Discurso direto e discurso indireto
história e sentidos
[1]

Vanise Gomes de Medeiros (UERJ e PUC-Rio)

 

Introdução

Em relação ao discurso direto e indireto, há uma posição tradicional, presente em diversas gramáticas contemporâneas[2], que apresenta o discurso direto (doravante DD) como aquele em que se reproduz a palavra do outro e o discurso indireto (doravante DI) como aquele em que se reformula a palavra do outro. Conforme essa posição, com o DD se garante a fidelidade do dizer; com DI a questão da fidelidade se torna complexa uma vez que se traduz a palavra do outro. Ainda nessa tradição, o DI também é pensado como sendo uma transformação de um discurso direto, isto é, como um “DD transformado” (Authier-Revuz, 1976: 6), um discurso segundo a partir de um discurso primeiro (o DD, no caso).

Isto posto, com este trabalho pretende-se mostrar que tal posição, se dominante em inúmeras gramáticas e também presente em abordagens lingüísticas (como é o caso, por exemplo, da abordagem transformacionalista), não constitui, no entanto, uma posição única. Mais do que isso, objetiva-se demonstrar aqui que tal posição é fruto de um tratamento de base lógico-sintática, cujo percurso será exposto neste trabalho.

 

Discurso direto e indireto na tradição clássica

Rivara (2000) bem como Compagnon (1996), na releitura que fazem de Platão, apontam em A República o gérmen de uma discussão que pode ser trazida para essas duas formas de discurso relatado (DD e DI). Conforme Rivara (2000: 16), Platão opõe as obras em que o autor fala sempre em seu próprio nome e expõe a história àquelas em que ele segue o princípio da imitação e dá a palavra a uma personagem, tentando nos dar a impressão que não é ele que fala. Platão manifesta sua desconfiança pela segunda, isto é, por aquelas obras em que o autor dá a palavra ao personagem dando a impressão de que não é ele, autor, quem fala, e prefere a primeira, isto é, aquelas obras em que se tem a narrativapura”, em que há “harmonia”.

Isto possibilita uma importante observação: dar a palavra ao outro, em Platão, conforme Rivara, resulta em simulação. O que significa que o DD pode ser pensado não como lugar de reprodução do discurso do outro, mas como espaço de simulação de um dizer.

Compagnon (1996) também inscreve a questão do DD e DI na problemática da mímesis em Platão. Apesar de, tal como Rivara (2000), situar o problema destas duas formas de discurso relatado na releitura que faz de A República, Compagnon vai buscar na reformulação do funcionamento da mímesis em O sofista a compreensão da posição de Platão em A República.

Em O sofista, diferentemente do que ocorre em A República, não se tem mais a tríplice divisão entre: a idéia de cada coisa, que se situa no patamar da verdade e que tem por criador Deus, a cópia da realidade, em que se tem a produção do objeto pelo artesão, e a cópia da cópia, em que se encontra a imagem obtida pelo pintor ou poeta. A divisão é outra em O sofista; e será essa outra divisão que irá permitir se entender, em Platão, o desprestígio do discurso direto em prol do indireto.

Conforme Compagnon, nesse outro texto de Platão, as artes de produção são divididas em dois tipos: a produção divina e a produção humana. Cada uma delas produzindo realidades e imagens. As realidades da produção divina corresponderiam à criação; as imagens da produção divina seriam, por exemplo, os sonhos. Do lado da produção humana, ter-se-ia como produção da realidade a casa do pedreiro, por exemplo. E como produção das imagens uma nova divisão:

Por um lado, a arte de produzir cópias (eikon), as “boas” imagens que respeitam as proporções, que são dotadas de semelhança com a idéia; por outro, a arte de produzir simulacros (phantasma), as más imagens que simulam a cópia, que fabricam a ilusão, que são desprovidas de semelhança com a idéia porque são produzidas sem passar pela idéia. (idem, 48)

Ou seja, em O Sofista tem-se uma divisão entre boas e más imagens, sendo a primeira a cópia, que mantém relação com a idéia, e a segunda, o simulacro, que não mantém relação alguma com a idéia. Cabe destacar que o simulacro não é uma cópia da cópia, ou melhor, o simulacro não é sequer uma cópia, mas uma simulação da cópia. Trata-se de uma imagem desprovida de semelhança.

