O TEXTO E A FILMADORA
MAQUINAÇÕES MIMETRICAS DE BIOY CASARES
(A INVENÇÃO DE MOREL)
E DE ALAIN RESNAIS
(O ANO PASSADO EM MARIENBAD)

Ulysses Maciel (UERJ)

O propósito dessa comunicação é analisar os recursos empregados por Bioy Casares, na novela A invenção de Morel, capazes de produzir a ilusão de humanidade na personagem Faustine, que é tão-somente imagem. Serão utilizadas, como instrumental teórico, as idéias de G. E. Lessing (1729-1781) sobre as relações entre texto e imagem e de Roland Barthes sobre as margens do texto. A pertinência desse instrumental teórico para a análise de obras narrativas modernas será comprovado pelo estudo da tradução dos signos verbais dessa obra literária para os signos icônicos do filme O ano passado em Marienbad, dirigido por Alain Resnais e roteirizado por Alain Robbe-Grillet. Conclui-se daí que os significados produzidos pela linguagem literária são admitidos em obras icônico-narrativas, se forem objeto de um processo de tradução não-literal, que deverá levar em conta os sentidos do texto.

No filme de Resnais os dois principais personagens masculinos encenam um jogo com regras simples. Podem ser usados quaisquer objetos como peças. Somente têm de ser dezesseis, dispostos em quatro linhas, com sete, cinco, três e uma peça. A regra: pode-se retirar qualquer quantidade de peças, desde que seja da mesma linha. O jogador que retirar a última, perde. Não há blefe, como no pôquer, não há acaso, como no dominó. A ação de um jogador abre para o outro um número de jogadas possíveis, mas só a decisão correta leva à vitória.

O personagem que, neste texto, será chamado de o jogador sempre vence, o que descaracterizaria o jogo, que deve sempre admitir a possibilidade da vitória de um ou de outro oponente. A essa objeção, expressa num dos diálogos do filme, o jogador responde que pode perder, mas sempre ganha.

A experiência desse jogo, sempre vencido pelo mesmo jogador, assemelha-se àquela das imagens projetadas pela máquina de Morel, no conto de Casares, que aparecem para o fugitivo repetidamente, como um déjà-vue. Essas são experiências inócuas, que representam algo que já passou e que retorna sempre da mesma forma, um eterno retorno a-histórico. Significativamente, na peça teatral encenada no início do filme, uma personagem feminina se diz presa a um passado de mármore, “como este jardim, entalhado em pedra” e de pessoas mortas há muito tempo que guardam a rede de corredores.

O jogo d’O ano passado e as imagens da máquina de Morel, representam a margem sensata do texto, segundo Barthes:

[a redistribuição da linguagem] se faz sempre por corte. Duas margens são traçadas: uma margem sensata, conforme, plagiária (trata-se de copiar a língua em seu estado canônico [...]), e uma outra margem, móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar do seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem. [...] O prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza.(BARTHES, 2002: 11)

Transpor essa margem será a recompensa do leitor da novela e do espectador do filme que entrar no jogo da imaginação, proposto pelos autores nas dobras dos textos.

Casares, na sua novela, faz o leitor duvidar do que realmente se apresenta aos seus olhos, através da visão do narrador, um fugitivo da justiça, habitante de uma ilha perdida. Faustine, a personagem feminina, é real durante um certo tempo da narrativa, ou seja, enquanto o fugitivo, que vê as cenas e informa o leitor, crê que ela seja real, pois ainda não experienciou as demais propriedades físicas dela. Mas isso que está diante dos olhos pode não ser real, anuncia Casares. As propriedades da mulher não correspondem a uma presença física.

Casares se apropria das imagens projetadas pela máquina de Morel como se as tivesse presenciado, atribuindo a elas uma realidade confirmada pelas dúvidas do narrador, logicamente respondidas, e pelas notas de rodapé. Faustine e Morel, enquanto meras repetições realistas de uma vida passada, estão limitados pela natureza. A experiência que se pode obter da observação das meras imagens é também inócua, inexpressiva. É a incoerência do comportamento de Faustine - olhos não para ver, ouvidos não para ouvir - que liberta as palavras do seu sentido literal e permite que aflore a imaginação, como apontado por Lessing:

O poeta não quer ser apenas compreendido, as suas representações não devem ser meramente claras e distintas; [...] Antes, ele quer tornar tão vivazes as idéias que ele desperta em nós, de modo que, na velocidade, nós acreditemos sentir as impressões sensíveis dos seus objetos e deixemos de ter consciência, nesse momento de ilusão, do meio que ele utilizou para isso, ou seja, das suas palavras.(LESSING, 1998: 203)

A experiência vazia de significados produzida pela eterna repetição das imagens projetadas pela máquina de Morel é interrompida pelo fugitivo, na parte final da novela, quando este, para se juntar a Faustine, aciona “os receptores de atividade simultânea” da máquina de Morel, a fim de sobrepor o registro de sua imagem às cenas anteriormente registradas. E ele faz isso, mesmo sabendo que contrairia a mesma moléstia causadora da morte de Faustine, de Morel e dos outros, e que é descrita no início da novela como a que “mata de fora para dentro”. Essa doença também causaria, processo que o leitor acompanha nas últimas páginas da novela, a deterioração dos sentidos do fugitivo, o que seria uma condição para que ele ficasse ao lado de Faustine e não apenas a percebesse.

