O DESVIO & A LÍNGUA

Renata da Silva de Barcellos
(C. E. Ten. Otavio Pinheiro)

O trabalho tem por objetivo apresentar e classificar alguns tipos de desvios presentes na Língua Portuguesa através da análise, por exemplo, de tirinhas jornalísticas e de charges responsáveis pelo humor.

Lingua(gem)

Desde que há a fecundação e a formação do embrião, o homem é imerso na linguagem através da audição das pessoas mergulhadas no mundo simbólico (ora conversando entre si, ora se dirigindo ao feto). O bebê, mesmo não fazendo parte ainda do mundo exterior, é capaz de perceber os sentimentos da mãe e de responder a alguns estímulos, como chutar-lhe a barriga, quando alguém se dirige a ele. Observa-se assim como a linguagem constitui o homem-ser-social.

Ao nascer, o homem é capturado pela linguagem (Lemos: 2001), pois o bebê se insere num mundo significante já existente no qual se integra progressivamente pela aprendizagem, constituindo assim seu pensamento, caráter, conduta e forma de ver o mundo. A respeito desse último elemento, pode-se dizer que cada grupo social organiza a linguagem em função de sua visão de mundo. Por exemplo, os esquimós dispõem de sete palavras para designar a realidade neve, enquanto os astecas usam o mesmo termo para frio, neve e gelo. Enfim, a linguagem é a expressão da forma pela qual o indivíduo vê o mundo e o representa. Dessa forma, o pensamento está condicionado aos instrumentos lingüísticos.

A partir do momento em que o homem coloca a linguagem em uso, ou seja, a partir do momento que aprende uma língua, ocorre a interação verbal, pois a linguagem é um elemento constitutivo da interação verbal que, por sua vez, é: ‘’a realidade fundamental da linguagem’’(Bakhtin, 1986). Ao longo da interação, que, conforme Kerbrat-Orecchioni, é “o lugar de uma atividade coletiva de produção de sentido, atividade que implica o emprego de negociações explícitas ou implícitas que podem ter êxito ou fracassar” (1990: 28). Por isso, ao interagirem, emissor e destinatário compartilham códigos e negociam sentidos e posições. Portanto, a linguagem assume o seu estatuto de ação (Bronckart: 1999), no outro e sobre o outro. Isso significa que toda atividade humana é regulada pela linguagem, mediada pelo agir comunicativo. Dessa forma, o homem, dentre outras possibilidades, pode criar palavras para designar novas realidades, por exemplo, na área da informática, foi criado o verbo deletar (inglês delete) para nomear a ação de apagar e, recentemente, na área de beleza, foi criada a palavra metrosexual para nomear homem vaidoso. Verifica-se, assim, que a linguagem é um fenômeno social, o homem se constitui enquanto sujeito ouvindo e assimilando as palavras e os discursos do outro.

Quando a linguagem é posta em uso, são mobilizados diferentes sentidos: os pretendidos e os não-pretendidos por aquele que toma a palavra. Conforme Clark, aquele é denominado produto previsto e esse, produto emergente (1990: 67). E é nesse vão do não-pretendido que surge o desvio. Portanto, cada palavra tem dupla face: é determinada tanto por quem a emite como por aquele para quem é emitida.

Enfim, a linguagem é o centro dos homens - meio de comunicação e modo de estar no mundo. É através e por meio dela que há o entendimento ou não entre os homens.

A fala é, portanto, uma atividade social (Goffman, 1980), porque é sempre endereçada ao outro com uma determinada intencionalidade, num momento e num espaço. Pela interação, os participantes exercem uma influência recíproca nas ações estabelecidas face a face constituindo uma modalidade, que é a conversação.

Preservação da face

Quando uma pessoa endereça a fala a alguém, leva-se em consideração não só o contexto a fim de adequar o registro da língua, o tipo de postura, de vestimenta etc; como também as características do interlocutor para preservar a face de ambos implicados numa dada interação. O princípio da preservação de faces é fundamental para mostrar como ele determina na língua fatos estruturais e formas conversacionais. Cada povo com sua língua materna possui regras culturais que estabelecem como cada indivíduo deve se conduzir em virtude de estar num agrupamento, ou seja, no convívio social.

Assim, o contato com o outro constitui potencialmente uma ameaça e contém sempre uma dose de imprevisibilidade. Ao interagirem em sociedade, ao protagonizarem cenas, os indivíduos se preocupam em manter um certo controle da situação e via de regra se esforçam para anular possíveis agressões e conflitos. Submete-se às chamadas regras de polidez. Essas normas Kerbrat-Orecchioni define como “leis do discurso” (apud CUNHA 1991:33).