É, pois, esta nova divisão que irá permitir Compagnon resolver o impasse que expõe em A República ao se ter a valorização do DI em detrimento do DD. Eis o impasse:como integrar o discurso indireto ao trabalho do artesão, ambos valorizados; e o discurso direto ao objeto pintado, ambos desvalorizados?” (ibidem: 50). Para isto, seria preciso entender o DD como cópia do DI, isto é, como cópia da cópia, o que se mostra problemático. Com a nova descrição da mímesis de O sofista, tal dilema se desfaz na medida em que se tem o resgate da mímesis através da sua divisão em produção de boas imagens (cópias) e de más imagens (simulacros). Ou seja, com esta outra leitura é possível se entender o lugar do DI, como cópia (boa imagem), e do DD, como simulacro (má imagem). O DD não é, então, cópia do DI.

Em suma, o DI é tomado como tendo relação com a idéia, uma vez que é cópia (boa), e o DD, como não tendo relação com a idéia, como não sendo cópia do DI, isto é, como não sendo cópia da cópiaPortanto, o DD, na releitura de Platão por Compagnon, não se apresenta como espaço de reprodução tampouco como tendo a pretensão de funcionar como um discurso verdadeiro. Ao contrário, o DD é simulacro e, como tal, condenável. Enfim, o DD, longe de ser tomado como discurso do qual o DI derivaria, longe de ser tomado como possibilidade de reprodução de discurso, longe de ser pensado como sendo “fiel” ao discurso outro, é proposto como simulacro: não se trata sequer de uma cópia, mas de ilusão que serve para enganar, ludibriar.

O DD não tem, pois, sua gênese no paradigma da verdade. Isto, pensado discursivamente, significa que o DD nem sempre fez funcionar o efeito de verdade que hoje se faz presente nas gramáticas, em algumas abordagens lingüísticas e no imaginário de língua. o DI, como se observou, funciona como cópia, boa imagem. Se não faz funcionar o efeito de verdade, tampouco funciona, como ocorre com o DD, como recurso lingüístico que serve ao engano.

Estes dois autores, em suas releituras de Platão, permitem assim problematizar o funcionamento de duas formas de discurso outro tal como elas se apresentam no imaginário atual: reprodução de um dizer, no caso do DD, e tradução de um dizer, no caso do DI. Oposição que trabalha também o efeito de anterioridade do DD sobre o DI, que ainda não se apresenta. Através de Rosier (1999) vai se poder avançar um pouco mais esse quadro.

Embora Rosier critique a posição de Compagnon, porque este teria feito deslizar uma questão relativa à narração, ligada à noção de gênero, para um fato gramaticalafinal, no latim como no grego o problema do discurso relatado é tratado no quadro das figuras de narração e não como uma fato gramatical (Rosier, 1999: 15) –, ela irá confirmar a supremacia do DI sobre o DD e, indo além, apontar o DI como sendo uma forma de discurso que teria seu funcionamento, no período clássico, como discurso da verdade, em virtude de se constituir como discurso da lei.

Defendendo a posição de que o par oratio recta e oratio obliqua ultrapassa uma correspondência com o que se entende hoje por DD e DI, uma vez que não se restringe à frase e tampouco se apresenta nas gramáticas latinas, mas se trata uma oposição de ordem retórica (onde se encontra tal oposição no período clássico), isto é, uma oposição que serve para diferenciar gêneros discursivos, Rosier vai apresentar sua hipótese sobre DI inscrevendo-o na relação da narração com o político, isto é, partindo do suposto de que a questão da narrativa tem injunções políticas com conseqüências na forma de discurso relatado.

