Cherchez la femme?
reflexões sobre a narrativa policial
contemporânea

Valéria S. Medeiros
(PUC-Rio, UGF e UniverCidade)

 

Do parágrafo inicial de O nome da rosa, retiramos as palavras do personagem Adso de Melk, assistente do investigador medieval Guilherme de Baskerville e narrador: “Mas videmus nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de cara a cara, manifesta-se deixando às vezes rastros (ai quão ilegíveis) no erro do mundo, tanto que precisamos calculá-lo, soletrando os verdadeiros sinais, mesmo onde nos parecem obscuros” (Eco, 1983: 21). Jamais vemos por espelhos, mas por enigmas[1]. A tradução oferece inúmeras possibilidades, pois aenigmate pode significar, além do cognato, palavra obscura, emblema e figurativamente, imagem, signo. Debruçamo-nos sobresignos de signos, para que sobre eles se exercite a prece da decifração”, mas os salmos do livro de Deus não podem ser sobrepostos aos ditames do livro da Natureza para explicá-los e portanto a oração investigativa não se reza com(o) um rosário, linear e seqüencialmente (21). Estamos neste vácuo deixado pela cisão entre os nomes e as coisas. Quanto mais vago, fluido, mais atraente este enigma parece, como “a vague shadow by the name of Black”, em Ghosts, Paul Auster (Auster, 1990: 171). Ou ainda as poucas insinuações, “bastante vagas na verdade, sobre uma estranha relação que Guilherme de Baskerville estabelecia em relação a seus suspeitos, em O nome da rosa (Eco, 1983: 15). Nosso desejo é pela pergunta, não pela resposta – ao contrário pelo fetiche da lógica do enigma do século XIX.

O século XVIII é um marco na história do pensamento científico, quando ocorre uma cisão entre ciência e filosofia com o funcionamento independente das ciências empírico-positivas das questões filosóficas, mais especificamente metafísicas. Esta separação está vinculada a uma matematização da experiência na experimentação, a ênfase na distinção do método filosófico (especulativo) e do método científico empírico-positivo (a experimentação ou matemática). Este novo modelo onde o logos centra-se na matemática conduz a uma atomização da natureza, reduzida a seus elementos dimensíveis. A identificação das causas eficazes na determinação dos fenômenos torna-se ponto de concentração em lugar das causas finais em sua explicação. O projeto iluminista pretendeu estabelecer e estender a todos os domínios – do universo físico à sociedade, à política e à moral, um projeto de uma ciência universal ordenadora e normativa. A evidência racional não é suficiente e por isso busca-se a prova experimental ou princípio empírico. A ciência associa-se profundamente com a técnica e quer fornecer os meios para o homem dominar a natureza. Dois pensadores foram fundamentais tanto para este projeto quanto para E. A. Poe e seu pioneiro “Os crimes da rua Morgue”: Isaac Newton e Auguste Comte. A grande síntese da física elaborada pelo primeiro, cujas contribuições da lei da mecânica e a teoria da gravitação exercem enorme fascínio sobre Poe, desde os contos de enigma até Eureka, sua derradeira obra. Se podemos dizer que o paradigma da ciência é o paradigma newtoniano do mundo como uma máquina, a figura do investigador como um homem máquina a decifrar a engrenagem do mundo pertence à linhagem destes dois pensadores. O fundador do positivismo fornece o arcabouço filosófico do chevalier Dupin criado por Poe, cujas convicções refletem os três pressupostos epistemológicos fundamentais da ciência tradicional: a simplicidade,a estabilidade e a objetividade. Assim como o cientista, o investigador acredita que a complexidade do universo oculta uma simplicidade, pressupondo uma ordem subjacente ao caos aparente através de uma operação disjuntiva. Este cientista da realidade concebe um mundo ordenado, cujas relações funcionais entre variáveis procura estabelecer racionalmente e eliminando contradições – uma vez que as leis de funcionamento da natureza são simples, imutáveis e, sobretudo, observáveis. Somente a partir da pressuposição da estabilidade do mundo, a repetição e a invariabilidade podem ser descritos os fenômenos, através de leis ou princípios explicativos. Desta convicção decorre um corolário de premissas: a determinação (que gera a previsibilidade dos fenômenos) e a reversibilidade (que produz, por sua vez, a controlabilidade). Em outras palavras, qualquer desenvolvimento incontrolado de um sistema é definido por negação. O cientista, para descobrir, controlar e descrever os mecanismos de funcionamento da natureza, precisa ocupar um lugar arquimédico ou fora do mundo. Este distanciamento garante a objetividade e permite avalizar o conhecimento do mundo tal como ele é. Tanto mais objetiva e eficaz será a descrição científica – e analogamente a investigação criminal – quanto maior a neutralidade do observador. Atualmente, o novo detetive investiga vagando, errando, atraído pela inconsistência do enigma, seguindo os rastros sem esperar que nas profundezas se esconda o sentido perdido das palavras. Está consciente da incerteza das respostas, sabe que sem as premissas positivas não promessa de verdade definitiva ao fim de uma investigação – etimologicamente do latim respondere, prometer em troca. Este indivíduo continua indagando sem a expectativa ou a vontade – da decifração. Decifrar, hoje, não significa necessariamente passar da cifra à palavra, pois as revoluções científicas surrupiaram o ferrolho do segredo do mundo que Edgar Allan Poe tanto reverenciava.

