos de pastor, de Luís de Camões:

Sete anos de pastor Jacó servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

Mas não servia ao pai, servia a ela,

E a ela / por prêmio pretendia.

Lido com a pausa prosódico-semântica acima sugerida, o referido vocábulo enfatiza que somente ela, Raquel, a insubstituível, era o prêmio pretendido por Jacó, e não Lia, sua irmã, que Labão, “usando de cautela”, tentara impingir ao apaixonado pastor.

A evocação sonora sugerida pelos fonemas também pode ser explorada estilisticamente nas aulas de português. Veja-se, por exemplo, o poema Os sinos, de Manuel Bandeira:

Sino de Belém, pelos que inda vêm!

Sino de Belém bate bem-bem-bem.

Sino da paixão, pelos que lá vão!

Sino da paixão bate bão-bão-bão.

A aliteração do /b/ e a reiteração de vocábulos labiais evocam fonicamente o tanger dos sinos. A onomatopéia bem-bem-bem sugere o som metálico e alegre “pelos que inda vêm” (os batizados); bão-bão-bão, o dobre de finados “pelos que lá vão” (os mortos).

Através do estudo da estilística fônica pode o professor despertar em seus alunos o gosto pelo bom uso dos recursos sonoros da língua, evitando as silabadas e cacofonias nas redações escolares. Pode também chamar a atenção do estudante para o emprego expressivo das onomatopéias, homoteleutos, aliterações, coliterações e assonâncias.

Estilística léxica

Nesta parte poderá o professor ensinar a diferença entre denotação (linguagem própria, referencial) e conotação (linguagem simbólica, figurada). Cabe aqui o estudo das metáforas literárias nos bons autores da nossa literatura. Sirva de exemplo esta primorosa metáfora machadiana no apólogo da agulha e da linha: “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária”, ou seja, “tenho aberto caminho a quem não merece”.

O valor expressivo dos sufixos pode ser estudado neste capítulo. Repare-se nestes versos de Manuel Bandeira, em que o poeta joga estilisticamente com a ausência/presença do sufixo aumentativo -ão, para enfatizar o caráter íntegro do intelectual português Jaime Cortesão, assim como denunciar a perseguição de que ele fora vítima, num poema que tem por título o nome do homenageado:

Honra ao que, bom português,

Baniram do seu torrão;

Ninguém mais que ele cortês,

Ninguém menos cortesão.

No campo da estilística léxica também podem ser estudados os casos de quebra do paralelismo semântico, como vemos no seguinte passo de Machado de Assis: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis” (Brás Cubas, XVII). O efeito estilístico é extraído do inusitado contraponto entre categorias semânticas desiguais: quinze meses = tempo; onze contos de réis = interesse. Numa outra passagem, Machado de Assis consegue a quebra simultânea do paralelismo semântico e sintático: “Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito” (Brás Cubas, LXXXIX). Empregando o pronome oblíquo na 1ª pessoa (me) e não na 3ª (lhe), o bruxo do Cosme Velho subverte a sintaxe e a semântica da frase, quebra a expectativa e surpreende o leitor. Cabe ao professor, nesses casos, ressaltar que o humor machadiano, fino e irônico, marca inconfundível do seu estilo, resulta muitas vezes do imprevisto, do desvio do padrão.

O estudo da estilística léxica também permite ensinar o valor afetivo-expressivo das diversas classes de palavras. Sirvam de exemplos: a passagem de substantivos abstratos a concretos através da personificação (“Uma aflição mordeu-o no íntimo”, Otto Lara Resende) e da pluralização (“Tive uns amores, perdi-os”, Manuel Bandeira); a conversão dos substantivos concretos em abstratos por meio da metaforização (“Não quero a rosa que me dás, quero a rosa que tu és.”); a substantivação de adjetivos (“A curiosidade agitada dos alunos” = alunos curiosos e agitados).

O valor expressivo dos pronomes possessivos (“O nosso Machado de Assis.”) e demonstrativos (“Esse teu filho não vale nada.”), assim como a caracterização adjetiva por meio de sufixos (“Que filmezinho horroroso!”) e da intensificação (“Ronaldinho fez um gol e tanto.”) podem igualmente ser explorados.

O estudo estilístico do artigo constitui outro recurso motivador nas aulas de português, como no seguinte exemplo, em que se contrapõem os valores indefinido e definido dessa classe de palavra: “Pedro não é um professor; ele é o professor”. Em Cunha & Cintra (1997: 228), lê-se: “Foi acusado do crime [acusação precisa]; Foi acusado de um crime [acusação vaga]; Foi acusado de crime [acusação mais vaga ainda]”.

Essas são algumas sugestões de estudo que podem ser levadas para a sala de aula, com o intuito de incutir no aluno o gosto pela estilística léxica.