Conforme esta autora, o DI tem seu nascimento, seu primeiro texto escrito, no século II a.C., com a proscrição dos rituais dos Bacanais. Esses rituais, que vinham sendo objeto de perseguições judiciárias, são proibidos pelo senado grego que redige, em discurso indireto, o texto de interdição dos Bacanais. Trata-se, pois, de um texto que institui uma forma de escrita da lei, qual seja, o discurso indireto. Pensando esse gesto através da Análise de Discurso, teoria que serve de suporte para a reflexão aqui empreendida, trata-se de um duplo movimento, como se pode observar: ao mesmo tempo em que se instaura uma forma de escrita da lei, em discurso indireto, este modo de escritura, isto é, o DI, funciona como forma que confere um estatuto oficial ao enunciado que ele relata.

Retornando à autora citada, esta formula sua hipótese sobre o DI: trata-se de uma forma codificada por uma prática política; uma forma que se inscreve como prática de uma determinada formação discursiva[3], qual seja, a da lei:

(...)o discurso indireto não destaca uma explicação gramatical mas uma formação discursiva particular, ideologicamente marcada. Exprimir-se em estilo indireto é adotar o estilo da lei, é, segundo as palavras de Montaigne, “dizer a verdade”. A prática se torna práxis.” (idem:16, Tradução minha)

E com isto se inscreve como forma de relato da verdade (ibidem). Portanto, a partir de Rosier, pode-se observar o DI como materializando uma determinada formação discursiva, qual seja, a jurídica, e instaurando assim uma forma de relato do discurso da verdade, em DI, ao mesmo tempo em que se instaura como forma de discurso da verdade. Uma forma de prática da verdade que também atua no discurso histórico. Neste, bem como no discurso jurídico, não se teria o DD. É interessante sublinhar que o não comparecimento do discurso direto no discurso jurídico e no discurso histórico, no período clássico, se deve, recuperando o que se observou com Compagnon, em função de, com o discurso indireto, o autor falar, isto é, de o discurso indireto funcionar como se o autor assumisse o dizer ao passo que o discurso direto funciona como se o autor simulasse um dizer, instaurando assim a ilusão de um falso dizer.

Antes de prosseguir, é interessante trazer esta questão para nossos dias para observar o discurso indireto funcionando como prática do discurso da verdade em alguns territórios discursivos da sociedade contemporânea.

O discurso indireto ainda é uma forma de inscrição na lei da fala do outro. Ou melhor, o discurso indireto é uma prática corrente judiciária em diferentes situações enunciativas. Por exemplo, tanto em depoimentos policiais quanto em relatos de depoimentos nos tribunais, relata-se a palavra do outro em discurso indireto e se responsabiliza com esse gesto o outro pelo dizer. E não somente , em outras práticas institucionais o discurso indireto também comparece funcionando como forma atestatória do dizer e do fazer: é o que se pode observar nas atas e documentos em reuniões em que os dizeres e fazeres são redigidos em discurso indireto e, depois de lidos, assinados. Ou seja, ainda que as gramáticas e abordagens lingüísticas contemporâneas apontem para o DD como forma de reprodução fiel, há territórios em que o discurso indireto se encontra institucionalizado como prática de um discurso da verdade.

Voltando à Rosier, se, por um lado, a autora observa que o discurso indireto constitui uma prática política, isto é, uma prática do discurso jurídico (e também do discurso histórico) é em outro lugar que irá se encontrar o DD no período clássico, a saber, na poética. Ou seja, o DD se apresenta como tendo estatuto estilístico ao passo que o DI funciona comosigno de legitimidade”, (idem, 21). Daí, como se apontou atrás, o tratamento destas formas como recobrindo uma oposição não de formas gramaticais mas de gêneros discursivos. O DI como uma prática do discurso jurídico e histórico; o DD como uma prática do discurso poético, literário.