Reflexões sobre eventuais mudanças paradigmáticas caracterizam hoje a maioria dos campos disciplinares envolvidos em processos de produção de conhecimento. Quais as ressonâncias, nos perguntamos, destas mudanças em nossa prática, isto é, como a produção literária contemporânea tenta solucionar questões de produção do conhecimento no momento em que a própria noção tradicional deste é questionada, a partir do espaço privilegiado da narrativa atual que revê os pressupostos do romance de enigma, clássico, fundado sobre premissas de uma ciência positiva e sobre o realismo literário, ambos compartilhando a pretensão de descrever e descobrir a realidade/verdade? A noção de tradicional a que nos referimos, no entanto, refere-se a uma concepção distante, mas não perdida. É a partir de vários pressupostos epistemológicos presentes na ciência clássica que vários autores estão descrevendo uma reavaliação do paradigma tradicional, para forjar uma ciência que parte de um novo paradigma. Os novos desenvolvimentos ocorrem no âmbito da ciência tradicional, conduzindo os cientistas a uma reavaliação de seu paradigma científico. No entanto, é preciso ressaltar que o novo se aplica não ao surgimento destas noções, mas ao seu reconhecimento pela ciência. Apesar da recorrência de termos inovadores nas áreas do saber, os pressupostos que descrevem não constituem novidade, este status é conferido por seu acolhimento pela ciência.

Apesar da enorme gama de desenvolvimentos científicos contemporâneos podemos distinguir três eixos correspondentes a avanços nas dimensões epistemológicas clássicas: da simplicidade à complexidade e da estabilidade à instabilidade finalmente, da objetividade à intersubjetividade na determinação do conhecimento do mundo. O reconhecimento de que o mundo, seu conhecimento científico é socialmente construído em espaços consensuais, internalizado e institucionalizado por diversas comunidades científicas, transforma a supressão da subjetividade em um questionamento da objetividade. O cientista/detetive opera em espaços múltiplos da realidade. A complexidade representa uma dimensão importante neste novo paradigma. Atualmente, o termo não implica uma ausência ou insuficiência teórica, transformando-se em uma questão, objeto de estudo e pesquisa sistemática. Na medida em que o desenvolvimento das ciências da informação oferece meios para a problematização da complexidade, e, principalmente, para a tentativa de estabelecimento de respostas, a apropriação de elementos do romance de enigma fundado sobre a simplicidade por parte da narrativa contemporânea permite pensar a complexidade e a constante busca de soluções ainda que estas sejam inalcançáveis por instrumentos clássicos de indagação da realidade.

