QUEBRANDO CONVENÇÕES
RECURSOS GRAFOLÓGICOS
COMO ESTRATÉGIAS NARRATIVAS
NA
FICÇÃO DE JAMES KELMAN E IRVINE WELSH

Ana Lucia de Souza Henriques (UERJ e UNESA)

 

O objetivo deste ensaio é discutir o emprego de recursos grafológicos como estratégias narrativas não-convencionais utilizadas pelos escoceses James Kelman e Irvine Welsh, procurando ressaltar os diferentes papéis que desempenham na estruturação dos textos em questão. A inserção de sinais tipográficos variados, além de desenhos, mapas, diagramas, dentre outros, é merecedora de nossa atenção, pois, mais do que apenas ilustrar, tais recursos são empregados, em muitas das vezes, para destacar vozes de diferentes narradores, em suas múltiplas perspectivas.

Boa parte da ficção escocesa das últimas três décadasperíodo marcado por intenso debate em torno da recuperação do parlamento escocês – apresenta, sob diferentes perspectivas, questões voltadas para uma problemática relação com a idéia de identidade nacional, língua nacional, tradição literária e crítica social.

Kelman e Welsh fazem parte de um grupo de escritores contemporâneos cujos textos são narrados em uma linguagem coloquial repleta de gírias e de palavras em escocês, representativa da maneira como se expressa a classe trabalhadora na Escócia. Isso não significa a existência de algum tipo de padronização comum às narrativas desses escritores quanto ao uso do vernáculo ou de gírias, pois cada um o faz à sua maneira. Essa inserção do vernáculo acontece em seus romances como a forma natural de expressão de seus personagens, sem que haja a preocupação em explicar quaisquer termos com vistas a facilitar a tarefa de leitores não-escoceses. A inclusão de explicações seria um trabalho de execução bem pouco viável, levando-se em consideração a grande ocorrência do uso do escocês e do inglês transcrito de acordo com a pronúncia escocesa. Seria necessária, em alguns casos, praticamente a reescritura de quase toda a obra.

Ao tratar do tema do uso do vernáculo e do inglês na Escócia, (cf. Henriques, 2001, 65-75) assinalei a opinião de David Crystal, para quem o escocês ainda não foi capaz de substituir o inglês padrão como a língua do poder e do prestígio, estando o uso do vernáculo restrito a determinadas publicações especializadas, a alguns programas de rádio e televisão, a desenhos animados e humor em quadrinhos. Contudo, Crystal (1995, 328) reconhece que a publicação de obras de maior fôlego, como a tradução do Novo Testamento para a língua escocesa em 1983, dá a essa questão contornos complexos e obscuros, chegando a afirmar que a quantidade de estudos em torno de ser o escocês uma língua ou um dialeto lhe atribui, por si , um status especial, pelo simples fato de tal discussão não se travar quando o objeto de estudo são as outras variedades regionais do inglês na Grã-Bretanha.

Esses dois escritores, cada uma a sua maneira, têm incluído em sua expressão, além da questão lingüística, a utilização de sinais gráficos variados que assumem papéis relevantes no desenrolar de suas narrativas. Suas obras focalizam principalmente personagens oriundos de classes sociais menos favorecidas, traçando um perfil contundente da situação socioeconômica em que se encontra a classe trabalhadora numa Escócia que vive os primeiros anos posteriores ao retorno parcial de sua autonomia política, após a recuperação de seu parlamento através de um plebiscito no ano de 1997.

Nascido em 1946 em uma comunidade pobre da cidade de Glasgow, o ex-motorista de ônibus James Kelman conhece a fundo os hábitos dessas pessoas humildes cuja diversão quase sempre se limita a freqüentar bares, ir a casas de apostas e salões de sinuca e jogar futebol ou torcer pelo time de sua preferência. Estar consciente de ser parte integrante desse grupo, segundo lembra, não é motivo de orgulho nem de vergonha, mas apenas uma constatação do papel que desempenha nessa fatia menos privilegiada da sociedade escocesa.