A questão que se apresenta agora é: se, no período clássico, o DD não funcionava como forma de atestação do dizer, como forma de relato da verdade, em que momento o DD passou a ter o estatuto de discurso da verdade? Ou melhor, pensando esta questão à luz da Análise de Discurso, em que momento o DD passa a ser tomado como forma de relato “literal”, isto é, como produzindo o efeito de literalidade do dizer?

 

O processo de mudança
do
estatuto dos discursos direto e indireto

Será, conforme Rosier, com os gramáticos de Port-Royal que se terá o começo de uma mudança significativa no estatuto do DI: de língua da lei, portanto, da verdade, para finalmente, no século XIX, se apresentar como discurso do falso, da infidelidade.

Como dito, discurso indireto e direto não constituem uma questão gramatical no período clássico, tampouco constituem um par que se oponha nesse período. É somente no século XVII, com a gramática de Port-Royal, que vai se encontrar o discurso indireto sendo estudado a partir do juntivo que. Ou seja, é através da sintaxe que o discurso indireto passa a ser pensado em uma gramática. É que ele se gramaticaliza. É, pois, no século XVII que comparece na gramática, como um par, o DD e o DI.  É também nesta gramática que se apresenta a idéia de transformação do DD em DI, embora centrada apenas na pessoa gramatical (mais tarde é que a idéia de transformação se estenderá aos verbos). Aqui interessa destacar que a idéia de transformação coloca o DD como anterior ao DI, isto é, como um discurso primeiro, o que irá possibilitar se pensar mais adiante em uma supremacia do DD em relação ao DI. Ou seja, instaura-se, pois, com esta gramaticalização do par DD/DI, um gesto de leitura do DD e do DI como formas que se relacionam e como formas que decorrem uma da outra. Gesto que irá permitir outros sentidos a estas formas.

Uma observação se faz necessária sobre a Gramática de Port-Royal: o juntivo que é tomado nesta gramática como pronome relativo e todas as relativas são consideradas como incidentes. O DI é, pois, tratado como uma subordinada através de um pronome incidental. Contudo, considerar o DI como subordinada e o DD como discurso primeiro não significa ainda a supremacia do DD sobre o DI. Ao contrário, na gramática de Port-Royal, o DD continua condenado. Em outras palavras, ainda que gramaticalizado como forma antecedente ao DI, o DD continua a não significar na formação discursiva do DI, qual seja, na que confere legitimidade ao dizer. É preciso expor a relação entre o DD e DI nessa gramática e a manutenção da proscrição ao DD.

Os autores da gramática de Port-Royal se interrogam sobre a prática do discurso indireto e observam que, entre os hebreus e evangelistas, diferentemente do que ocorre na tradição latina, há uma preferência pelo relato direto. Para os gramáticos de Port-Royal, no entanto, a prática do DD é considerada um arcaísmo. A posição discursiva desta gramática é ainda de interdição do DD e de preferência pelo DI uma vez que com este se mantém a unidade da predicação, algo que não ocorre com o DD. Este justapõe duas enunciações e ameaça a unidade predicativa. A polifonia que o DD expõe proscreve seu uso.

Portanto, com a gramática de Port-Royal, o par se gramaticaliza. E, se, através da idéia de transformação, o DD passa a ser considerado como anterior ao DI, continua, no entanto, em função da idéia de unidade de predicação e da harmonia do texto, a ser proscrito. Será através da pontuação, ou melhor, das aspas, que, no século XVIII, o estatuto do DD irá se alterar. Continuando a seguir os passos de Rosier, é com Beauzée que se tem, no século XVIII, o tratamento do DD em um capítulo consagrado à pontuação. O DD comparece na gramática em termos de pontuação e é tratado na relação da escrita com o oral.