Pensar a narrativa contemporânea sob a perspectiva da complexidade não permite compreender o universo numa dimensão simplificadora, não oferece um método (não-positivo) para fazê-lo, mas gera, compensatoriamente, um desafio que estimula novas formas de pensar e agir.No lugar de uma chave única de acesso à ordem deste mundo, hoje construímos chaves que nos permitam abrir as fechaduras desejadas. Qual o lugar então deste impulso de decifração? Com o deslocamento do logos, o antigo centro das narrativas de enigma muda constantemente e o detetive está neste espaço sempre cambiante, entre o enigma e o conhecimento aos pedaços. Sua motivação é o amor ao conhecimento e ao questionamento não apenas dos pressupostos da ciência que não lhe permitem abrir as janelas do mundo, mas também os de sua própria identidade inconstante, enfim, as realidades plurais e as identidades multiplicadas.

O encanto de escritores contemporâneos pelo romance de enigma e a reafirmação da conjetura que o trespassa afirmam a vitalidade desta parte da narrativa que se permite falar do conhecimento em sua situação atual. Esta devoção dedicada dos escritores contemporâneos ao romance de enigma, sua ênfase convidativa a pensarmos sobre os processos de conhecimento, faz-se a partir da renovação dos processos e artifícios do romance, revertendo e frustrando as expectativas do leitor. Em troca, oferece-lhe um número infinito de possibilidades, de conclusões em aberto. O fascínio que a obra de Poe ainda exerce não deve ser procurada nos termos de uma mera desconstrução de premissas antigas, mas de sua problematização e substituição por outros conceitos. Diferentemente da auto-reflexividade característica do Modernismo, ocupada com a tarefa da escrita como construção verbal, a literatura contemporânea, ou ao menos parte dela, enfatiza questões epistemológicas, sinalizando todo um novo pressuposto para a representação literária. A literatura e sua ciência permitem-se falar de questões epistemológicas abertamente, quando a distância que fundamentava a representação e, mais especificamente segundo nosso argumento, caracterizava o observador de primeira ordem (o detetive/cientista) e o objeto de sua investigação (o enigma) não lhe permite penetrar a suposta essência das coisas, refletindo uma realidade anterior e exterior com exatidão. A infinidade de representações – e soluções – a partir da infinidade de pontos de vista possíveis é o canto da sereia da narrativa contemporânea que se apropria dos elementos básicos do romance de enigma. Através desta troca parte do romance contemporâneo está retomando e inovando a velha e boa arte da narrativa.

Em oposição a uma ciência moderna que procurava legitimar-se através de apelos a metadiscursos, a ciência contemporânea, ao ocupar-se de objetos como “indecidíveis” ou os limites do controle preciso está teorizando sua própria evolução como descontínua e paradoxal. Está mudando o significado da palavraconhecimento”, enquanto expressa como tal mudança pode ocorrer: produz o desconhecido, não o conhecido. E sugere um modelo de legitimação em cuja base estaria a diferença, entendida como paralogia (Pessis-Paternak, 1993: 4). Neste sentido, talvez seja possível dizer que as metanarrativas que sustentavam o discurso iluminista ainda sobrevivam, apenas como referenciais ou instrumentais, como exemplifica o físico brasileiro Mário Novelo, ao partir de modelos fundacionais para repensarem respectivamente a noção e uso do conhecimento na física. A urgência de esclarecer a própria epistemologia decorre da mudança paradigmática, ou da nova epistemologia, que deixa de ser subjacente à ciência e passa a estar duplamente presente no fazer científico. Não apenas ela procura responder à questão epistemológica sobre o sujeito do conhecimento, mas o cientista vive e atua no mundo a partir de sua epistemologia, suas convicções, valores e percepção do que significa conhecer o mundo. Na ciência e em outros campos do saber, hoje, os fins pretendem contribuir para a diversidade, a incerteza e a indecidibilidade. O impulso positivista de investigação do mundo permanece, apesar do modelo que circunscreve mostrar-se implausível e principalmente por nos ter mostrado o caminho errado – prescindirmos de nossa subjetividade – e assim ter-nos indicado outro percurso.