Ao dar voz em suas obras a personagens oriundos de seu próprio meio social, procurando reproduzir aquele modo de pensar e de agir, o escritor parece querer desfazer a lacunamuito existente, pois os trabalhadores que retrata não se comportam com o heroísmo daqueles oriundos da mesma classe social que figuram em obras de ficção publicadas por outros escritores na década de 70. Como diz Craig (1994, 99), seus personagens principais não acreditam mais nos moldes tradicionais de ascensão da classe trabalhadora, na solidariedade como um caminho para a solução de seus problemas, pois o que impera é a política do "cada-um-por-si".

Seus livros têm influenciado de forma marcante a natureza da escrita ficcional escocesa em três áreas cruciais, a representação da vida da classe trabalhadora, o tratamento da "voz" e a construção da narrativa (cf. Craig, 1994: 98). E acrescenta:

Central a essas três áreas, está a recusa de Kelman às definições do que conta comoliteratura” na sociedade contemporânea, sua rejeição desafiadora das categorias em que a escrita moderna é criada e consumida. Sua determinação está em fazer com que sua escrita esteja ligada diretamente às “vidas de pessoas comuns”.

James Kelman tem várias obras publicadas, dentre elas ensaios, coleções de contos, peças teatrais e cinco romances. Em 1994, recebeu o prêmio literário Booker com How Late It Was, How Late (Como era tarde, muito tarde). Essa premiação suscitou muita controvérsia, provocada fundamentalmente pela própria natureza da obra: um romance que enfoca a penúria em que vivem os habitantes da região pobre de Glasgow, a capital escocesa. A respeito da polêmica causada por esse prêmio, Kelman afirmou numa entrevista que a rejeição por parte de alguns foi motivada principalmente pelo estilo que ele adotara. Atribui o julgamento desfavorável a um certo elitismo literário, que envolve a obrigatoriedade de uma obediência a padrões previamente estabelecidos que não contemplam as necessidades dos que buscam retratar de maneira não estereotipada essa outra face pouco divulgada de uma parte da sociedade escocesa – até então relegada a um lugar de menor destaque nas obras literárias.

Dos dois escritores aqui  focalizados, Kelman é o que menos recorre à utilização de sinais tipográficos pouco convencionais em suas obras. Contudo, a inserção de tais recursos no romance Translated Accounts (Relatos traduzidos) serve como exemplo da presença de sinais intercalados ao corpo do texto funcionando como elementos fundamentais para o desenvolvimento do que se narra, como multiplicadores de significados.

Publicado em 2001, Relatos Traduzidos é composto por cinqüenta e quatro capítulos, ou melhor, relatos narrados – como informa o prefáciopor três ou mais indivíduos que se encontram em um território ou em um país ocupado, onde parece estar em vigor uma espécie de lei marcial (p. ix).

Em resenha publicada na revista Scottish Studies Review, de 2002, R. W. Maslen considera esse romance de Kelman  “o livro para sua épocapor ter vindo a lume no ano marcado pelo atentado de 11 de setembro. Maslen ressalta que os lugares a que a obra faz referência e a linguagem usada por Kelman apontam para o mundo em que vivemos, ou seja, aquele em querelações traduzidas” tendem a gerar todo o tipo problemas. Dentre os problemas, o crítico destaca as questões relativas à manipulação dos assuntos veiculados pela mídia. Essas traduções “trabalham” informações objetivando produzir narrativas propagandistas que apresentam distorções ou até mesmo o apagamento da verdade. Maslen ressalta além disso a frustração daqueles que tentam, em vão, melhor compreender o emaranhado de  informações que a eles chega em uma linguagem marcada pela falta de clareza e pela predominância do uso de jargões e clichês de ordem variada. A esse respeito, comenta o crítico sobre Relações traduzidas:

Frustração – a frustração de tentar perfurar o véu propagandista na busca do entendimento, a frustração de descobrir que a linguagem vem sendo manipulada pela maquinaria da opressão, que retira dela a paixão que alimenta resistências ou insurreições, reduzindo essa linguagem a uma série de clichês que perderam seu impacto político e que não pertence a quem a veicula. (Maslen, 2004: 86)

A leitura do romance faz com que experimentemos esse tipo de frustração, pois antes de o leitor chegar aos relatos – o prefácio o advertira para o que iria encontrar: as narraçõesem primeira mão” de incidentes e eventos, reportagens, fragmentos de cartas, monólogos interiores, recortes de entrevistas, dentre outras; todas traduzidas e/ou transcritas para a língua inglesa, nem sempre por  falantes nativos de inglês, tendo sido, por vezes, submetidas a modificações quando revistas por ocupantes de cargos de alto escalão. Além disso, também é recomendado ao leitor que leve em conta que cada um dos textos ali presentes foi transmitido e recebido através de sistemas de computadores, o pode fazer com que algumas dessas narrativas viessem a sofrer ainda mais modificações, causadas  pela interferência de um possível  mau funcionamento das máquinas, sem que se possa saber se tais defeitos foram causados de forma proposital.

