A MIMESE NO SERMÃO DA MONTANHA

Sabrina Rosa de Souza Dornelas

O presente trabalho não tem características teológicas, não discutirei a autenticidade da Bíblia enquanto palavra de Deus, e sim pretendo demonstrar o valor estético e literário. A linguagem da Bíblia enquanto obra de arte literária.

É de Aristóteles, filósofo grego, que vem o conceito de mimese, isto é, imitação da realidade, base do desenvolvimento do trabalho, que tem como tema: A mimese no Sermão da Montanha. Na versão de João Ferreira de Almeida , contextualizarei, através de um breve histórico, o Evangelho Segundo Mateus.

Lemos em Marcos: “quando Jesus ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria, e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu.” ( MARCOS 2:14 BÍBLIA SAGRADA, 1999). Mateus era um coletor de impostos (publicano) judeu, trabalhando para o governo romano. Segundo o próprio Mateus, lemos “Partindo Jesus dali, viu um homem, chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu.” ( MATEUS 9:9 BÍBLIA SAGRADA, 1999). Por colaborar com os romanos que eram odiados pelos judeus como dominadores estrangeiros, Mateus (como todos os publicanos) era desprezado por seus compatriotas. Apesar disso, Mateus reagiu positivamente à chamada singela que Cristo lhe fizera para segui-lO.

O livro de Mateus foi escrito para judeus, visando a responder às suas indagações sobre Jesus de Nazaré, que alegava ser o Messias de Israel. Seria Ele de fato o Messias predito no Antigo Testamento? Se era, por que não estabeleceu o reino prometido? Esse reino será estabelecido algum dia? Qual o propósito de Deus para este ínterim? Assim, neste Evangelho, Jesus é freqüentemente chamado de Filho de Davi e é apresentado como Aquele que cumpre as profecias messiânicas do Antigo Testamento; o reino dos céus é o assunto central de boa parte de Seu ensino.

Os capítulos 5-7 de Mateus contêm o amplamente conhecido e amado Sermão da Montanha. É um dos cinco longos discursos de Cristo registrados em Mateus. O Sermão da Montanha não apresenta o caminho da salvação, mas o caminho da vida justa para os que fazem parte da família de Deus, constratando o novo caminho com o caminho "antigo” dos escribas e fariseus. Para os judeus do tempo de Cristo o Sermão foi uma explicação detalhada do que significaria a exortação “Arrependei-vos!” ( Mateus 3:2, “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” Mateus 4:17, “Daí por diante passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” ) Para todos nós é uma revelação detalhada da justiça de Deus, e seus princípios são aplicáveis hoje para os filhos de Deus.

A introdução do capítulo vem assim traduzida:

1 Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; 2 e ele passou a ensiná-los dizendo: 3 Bem-aventurados os humildes de espirito, porque deles é o reino dos céus. 4 Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. 5 Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. 6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos. 7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. 9 Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. 11 Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós. 12 Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós. (MATEUS 5:1-12, BÍBLIA SAGRADA, 1999)

 

As Bem-aventuranças (bem-aventurado significa feliz) descrevem a condição interior de um seguidor de Cristo e lhe prometem bênçãos no futuro.

Apoiando-nos no discurso de Mateus, indagamos a partir de SILVIANO SANTIAGO (1989:38): “só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu narro e conheço por ter observado?” Será o que está narrado por Mateus autêntico? Sabemos que Mateus, como discípulo de Jesus, estava presente, no Monte, nos ensinamentos de Jesus.

Então, a partir da presença de Mateus no Sermão da Montanha podemos nos deter na seguinte afirmativa:

O narrador pós-moderno é o que transmite uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por não ter respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o “real” e o “autêntico” são construções de linguagem. (SANTIAGO, 1989: 40)

 

Nas escrituras: “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens.” (MATEUS 5:13, BÍBLIA SAGRADA)

Como o real e o autêntico são construções de linguagem, podemos encontrar figuras de linguagem que servem para dar maior brilho e ênfase à comunicação. Segundo Aristóteles, “a metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia” ( p. 274). Mateus usa destes artifícios para exemplificar, clarear os seus ensinamentos. Ele usa de uma linguagem simples para que a comunicação seja eficaz.

Jesus usa de metáforas para ilustrar os seus ensinamentos com o intuito de esclarecer a sua visão. Sabemos que nenhum indivíduo, seria “sal da terra”. “Bom é o sal; mas, se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor? Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros” (MARCOS 9:50 BÍBLIA SAGRADA). Tende sal em vós mesmos: os seguidores de Cristo têm de ser permeados com o poder preservador do evangelho, que influencia o mundo para o bem.

Em Mateus 5:14 “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte;” Podemos ver novamente a presença de metáforas no discurso de Mateus . Ele utiliza dessa figura de linguagem para levar ao leitor a perceber que o efeito de ser a “luz do mundo” é real. “De novo lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas, pelo contrário terá a luz da vida” (JOÃO 8:12, BÍBLIA SAGRADA). Eu sou a luz do mundo. Aqui Jesus faz uma analogia entre o sol, a luz física do mundo, e Ele mesmo, a luz espiritual do mundo.