Conjuguemos então esta busca incessante através de sua manifestação na literatura e na ciência. O narrador de Meus lugares escuros, de James Elroy, declara ao final da busca frustrada pelo assassino da mãe. Diante do enigma duradouro, ele afirma: “ nunca vou parar de procurar. Eu não deixarei que isto termine. Eu não a trairei e não a abandonarei outra vez” (MLE, 442). Tomamos a epígrafe final do livro como epígrafe para o final de nossa reflexão:

Estou com você agora. Você fugiu e se escondeu e eu a achei. Seus segredos estão a salvo comigo agora.(...) Saqueei seu túmulo. Eu a revelei. (...) Aprendi coisas a seu respeito. Tudo o que aprendi me fez amá-la com intensidade ainda maior.Eu saberei mais. Seguirei seus rastros e invadirei seu tempo oculto. Descobrirei suas mentiras. Reescreverei sua história e revisarei meu julgamento, à medida que seus antigos segredos forem explodindo. Justificarei tudo isto em nome da vida obsessiva que você me legou.Não consigo ouvir sua voz. Consigo sentir seu cheiro e o sabor de seu hálito. Posso senti-la. (...) Você se foi e eu quero mais de você (Ellroy, 1999: 443).

“A investigação continua”, informa uma nota, solicitando que informações sobre o caso sejam “ enviadas para o detetive Stoner” por telefone ou e-mail (Ellroy, 1999). A nota extrapola a moldura diegética, trespassando as fronteiras complexas, no romance, entre realidade e ficção. O que conta é que o enigma não foi desvelado mas a busca continua, infinita, dentro e fora da narrativa. Este novo detetive continua sua busca, onde provas não encaixam como peças de um quebra-cabeça cujo arcabouço constitui-se pelo mistério da morte da mãe:

Eu era um detetive sem sanções oficiais e sem as restrições de provas. Eu podia pegar sugestões e boatos e considerá-los verdadeiros. Eu podia viajar a vida dela na minha própria velocidade mental. (...) Eu podia envelhecer na minha busca. (...) Eu podia abrir mão da minha busca com devota isenção e esperar o momento em que nossos olhares se cruzassem com alguma nuvem (Ellroy, 1999: 442).

O enigma, duradouro, continua a ser perseguido a partir da premissa de que somente fatos questionáveis, em função de um método oficial de investigação, podem, paradoxalmente, mantê-lo em movimento. A noção de evidência, a exemplo da reconceitualização de erro apresentado por Satya Mohanty em Literary theory and the claims of History, nesta situação alterada demanda revisão. Uma prova corresponde, tradicionalmente, ao caráter de um objeto de conhecimento que não comporta nenhuma dúvida quanto à sua veracidade e falsidade, ligando-se à certeza. Isto é, a certeza, percebida como prova de assentimento que se pretende objetiva e subjetivamente eficiente poderia ser definida como construção, baseada no conceito de produção de diversos modos de conhecimento em vez de um objetivo inatingível de evidência universal. A desistência de uma questão metafísica oferece uma perspectiva do conhecimento e seus objetos para aqueles que se preocupam com sua intervenção no mundo. Para indivíduos, como nós, desconfiados das certezas do pensamento científico e das soluções de enigmas, mas apaixonados pela conjetura, pelas perguntas. Este detetive/cientista assim está determinado a ser um detetive/cientista, completamente novo, está consciente de que vive – e opera – num mundo diferente daquele do investigador do século XIX, o mundo concebido como uma máquina com determinada engrenagem cujas peças, separadas, podem explicar-lhe o funcionamento. Sua realidade deve incluir as imagens das nuvens, sempre abertas a novas configurações, como respostas sempre provisórias e multiformes ao enigma. E sobretudo a fazer um retorno auto-reflexivo, ou seja, aplicar a ciência sobre si mesma para então problematizá-la e reformulá-la – e conseqüentemente seus próprios pressupostos sem valorizar as respostas, sempre provisórias, apenas movido pela vontade de procurar.