Na interação verbal, quando se dirige a palavra a outra pessoa, o enunciado proferido pode ter valor positivo ou negativo. Essas questões relacionadas à polidez integram a parte da teoria das faces, formulada a partir do final dos anos setenta, principalmente, pelos sociólogos americanos P. Brown e S. Levinson. Inspirados em Goffman, desenvolveram uma teoria que atribuem ao indivíduo duas faces: uma negativa, que corresponde ao território de cada um (seu corpo, sua intimidade), e uma positiva, que está relacionada com a sua fachada social, a imagem que deseja passar para os outros.

Por isso, quando alguém no decorrer do seu discurso apresenta algo inesperado, às vezes, até mesmo infringindo as regras de boa conduta estabelecidas, ocorre o desvio na linguagem, que pode ser classificado como mal-entendido ou gafe (dentre outros). Tanto um quanto o outro deixa a face de um dos interlocutores ou de ambos ameaçada. Portanto, no discurso, o homem recorre a diferentes recursos/estratégias a fim de não comprometer a si mesmo e/ou aquele a quem se dirige, como no seguinte exemplo: “Passe-me o sal!”. O enunciado que consiste num ato de linguagem indireto tem o valor ilocutório de pedido pelo fato do enunciador possivelmente estar achando a comida sem sal. Caso o convidado se dirigisse para o anfitrião dizendo: “Hum, que comida sem sal”, certamente, o efeito deste enunciado, infrator das regras culturais, sobre o destinatário seria de ofensa e, portanto, a face do locutor estaria completamente ameaçada e exposta para receber qualquer tipo de resposta.

O desvio

A partir de tudo o que já foi exposto, verifica-se que a linguagem por ser dinâmica, ser a ação de um sobre o outro, há sempre uma intencionalidade que ora pode ser percebida, ora é possível surgir um outro efeito que não o esperado. Assim, no que diz respeito ao efeito inesperado, pode-se dizer que é proveniente do distanciamento de um padrão denominado de desvio. Verifica-se que o desvio pode ser intencional (presente em discurso humorístico, publicitário, lúdico, entre outros) ou não-intencional (como no caso do mal-entendido e da gafe).

A criação de efeitos como prazer, surpresa e estranhamento sobre o destinatário pressupõe que o mesmo reconheça no enunciado do locutor algo que se distancia do padrão estabelecido pela sociedade. Serão observados na análise abaixo os procedimentos responsáveis pela produção de um determinado efeito. E concomitantemente será apresentada a seguir uma proposta de classificação com base em alguns tipos de desvios de acordo com Almeida (2001):

1- Contraditório ou paradoxal: quando se usa um item lexical no lugar de outro, apresentando algum aspecto opositivo em relação a algum termo.

Situação: Um político americano dando seu depoimento a respeito da atual situação dos Estados Unidos diz: “Se Lincoln fosse vivo, ele estaria rolando no túmulo.”

Na interação entre político e povo americano cujo enquadre é o de um comício, o enunciador ao discorrer sobre o assunto da conjuntura do país, faz, no seu enunciado, alusão a outro enunciado anônimo pertencente ao patrimônio social “Fulano deve estar rolando no túmulo”. Frase esta que, no conhecimento de mundo compartilhado, tem o valor de descontentamento por parte da pessoa em questão. Porém, ao fazer o intertexto, troca o vocabulário “morto” pelo vocabulário “vivo”. O enunciador no seu discurso ao proferir tal enunciado “Se Lincoln fosse vivo, ele estaria rolando no túmulo” estaria querendo revelar o descontentamento de uma determinada pessoa, no caso Lincoln, com a situação atual do país. Ficando assim com sua imagem ameaçada em função da escolha lexical equivocada. Dessa forma, observa-se que se trata de uma gafe.

2- Ambíguo: algum item lexical utilizado aponta para significados diferentes.

O título de uma reportagem de um jornal “Punks pedem justiça em enterro”. Esse enunciado aponta para duas hipóteses: uma, foi feito um movimento no enterro para pedir justiça e outra, os Punks pedem para que nos enterros seja feita justiça. Ou seja, admite mais de uma leitura.

3- Intertextual: quando se usa um item lexical no lugar de outro ao fazer referência a um texto já existente. A publicidade da marca Ceramidas usa como slogan o seguinte enunciado: “Dona flor e seus dois produtos”, que, por sua vez, se reporta a uma das obras de Jorge Amado intitulada Dona flor e seus dois maridos. Observa-se assim na publicidade que Dona Flor é representada pela marca: Ceramidas e os dois produtos são: o xampu e o condicionador.

4- Polifônico-incoerente: quando na enunciação há mudança de voz, mas no momento que outra voz entra, há uma incoerência com relação ao que foi dito pela primeira.

Situação: Um médico numa entrevista num programa de televisão diz: “Fumar mata. E se você morrer, vai perder uma parte muito importante de sua vida.”