Percebendo a função lingüística da pontuação, Beauzée se debruça sobre o DD e não se refere ao DI. Apresenta o DD como equivalente à citação, em função das aspas. As aspas, sinais tipográficos inventados no século XVII pelo impressor Guillaume (Compagnon, 1996: 38), são expostas como servindo para descrever a maneira de relatar diretamente as palavras do outro (Rosier, 1999: 30) e, nesse sentido, não se distingue DD de citação[4]. Ambos, citação e DD, aparecem, então, como falas demarcadas e aprisionadas pela tipografia. Ambos comparecem como falas primeiras. Falas autênticas. Visto isto, importa tecer algumas observações.

Em primeiro lugar, aproximar o DD da citação serve para conferir àquele um outro sentido. Melhor dizendo, se o DD, ou melhor, a oratio recta situava-se na poética e por ser simulacro era banida, no discurso dos sofistas ela também aparecia e era condenável duplamente: por ser simulacro e por poder corromper. Mas poder corromper implica assumir que esta forma de relato tem uma força. Ou seja, à citação se atribuía uma força argumentativa. Aproximar, então, citação de DD implica conferir de alguma maneira essa mesma força ao DD. E isto permite uma reflexão interessante no terreno do discurso jornalístico.

Se o DD não é prática do editorial ou mesmo de artigos, não por ser simulacro, mas por se trabalhar nestes espaços a ilusão de neutralidade e objetividade que se articula também através do não rompimento sintático da sentença (algo que o discurso direto promove), é, no entanto, forma recorrente na reportagem jornalística. ocorrendo em função de sua força argumentativa e do juridismo (Ver Medeiros 2003) no discurso jornalístico.

Em segundo lugar, tomar DD e citação como equivalentes a partir de um recurso tipográfico – as aspas – permite observar a tipografia como um dispositivo que serve à política do dizer na imprensa, isto é, os sinais tipográficos são produto da prática política da imprensa sobre as formas de demarcação da palavra do outro.

Ainda a esse respeito cabe sinalizar que os séculos XIX e XX assistem uma revolução tecnológica no domínio do discurso relatado (Catach, 1996: 77). Aparece uma profusão de sinais de circunscrição da palavra do outro: alguns são criados; outros ressignificados, como é o caso das aspas que ampliam suas funções. À guisa de explanação, as aspas existiam na Idade Média (idem) com outros sentidos e funções. Por exemplo, elas marcavam um comentário crítico, “um acréscimo requerendo uma atenção especial sobre um fragmento do texto” (Authier-Revuz, 1998: 373); a partir do final do século XVIII, passam a servir para indicar a alternância de vozes do DD.

Então, com os novos sinais tipográficos e/ou com a ressignificação dos existentes, estava em questão, de acordo com Catach, “a passagem de uma cultura da voz e da orelha para um cultura do olhar”, por um lado, e, por outro, a desambigüização do dizer. Estava em jogo, pode-se dizer, lançando mão de Foucault (1997) e Schneider (1985), a questão a autoria. A integração do autor ao sistema de propriedade da nossa sociedade (Foucault,1997:48) tem como contrapartida a incorporação da alteridade ao sistema legal. É preciso a partir daí separar o que seria de si do que seria do outro. Conforme Schneider (1985:35), data do início do século XIX as primeiras preocupações com o plágio; portanto, com o direito de autoria. Legisladores e juristas passam a intervir para definir a propriedade autoral. Para determinar o que era do dizer do um e o que era do dizer do outro. As aspas cumprem este papel.

Enfim, as aspas, igualando DD à citação, permitem observar o papel da tipografia no que se refere à mudança do estatuto do DD e no que se refere à política do dizer que resulta de uma política sobre os sentidos. Seguindo Orlandi (2001:116), pode-se afirmar que as aspas, assim como as outras diferentes tecnologias da escrita (pontuação, parênteses, notas de rodapé), estabelecem “uma relação regrada com os sentidos”, fabricam a “normalidade dos sentidos”. As aspas, no caso, estabelecem a unidade na dispersão dos dizeres.