Esse é o caso do texto de número cinco, que trata de assassinatos cometidos por policiais, num lugar não-identificado que está sob o toque de recolher. Muitas são as lacunas não-preenchidas pela leitura, pois diferentes sinais grafológicos, provavelmente por interferências na transmissão, aparecem inseridos ao longo de partes da narrativa.. Além disso, podemos observar a supressão de espaços entre palavras ou a mera repetição de frases inteiras, com ou sem  pequenas modificações.

Caixa de texto:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A figura 1 reproduz uma das páginas em que se pode ver como tais intervenções apagam pormenores relevantes da história narrada, ao mesmo tempo em que apontam para possíveis novas leituras.

Pelo que podemos observar, não temos aqui apenas interferências gráficas que marcam incertezas nessa narrativa, motivando o sentimento de frustração a que nos referimos anteriormente, mas também a freqüente utilização conjunção if (se), que pode aparecer introduzindo orações subordinadas que, quase sempre, vêm desacompanhadas de suas respectivas principais.

O narrador, dominado pela hesitação, deixa seus pensamentos incompletos ou parte de seus pensamentos se perdeu ao serem traduzidos? Mais importante do que buscar uma possível resposta para essa pergunta é reconhecer que James Kelman consegue traduzir de forma comovente angústias que caracterizam esse início de um novo milênio.

Enquanto o uso de recursos gráficos na obra de Kelman está restrito a apenas um de seus romances, as obras de Irvine Welsh mostram que essa tendência a incluir tais recursos em suas narrativas se revelara, ainda que forma tímida, em Trainspotting, de 1993.

Obras que viriam após Trainspotting, como a trilogia The Acid House, de 1994, o livro de contos Ecstasy, de 1996, ou o romance Filth, de 1998, mostram que o emprego desses recursos se torna mais freqüente e variado, assumindo diferentes funções.

Como dissemos, Trainspotting marca o início do emprego de tais recursos na medida em que apresenta palavras grafadas em caixa-alta para indicar que algum personagem está gritando ou apenas falando em voz alta; o itálico em partes do texto pode servir para marcar aquele trecho como um pensamento, o fluxo da consciência de algum personagem. Um bom exemplo desse uso é a inclusão de cinco narrativas curtas ao longo do romance, intituladas “Junk Dilemmas” (Dilemas da Heroína), através das quais o leitor é levado a conhecer o conturbado estado mental de Mark Renton  durante o período em que o rapaz está sob o efeito da droga. Nesse romance, os usos tanto da caixa-alta quanto do itálico servem para dar destaque a determinadas passagens da narrativa. O uso mais ousado de recursos gráficos fica por conta da reprodução de quatro cartões com mensagens natalinas.

Se Trainspotting não nos impressiona quanto ao uso de recursos grafológicos, o mesmo não se pode afirmar sobre o conto quetítulo ao livro The Acid House. No ensaioImagem e Comunicação na Narrativa de Irvine Welsh” (2002), discuto a função desempenhada pelos recursos grafológicos utilizados nessa obra. Trata-se de um texto com uma estrutura narrativa complexa, marcada por partes isoladas que, a princípio, parecem independentes, mas que se unem de forma interessante e inusitada, o que é possível através do uso desses recursos.

Contudo, devemos admitir que é em Filth (Escória) que o escritor dá o seu mais ousado passo, fazendo com que as vozes de dois de seus narradores sejam grafadas em negrito e sobrepostas em muitas das páginas do romance. Dessa forma, partes do texto do narrador principal, o policial Bruce Robertson, são literalmente apagadas por uma outra narrativa grafada através de trilhas tortuosas sobre o papel impresso. Esse segundo narrador é um verme, uma solitária que percorre o corpo de Bruce, um sargento corrupto da polícia escocesa. A voz desse segundo narrador, a princípio insignificante, passa, aos poucos, a preencher espaços maiores nas páginas do romance.