Na interação entre entrevistado e entrevistador cujo enquadre é de entrevista sobre os perigos do fumo A primeira voz assumida pelo médico, enquanto locutor, se trata de um enunciado de conhecimento geral “Fumar mata”. Pode-se chamá-la de frase feita, clichê, pois é divulgada constantemente na mídia através de propagandas do Ministério da saúde. Em seguida, o médico muda de posição (footing) e, enquanto enunciador, infere o seguinte: “E se você morrer...”. Ao fazê-lo, apresenta um desvio imprimindo no seu discurso uma incoerência semântica proveniente das seguintes estruturas lexicais: “morrer e perder parte de sua vida”. Se o enunciador disse morrer já está implícito “perder a vida”. Daí conclui-se que o comentário feito foi incoerente, levando-o assim a ter sua face ameaçada através do desprestígio que passa ter perante as pessoas que o estavam ouvindo. Tratando-se assim de uma gafe pelo fato de ter proferido tal enunciado involuntariamente, ou seja, sem perceber a incoerência.

5- Memória social: exige que o destinatário faça inferências e associações com o contexto social para ler o que está implícito no enunciado. Por exemplo, a tirinha abaixo:

Na tirinha acima, observa-se que o enunciado proferido pela vaca é responsável pelo fato do homem denominá-la de “vaca louca”. A presente tirinha foi elaborada na época (contexto) em que a Europa e a América do Norte estavam passando por uma epidemia nos bovinos chamada de vaca louca. A partir de tal fato, o cartunista nomeia a tirinha de O Canadá tá certo, fazendo referência a um dos países afetados.

A enunciadora, a vaca louca, no seu enunciado, dá opiniões não condizentes com a realidade do país (se desvia da realidade) << FMI ajuda o Brasil, FHC é patriota, político é honesto. A polícia funciona. A justiça é ágil...>>. Por isso, um homem, ao ouvir tal enunciação, diz: - <<Hii... é a vaca louca!>>. Dessa forma, a tirinha só pode ser entendida se o leitor tiver conhecimento de mundo a respeito da situação do Brasil e do problema da epidemia, ou seja, do contexto social do Brasil e do Canadá para justificar o título atribuído à tirinha e o próprio enunciado da vaca.

As classificações seguintes foram criadas a partir da observação do corpus selecionado:

6- Neologismo: criação de um vocabulário para designar uma nova realidade ou expressar opinião, sentimento etc. Por exemplo, pode-se verificar nas seguintes partes dos jornais: em charges para expressar a opinião com relação às viagens do presidente Lula “LULATUR” e em manchetes: na época de eleição os candidatos contratam artistas e o tradicional comício se tornou “showmício” e uma das marcas de cachorro PIT BULL, cuja característica é a agressividade do animal, está sendo associada a pessoas com instinto violento “Pitfamília surra guarda” (O Dia 14/07/2004).

7- Referencial: ocorre no momento em que o enunciador troca o referente no seu discurso por outro, podendo haver até mesmo uma certa rivalidade - concorrência entre ambos.

Situação: O organizador de um grande evento agradece o patrocínio cordial da bebida a uma empresa de cerveja através da rádio “Eu gostaria de agradecer a Companhia Cervejaria Antártica pelas Brahminhas que ela enviou pra gente”.

No enquadre de uma entrevista na rádio, o organizador, ao se pronunciar para agradecer a gentileza da Companhia Antártica, ao invés de se referir a esta empresa, se refere a uma de suas concorrentes: Brahma. E compromete mais a sua face ao utilizar o diminutivo “brahminhas”. Neste contexto de agradecimento o valor expresso pela palavra no diminutivo é o de carinho para realçar a idéia de quanto estaria grato por tal gesto. Tratando-se assim de uma gafe por causa do emprego inesperado de uma palavra.

8- Associativa: no enunciado é estabelecida uma relação equivocada entre o elemento abordado e o sentido atribuído pelo destinatário.

Observe a tirinha abaixo:

O enunciador, o aluno, ao ser repreendido pela professora por causa da cola, traz a cena a figura dos políticos. O aluno enfoca a conduta deles e a conseqüência de tais atos << não acontece nada>>. Assim, a partir do desvio, o aluno traz a cena concomitantemente o atual papel da escola e do professor.

9- Polissêmica: quando um mesmo item lexical é utilizado num enunciado com vários sentidos. Por exemplo, na publicidade do tênis Timberland.

Lama escorrega. Pedra escorrega. Melhor não escorregar na escolha do tênis”.

No enunciado acima, verifica-se que o verbo escorregar foi utilizado inicialmente (nas duas frases nominais) com palavras do seu campo semântico (lama - pedra), já em seguida (na terceira frase) associa a palavra com a escolha de tênis, deixando assim o valor de algo escorregadio para o valor de erro “Melhor não escorregar na escolha do tênis”.

Conclusão

Portanto, ao longo da interação, observa-se que, às vezes, o enunciado daquele que toma a palavra pode levar tanto o interlocutor a detectar algum problema como atribuir outro sentido. Examinou-se assim pelos exemplos selecionados que ora o desvio é inconsciente como no caso da gafe, ora é consciente como no caso das charges e das tirinhas.

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