Para Rosier, o papel das aspas ao lado da polêmica instaurada no século XIX em função da entrada em cena do discurso indireto livre (doravante DIL) é fundamental na mudança do estatuto do DD. Sua hipótese é a de que a ampla discussão sobre o DIL no século XIX[5] tem como uma das conseqüências colocar em cena, como um par o DD e o DI, e de transformá-los, em diferentes lugares, em um trio: DD, DI e DIL.

Em outras palavras, se DD e DI aparecem como par na gramática de Port-Royal, isto é, conforme Rosier, algo circunstancial. No século seguinte estão separados em lugares distantes: DI sendo tratado na parte relativa às completivas; DD sendo tratado na parte referente à pontuação[6]. É somente com a entrada em cena do DIL que se passa a trabalhar DD e DI como par.

Pensando a questão em termos discursivos, a entrada do DIL e a discussão que suscita toma o par DD/DI como posto, isto é, de acordo com a Análise de Discurso, como um já-lá, como um pré-construído. Por um lado, o DIL instaura na gramática o DD ao lado do DI, por outro lado, possibilita uma reflexão sobre a autonomia do dizer. Reflexão que decorre da autonomia sintática possibilitada pelas aspas.

Retornando a Rosier, para esta autora, uma vez que a gramática de Port-Royal colocou o DI como forma derivada do DD, o passo seguinte e fundamental para a mudança de estatuto do DD se deu com as aspas, ao servirem para demarcar um território como de reprodução do dizer, por indicá-lo como autônomo:

O DD usa marcas próprias para uma reprodução fiel assim como a citação e se constrói como verdadeiro ou fazendo a verdade. O DI se torna a partir daí discurso da transposição, do falso. (ibidem, 43, Tradução minha)

Autonomia que servirá, com a entrada do DIL em cena, para criar para o DD a tradição de forma de reprodução e manutenção fiel da palavra do outro, forma de reprodução verdadeira do discurso do outro; daí, forma de relato da verdade.

 

Da autonomia do discurso direto

São várias as ilusões que o DD engendra: de fidelidade à palavra do outro, de objetividade na transcrição da palavra outra e de neutralidade por parte de quem relata esta palavra outra. Ilusões que se apóiam no corte sintático promovido na cadeia discursiva; na possibilidade de o DD funcionar como forma autônoma, corpo à parte que se mostra, como exterior, à cadeia discursiva.

De Authier-Revuz (1978) importa destacar duas marcas do comportamento autônomo do DD. Diferentemente do DI, o DD não comporta sinonímia, isto é, não se pode substituir, por exemplo, “não sou casado em um DD por “sou solteiro” (tradução de exemplos de Authier-Revuz, 1978:54). O DD, também em oposição ao DI, permite a repetição daquilo que não se compreende; por exemplo, da palavra estrangeira. Ou seja, a autonomia do DD decorre de, com esta forma, poder se ter a reprodução do significante. Tipo de reprodução que impede a sinonímia e que permite a reprodução da palavra ouvida embora não compreendida. reside sua ilusão de reprodução verdadeira do discurso do outro. Ou seja, a impossibilidade de alteração do significante de um território demarcado (pelas aspas, no caso) possibilita que se tome o DD como mantendo a palavra outra. Esquece-se, como lembra Authier-Revuz (2001:193), quetoda forma de representação de um discurso outro reencontra então o problema do sentido e, portanto, marca, qualquer que seja o tipo de representação escolhida, o registro da interpretação”(Tradução minha). Esquece-se de que manter o significante não implica a manutenção do significado. Não se considera a enunciação. Isola-se um dito e julga-se assim se dar conta do dizer. Delimita-se um enunciado como tal e aprisiona-se-o entre aspas supondo com esse gesto apreender o sentido. Julga-se, pois, domar o sentido aprisionando o dizer.