Entretanto, para o fugitivo, simplesmente sobrepor sua imagem ao registro feito naquela semana distante não o inclui na consciência de Faustine, ou seja, na memória dela, como mostra o pedido citado no final do conto e registrado no diário do narrador:

Ao homem que, baseando-se neste informe, invente uma máquina capaz de reunir as presenças desagregadas, farei uma súplica. Encontre Faustine e eu, faça-me entrar no céu da consciência de Faustine. Será um ato piedoso.(Casares, s/d: 116)

Quem se aproximar, portanto, de O ano passado em marienbad após ter lido o conto A invenção de Morel, perceberá semelhanças entre eles. Se procurar, entretanto, uma correspondência literal, uma identidade entre personagens, ou entre épocas, ou entre cenários, certamente se perderá num emaranhado investigatório que ficará na ordem dos sentidos, deixando escapar, então, as interlocuções mais enriquecedoras nesse encontro entre obras de diferentes gêneros, ou seja, as suas referências simbólicas.

O ponto de encontro entre a novela de Casares e o filme de Resnais pode ser percebido através do conceito de plano-seqüência. Pier Paolo Pasolini, em seu ensaio Observações sobre o plano-seqüência, compara a vida de um indivíduo a um enorme plano-seqüência que seria um registro da vida como ela é, no tempo presente, ou seja: “o limite realista máximo de qualquer técnica audiovisual”. (Pasolini, 1985: 71)

A semana registrada pela máquina de Morel, portanto, seria um fragmento de vida, repetindo-se realista e infinitamente. Os fatos filmados em plano-seqüência, afirma Pasolini, só irão adquirir significado, quando se selecionarem os momentos mais significativos, como se faz na montagem cinematográfica. Nesse sentido, a montagem equivale à morte, em relação à vida presente representada pelo plano-seqüência. É pela montagem que se atribui significados àquelas imagens, da mesma forma que a morte atribui significados à história de uma pessoa. Significativamente, o fugitivo, ao se deixar registrar pela máquina de Morel, acionando “os receptores de atividade simultânea” determina a própria morte, da mesma forma que Faustine, Morel e os outros também haviam morrido.

Minha alma ainda não se tornou imagem; do contrário, eu haveria morrido, haveria deixado de ver (talvez) Faustine, para estar com ela em uma visão que ninguém recolherá.(Casares, [s/d]: 117)

Voltando a Pasolini, a montagem, contrapondo-se ao plano-seqüência, abole o presente, esvazia-o, mostra uma multiplicação de “presentes”, postulando a cada um deles a relatividade dos outros, o seu imprevisto, a sua imprecisão, a sua ambigüidade. Imprevisto, imprecisão e ambigüidade contidos no convite à fuga que o homem de O ano passado, faz à mulher, repetidamente, ano após ano. Convite expresso no diálogo da peça de teatro, para que ela se liberte daquela ligação a um plano onde o cenário é um jardim esculpido em pedra.

Como no jogo de O ano passado, o espectador poderá, a cada lance dos autores, optar pelo seu próximo lance, numa rica experiência que, no final da narrativa de Robbe-Grillet e Resnais, apontará o atendimento da súplica feita pelo narrador no final do conto. Roteirista e diretor, por fim, inventaram a máquina capaz de reunir as duas almas: aquela mulher e aquele homem. Não me refiro à máquina filmadora, mas às maquinações narrativas que transformam os planos-seqüência da máquina de Morel na máquina cinematográfica d’O ano passado.

Referências bibliográficas

Barthes, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002.

Casares, A. B. La invención de Morel. Disponível em: <http://www.eletras.iespana.es>.

LESSING, G.E. Laocoonte ou as fronteiras da Pintura e da Poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998.

Pasolini, P.P. Observações sobre o plano-seqüência. In: Geada, E. (org.) Estéticas do cinema. Lisboa: Dom Quixote, 1985.

Referência fílmica

L'année dernière à Marienbad. Direção: Alain Resnais. Roteiro: Alain Robbe-Grillet. França-Itália, 1961.