A figura 2 [que está na próxima página] ilustra o apagamento de uma narrativa pela outra.

Dessa maneira, as duas narrativas seguem de forma paralela, cada uma apresentando ao leitor aspectos diferentes sobre o personagem principal. Através de seu linguajar chulo, Bruce procura construir para si a imagem de um homem forte, que procura disfarçar no convívio com seus colegas de trabalho suas tendências homofóbicas, machistas, racistas, além de xenofóbicas. Cabe ao verme, em uma linguagem culta e bem articulada, revelar a infância do personagem, dando ênfase aos traumas por ele sofridos.

Uma certa interação entre os dois discursos pode ser observada nos últimos capítulos do romance, sugerindo um diálogo inconsciente entre Bruce e o verme. Logo após o início desse processo, marcado por palavras em comum utilizadas por ambos os narradores quase que ao mesmo tempo, o policial utiliza a primeira pessoa do singular tanto quanto a do plural para referir-se a si próprio. Contudo, o uso do plural provavelmente não deve ser tomado como uma sugestão de fusão, mesmo inconsciente, entre esses dois narradores. Poderíamos talvez afirmar que as memórias marcantes de seu passado, as mesmas relembradas pelo verme, acabam por causar no policial forte sentimento de nostalgia ao pensar em sua família, seus antigos relacionamentos.

Caixa de texto:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O “diálogoentre Bruce e o verme está aqui ilustrado pelo recorte do texto visto na figura 3.

Filth ainda apresenta outros recursos grafológicos que  contribuem para a construção de significado. Destaco, por exemplo,  a reprodução, em forma de colagem, de cartas, memorandos, trechos de letras de música, listagens de palavras cruzadas, além de grafites  feitos por Bruce nas portas do banheiro da delegacia policial.

Em seus dois últimos romances, Glue (2001) e Porno (2002), Welsh volta a utilizar recursos gráficos. No primeiro deles de forma moderada, pois o segundo limita-se a algumas frases grafadas em itálico ou em caixa-alta.

Caixa de texto:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao construir suas obras usando os recursos grafológicos aqui mencionados, James Kelmam e Irvine Welsh nos convidam a interpretar não apenas palavras, mas também a maneira pela qual são grafadas, o modo como estão dispostas na página impressa e até seus possíveis apagamentos.

Dessa forma, somos levados a “ler” as imagens que participam das narrativas aqui apresentadas, texto e imagem devem ser tomados como uma coisa . Cabe ao leitor experimentar com Kelmam e Welsh essa construção.

 

Referências Bibliográficas

MASLEN, R.W. “Translated accounts: a novel by James Kelman”. In: CRAWFORD, Robert & PITTOCK, Murray (eds.). Scottish Studies Review. Glasgow: Association for Scottish Literary Studies, 2002, p. 86-87.

WELSH, Irvine. Ectasy. New York & London: W. W. Norton, 1996.

––––––. Filth. New York & London: W.W. Norton, 1998.

––––––. The Acid House. New York & London: W . W . Norton, 1994.

––––––. Trainspotting. New York & London: W .W .Norton, 1993.

CRAIG, Cairns. The Modern Scottish Novel: Narrative and the National Imagination. Edinburgh: Edinburgh Univ. Press, 1999.

––––––. “Resisting Arrest: Jems Kelman”. In: WALLACE, Gavin & STEVENSON, Randall, eds. The Scottish Novel Since the Seventies. Edinburgh: Edinburgh Univ. Press, 1994, p. 98-114.

KELMAN, James. “And the Judges Said…”: essays. London: Vintage, 2002.

––––––. How Late It Was, How Late. London: Secker & Warburg, 1991.

MORGAN, Edwin. Tradition and Experiment in the Glasgow Novel. In: WALLACE, Gavin & STEVENSON, Randall (eds.). The Scottish Novel Since the Seventies. Edinburgh: Edinburgh Univ. Press, 1994, p. 85-98.

WALLACE, Gavin & STEVENSON, Randall (eds.). The Scottish Novel Since the Seventies. Edinburgh: Edinburgh Univ. Press, 1994.