De acordo com Authier-Revuz (1998:145), o discurso relatado, DD ou DI, não relata uma frase ou enunciado, mas um ato de enunciação. reside a diferença entre uma abordagem enunciativa e discursiva de outra de ordem sintática. Nesta, ele importa pelas marcas de subordinação e de pronominalização; naquela, ele é assumido enquanto enunciação outra que se ilude poder reproduzir. Daí, no caso do DD, seu conflito constitutivo:

O L[ocutor] se apaga diante do enunciado que ele repete textualmente e, ao mesmo tempo, quer ele queira ou não, retira todas as marcas da situação da enunciação que ele relata e na qual o enunciado se inscreve e toma seu sentido. (Tradução minha)

Então, o DD relata uma enunciação que ele apaga no ato de delimitação do enunciado outro através das aspas. Demarca-se o dizer outro supondo não intervir – esta é sua ilusão: da não intervenção na palavra do outro. E é esta ilusão que produz o efeito de neutralidade no tratamento do discurso outro, e, indo mais adiante, o efeito de verdade.

 

Para concluir

Através de Compagnon, pôde-se observar o DD funcionando como simulacro na tradição grega, como discurso da falsidade, ao passo que o DI se apresentava como cópia, boa cópia. Através de Rosier, foi possível acompanhar como o DI se constituiu como discurso da lei e, por conseguinte, da verdade, e como, no século XIX, veio a perder este estatuto para o DD, que passa a funcionar como discurso da verdade. O caminho que se trilhou com Rosier serve também para pensar o percurso da gramaticalização destas duas formas de relato do discurso outro como produto de um tratamento de base lógico-sintática dado ao DI e DD, isto é, como produto de um processo que vai significando DD e DI na formação discursiva da lógica. Expliquemos revendo a passagem do DD, de simulacro, para discurso da verdade no século XIX, e a do DI, de discurso da lei, para discurso que falseia.

No caso do DI, este é, como se viu, gramaticalizado através do juntivo que. E passa a ser tomado como forma decorrente de outra, isto é, do DD. No caso do DD, este, por sua vez, adentra a gramática através de um sinal de pontuação: as aspas. Em ambos os casos está em jogo a formação discursiva lógico-matemática que trata as formas de discurso relatado através do tipo de proposição, tomando a sentença como objeto em si. No caso do DI, pela completiva, isto é, pela oração subordinada; no caso do DD, pela autonomia do dito que advém das aspas associadas à ruptura sintática que esta nova forma de escritura possibilita. Em outras palavras, nem DI nem DD são tratados enunciativamente, na gramática, isto é, não importam na relação com a enunciação que reportariam, mas como enunciados tomados sintaticamente.

O percurso que se observou, então, consiste no percurso que trabalha estas duas formas de discurso relatado como fenômenos da sintaxe e que como tal permitiu a assunção do DD à discurso da verdade, uma vez que discurso primeiro (o DI, como dito, passa a ser tomado como discurso derivado do DD) e uma vez que forma autônoma. Autonomia que coisifica a palavra do outro e faz supô-la transparente. Que a toma como objeto do mundo, e que, com esse gesto, instaura a ilusão de apreensão, de detecção fiel do discurso outro, e produz o efeito de objetividade e neutralidade de um trabalho de transcrição da palavra do outro.

 

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[1] Este artigo é uma versão alterada de um item relativo a discurso relatado de que tratei na minha tese de doutoramento (Medeiros, 2003)

[2] Como é o caso de Cunha e Cintra (1985) e Rocha Lima (1988).

[3] A noção de formação discursiva trabalhada advém de Foucault.

[4] Embora o travessão existisse desde a Antigüidade como “signe de correction” (Catach,1996: 77), será somente no século XIX indicará alternância de vozes, servindo com isso especificamente ao DD (Rosier,1999: 30) e materializando assim sua diferença em relação à citação.

[5] Não é o caso de se tratar aqui da polêmica suscitada com a descoberta do DIL. A esse respeito, vale conferir Cerquilini (1983).

[6] Cabe destacar que esta separação comparece em muitas gramáticas brasileiras.