Isto equivale a pensar o observador/investigador não mais imune à realidade/crime que observa, porque a partir do momento em que o observador começa a observar o mundo estará também se auto-observando. Esta própria relação de observação com o mundo passará a ser seu objeto de investigação, tratando-se portanto de uma observação de segundo grau. Em teorias de conhecimento atuais tornou-se senso comum o acento sobre a subjetividade do investigador / cientista no discurso científico. No caso deste investigador, uma foto de 36 anos definia o enigmacomo um corpo deixado numa estrada e como fonte de inspiração literária. Eu não tinha como separar o ela do eu” (MLE, 258). Esta permeabilidade entre a mãe e o personagem concede-lhe habilidades – literárias – obsessivas, que brotam como “a busca de um conhecimento sombrio” e mais ainda, uma maldição da obsessão dada pela mãe deu-lhe o dom que “adotou seu formato final na linguagem” (MLE, 259). Assim, o romance Dália negra, escrito a partir de um crime real, o assassinato da jovem Betty Short, passa a assumir uma função de “substituta simbiótica para Geneva Hilliker Ellroy”(MLE, 130). A jovem transformou-se numa espécie de obsessão coletiva da Los Angeles do pós-guerra. A alusão ao romance de 1987 de James Ellroy exemplifica a relação intertextualidade/enigma: a solução de um livro está em outro. Em Dália negra encontramos o germe de busca da morte da mãe como verdade, uma espécie de centro oco que ocupa ambos os romances. “Procure a mulher”, recomenda um velho policial em Dália negra, ao personagem do investigador Bucky Bleichert, a quem está entregue a narração do romance: “Cherchez la femme, Bucky. Lembre-se disso” (Ellroy, 2000: 17). Cherchez la femme, norma de investigação criminal, torna-se, nesta narrativa, não apenas endoxa retórica, regra intertextual que usamos, além daquelas de gêneros que utilizamos a fim de explicarmos um texto, de forma semelhante às leis que utilizamos para explicar universos. A regra não funciona e a busca remete ao infinito. Cherchez la femme, este imperativo, assumirá o papel de uma norma perseguida com insistência, sem no entanto revelar-se eficaz. Ou melhor, o investigador sabe que é o método disponível, mas também percebe que a investigação num mundo diferente torna-se problemática.

No mundo construído a partir do pensamento causal clássico, duas propriedades diversas se dão, natural e inevitavelmente: a cisão entre sujeito/observador e objeto/observado e a ordenação geral do mundo observado em pares de opostos. Esta ordem se confirma, para o conhecimento humano, em experiências diárias, como causa e efeito, dia e noite e uma lista interminável de pares nos quais os opostos se chocam violentamente. Paul Watzlawick, em “A perfeição imperfeita”, lembra que esta é um longo confronto queainda não sagrou, porém, a vitória definitiva de nenhuma das falanges”, resta indagar-se se acaso “existirá algo no cerne da luta e da negação do qual se nutre a força do oponente? A pergunta é retórica: Heráclito o sabia: toda coisa, para existir, necessita de seu contrário” (Watzlawick, 1984: 166). Isto ocorre de diversas formas. Para o taoísmo, o elemento determinante da cisão em pares de opostos é a falência do sentido, enquanto para o cristianismo, é o fato de termos provado da árvore do conhecimento. Um evento desafortunado que teria nos tornado imunes à morte, conforme lamenta o personagem – o cientista observado – Peter Stillman, em Cidade de vidro, de Paul Auster (Auster, 1986: 103). Na ciência moderna, a dissensão constitui-se da severa separação do sujeito observador e do objeto observado. Atualmente, o fato incontornável, segundo o autor, é que a essência da perfeição contém algo que conduz à imperfeição. Este ponto de vista, porém, não constitui uma nova interpretação, mas a suposição de que a desejada perfeição ainda não é a autêntica perfeição, e que por este motivo nos cabe procurar mais dela. Assim percebemos, por exemplo, as construções científicas e sociais estabelecem realidades que são o contrário do estado ideal tencionado, enquanto ocorre o mesmo com o indivíduo: quem deseja esquecer relembra ainda mais dolorosamente. Para chegarmos à perfeição é preciso desarraigar a imperfeição. Mas este imperativo enreda o anseio da perfeição numa armadilha imposta no confronto com o impulso da negação e na premissa desta utopia, pois uma negação não equivale à negação da negação. A última supõe uma retroação sendo, assim, paradoxal. Em resumo, trata-se, segundo Watzlawick, do seguinte: “pode-se refutar uma idéia (ou hipótese, cosmovisão etc.) ou porque se sustenta uma opinião contrária ou porque não se tomou partido nem da idéia nem da sua negação (seu oposto) e, portanto, nos encontramos à margem do conflito entre afirmação e negação (Watzlawick, 1984: 167). Ou seja, estamos fora do par de contrários e somos por isso autônomos. Não se trata de estar a favor ou contra nesta contenda, mas apesar disso – e está o ponto central – entramos em choque com a visão maniqueísta que opera uma divisão do mundo em pares de opostos, uma separação que aparentemente o trespassa e define. Contudo, assim que compreendemos que a negação dos contrários e a permanência fora do contorno dos pares de contrários são dois modos de negação essencialmente diversos, e que apenasem virtude de certo malabarismo mental ou na órbita do pensamento primitivo podem ser concebidas como uma e mesma realidade, fundada na negação e na afirmação, abre-se-nos uma via que nos permite escapar desse dilema paradoxal” (Watzlawick, 1984: 167). Então, reparamos no aspecto inumano desta construção que perpassa nossa vida cotidiana e social, fato aceito resignadamente como dado apriorístico do mundo real. O pensamento maniqueísta não pode permitir-se evitar a imperfeição inata, pertencente à natureza de toda suposta perfeição e decorrência inevitável de sua vontade de perfeição. Logo, o paradoxo torna-se uma pedra de toque, num sentido não somente metafórico, mas bastante concreto.