Estilística sintática

A sintaxe, por atuar no nível da frase e por sua versatilidade, oferece variada gama de recursos expressivos, por isso é o campo de estudo estilístico mais fértil de nossa língua. O emprego das diversas classes de palavras aí deve ser incluído, com proveito para o professor e o aluno. Quanto às partes tradicionais em que se divide o plano sintático, vejamos a seguir algumas sugestões de estudo.

Na sintaxe de colocação, cabe ressaltar a posição do adjetivo como marcador semântico-estilístico (pobre homem = homem infeliz; homem pobre = carente de recursos), a permutabilidade substantivo/adjetivo (autor defunto/defunto autor), os casos de hipálage (adjetivação inusitada: “As criadas remendavam meias sonolentas.” por “As criadas sonolentas remendavam meias.”), o deslocamento e a elipse de termos, o anacoluto (desconexão sintática), a colocação pronominal, todos constituem recursos expressivos, quando produzidos com motivação estilística. A gradação sintático-semântica também pode ser estudada, como neste exemplo de Vieira: “Tão dura, tão áspera, tão injuriosa palavra é um não”.

Na sintaxe de regência, podem ser objeto de estudo não só os exemplos literários, mas também os do discurso publicitário, como neste caso em que a regência estilística está a serviço da função “apelo” da linguagem: “O Rio de Janeiro assiste (vê) à Record porque a Record assiste (ajuda) o Rio de Janeiro”. Os casos de objeto direto interno (“Morrerás morte vil”, Gonçalves Dias), preposicionado (“Amemos a Deus sobre todas as coisas.”) e pleonástico (“O dinheiro, ele o trazia escondido no bolso.”) oferecem ao professor interessante material para o estudo da regência afetiva.

O campo da concordância é rico em recursos expressivos. Aprecie-se este passo de Vieira: “Muito trabalhou o diabo e seus ministros para que eu não viesse a Portugal”. Deixando no singular o verbo anteposto ao sujeito composto, o grande orador teve a intenção de carregar sobre o diabo, pondo-o em primeiro plano e relegando a condição secundária os ajudantes do coisa ruim. Mesmo com o verbo posposto, em sua posição usual, é possível deixá-lo invariável quando a intenção estilística é valorizar cada núcleo do sujeito composto: “Mas nem a lisonja, nem a razão, nem o exemplo, nem a esperança bastava a lhe moderar as ânsias” (Vieira).

Os casos de aparente ausência de concordância do adjetivo predicativo junto ao plural de modéstia, por seu caráter inusitado, devem ser levados ao conhecimento dos estudantes: “Mas ficaríamos satisfeito [e não satisfeitos] se pudéssemos com ele prestar algum serviço aos alunos de nossas Faculdades de Letras” (Celso Cunha (1976: 9). O plural de interesse (“Como vamos de saúde, meu caro?”) e o de convite (“Venha, filhinha, vamos tomar o nosso leitinho antes de dormir.”) também merecem relevância no estudo da concordância estilística ou afetiva.

Por fim, cabe destacar os três casos de silepse ou concordância pelo significado (idéia) e não pelo significante (forma). De gênero: “É uma criança rebelde; os pais não podem com ele [é um menino]”; de número: “Coisa curiosa é gente velha. Como comem [os velhos].” (Aníbal Machado); de pessoa: “Dizem que os cariocas somos [o autor era carioca] pouco dados aos jardins públicos” (Machado de Assis). Exemplo curioso e inusitado de superposição das silepses de gênero e número encontra-se no capítulo II de O Ateneu, de Raul Pompéia: “O resto, uma cambadinha indistinta, adormentados [e não adormentada] nos bancos, confundidos [e não confundida] na sombra preguiçosa do fundo da sala”. Ressalte-se, a propósito, a hipálage “sombra preguiçosa” (preguiçosos eram os alunos e não a sombra).

Conclusão

Do que foi dito neste breve estudo, concluímos que a presença da Estilística nas aulas de português é da maior relevância. Desperta a sensibilidade lingüística e o gosto literário do aluno, além de motivar e tornar menos árido o estudo da matéria gramatical. Vale lembrar que muitas das aparentes irregularidades da língua têm sua origem em motivações de natureza estilística. Por fim, cabe enfatizar que o estudo da Estilística e o da Gramática são perfeitamente compatíveis, por se tratar de disciplinas complementares e afins, e tanto o professor quanto o aluno sairão ganhando com essa dobradinha, sobretudo como subsídio para a pratica da redação e da compreensão de textos.

Bibliografia

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

CAMARA JR., J. Mattoso. Contribuição à estilística portuguesa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.

CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 6ª ed. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1976.

CUNHA, Celso & CINTRA Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

ELIA, Sílvio. Orientações da lingüística moderna. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.

GUIRAUD, Pierre. A estilística. Trad. de Miguel Maillet. São Paulo: Mestre Jou, 1970.

MELO, Gladstone Chaves de. Ensaios de estilística da língua portuguesa. Rio de janeiro: Padrão, 1976.