Uma quarta razão, além da filosófica, da literária e da científica (Eco,2001) se delineia à pergunta sobre a devoção de autores e críticos ao policial, numa época em que perdemos a expectativa de solucionar o enigma de forma definitiva. Trata-se de uma razão imperfeita, da qual partilham o cientista e o detetive: a dedicação apaixonada que impulsiona e mantém a busca da elucidação do mundo, e não pela elucidação. Mudados os mecanismos, mudou a esperança por resultados. O que conta é a procura, permanente, e os resultados, sempre imperfeitos porque provisórios. A crise da razão permite ao novo detetive na narrativa contemporânea reinventar a realidade, pelo amor à procura do enigma, embora não espere mais encontrar a prometida resposta. Estabelecer a natureza do método investigativo contemporâneo torna-se impossível quando pretendemos adotar os pressupostos epistemológicos da ciência tradicional – a simplicidade, a estabilidade e a objetividade – se não assumimos também outros. As técnicas, recursos e conhecimentos desenvolvidos pela ciência tradicional estão disponíveis para o investigador/cientista de múltiplas realidades, mas seu uso se dá de forma completamente diferente de como operava antes da transformação paradigmática. Se não leis definitivas acerca da realidade, mas apenas afirmações consensuais, estão perdidas as ingênuas esperanças de previsibilidade e controle. Este detetive das realidades em contraponto ao detetive da realidade do século XIX – assume, assim como o novo cientista, a complexidade, a instabilidade e a intersubjetividade (Esteves, 2002: 153). O enigma permanece, e o novo detetive/cientista continua apaixonadamente buscando nomes para a rosa, com um foco mais abrangente, mais flexível e sobretudo complexo, integrador, sem a intenção de um sentido oculto, ou mais de um, mas afirmativa e incessantemente – de sentidos, de verdades.

 

Referências bibliográficas

AUSTER, Paul. The New York trilogy: City of glass; Ghosts; The locked room. New York: Penguin, 1990.

ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

––––––. La missione del giallo. Disponível no portal italiano www.espressonline.it  Acesso em 14 jun. 2001.

ELLROY, James. Meus lugares escuros. Rio de Janeiro: Record, 1999.

MOHANTY, Satya P. Literary theory and the claims of history: postmodernism, objectivity, multicultural politics. Ithaca: London: Cornell University Press, 1997.

NOVELLO, Mário; FREITAS, Luciane R. de. Crítica da razão cósmica. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 495-506.

PESSIS-PASTERNAK, Guitta. Jean-Marc Lévy-Leblond, crítico de ciência. In: –––. Do caos à Inteligência Artificial: quando os cientistas se interrogam. São Paulo: Unesp, 1993.

POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1981.

WATZLAVICK, Paul. A perfeição imperfeita. In: –––. A realidade inventada. Campinas: Editorial Psy II, 1994, p. 165-168.


 


 

[1] Optamos pelo uso da forma do plural nesta livre tradução.