ARISTÓTELES afirma:

“É importante saber empregar a propósito cada uma das expressões por nós assinaladas, nomes duplos e glosas; maior todavia é a importância do estilo metafórico. Isto só, e que não é possível tomar de outrem, constitui a característica dum rico engenho, pois descobrir metáforas apropriadas equivale a ser capaz de perceber as relações. (p. 277)

No discurso de Mateus, a MIMESIS é justamente isso, CRIAR A VEROSSIMILHANÇA de maneira tal que quem lê o relato acredita nele, embora não estando presente e embora não esteja sendo narrado pela pessoa que de fato vivenciou aquilo tudo, o próprio Jesus, pois ele não escreveu uma só linha. Então aquilo tudo é o processo mimético criado por Mateus para que os outros acreditem que são as supostas palavras de Jesus ditas por Mateus e não por Jesus. Talvez pudéssemos aplicar aqui o que Aristóteles diz a propósito da poesia: “ deve-se preferir o impossível crível ao possível incrível” (p. 274)

Em Mateus 5:38 “Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente.” Neste versículo está presente a lei da retaliação que era o meio mosaico de terminar com disputas e rixas, mas Cristo mostrou um outro meio de fazê-lo. “Fratura por fratura, olho por olho, dente por dente: como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará.” (LEVÍTICO 24:20). A lei da retaliação permitia uma justiça exata, não a vingança, e dizia respeito à justiça pública, não à vingança particular.

No capítulo 7 de Mateus, versículo 12, lemos: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a lei e os profetas.” Esta é a bem conhecida Regra Áurea. Foi também ensinada pelos grandes rabinos judeus.

Nos registros de Mateus 7:6 encontramos: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem.” Com estas palavras, Jesus esperava que os discípulos fizessem distinções morais e não permitissem que coisas espiritualmente preciosas fossem tratadas levianamente pelos que rejeitavam o convite de Cristo.

Nos relatos bíblicos citados, o discurso não tem a função de manifestar ou exteriorizar pensamentos. É mimética a reação do indivíduo que não se deixa enquadrar em esquemas previsíveis e que assim ultrapassa o controle tanto do próprio sujeito quanto de qualquer instância de poder a que ele esteja subjugado.

Para Aristóteles, a palavra mimese está ligada à techné (arte) e à physis(natureza). Ele afirma na Física que a arte imita a natureza. Sua mimese alcança uma dimensão ontológica, enaltecendo o valor da arte pela autonomia do processo mimético diante de uma verdade preestabelecida.

A partir de Aristóteles verificamos:

Do mesmo modo que alguns fazem imitações seguindo um modelo com cores e atitudes, - uns com arte, outros levados pela rotina , outros enfim com a voz; assim também, nas artes, a imitação é produzida por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em conjunto. ( ARISTÓTELES - p. 239)

 

Com Aristóteles a arte passou a ter uma dimensão estética, capaz de fornecer possíveis interpretações do real. A partir daí, a mimese não torna o artista um mero plagiador da realidade, mas sim um criador que resgata o mundo nos mesmos moldes que ele produz, por intermédio do próprio mundo.

Com isso percebemos claramente que Mateus consegue este efeito mimético ao reproduzir as palavras de Jesus, de uma maneira que o conhecer é explicado através da relação de semelhança, pois não é possível apreender uma semelhança sem perceber o assemelhado. Na mesma proporção em que a semelhança é apreendida, o assemelhado é entendido.

A mimese no Sermão da Montanha acontece através das ilustrações, das figuras de linguagem, figuras de estilo pelas quais Mateus sabiamente reproduz o discurso de Jesus, criando estas figuras para dar verossimilhança ao texto. Cabe questionar por que a questão das parábolas, ou ilustrações ou figuras são tão marcantes no discurso de Mateus, uma vez que essas parábolas ou ilustrações ou figuras não são tão marcantes nos outros três evangelhos. “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas” (MATEUS 7:28,29 BÍBLIA SAGRADA).

Mimese se explica como uma tendência humana natural tanto de produzir quanto contemplar. O prazer que ela produz envolve uma aprendizagem e um reconhecimento. Por tratar-se de algo não real, o contemplador aprende com a situação mimetizada, que ele apenas assistiu e não viveu. Para que haja um reconhecimento, a arte necessita da verossimilhança, um elemento com que o observador possa relacionar sua própria vida.

A verossimilhança situa a mimese na esfera do possível, embora não verdadeiro. Isto permite intermináveis possibilidades de desdobramentos inovadores, tornando a mimese um processo sem fim.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALMEIDA, João Ferreira. A bíblia Sagrada - Traduzida em português - revista e atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. O Novo Testamento, Evangelho Segundo Mateus. p. 6-10.

ARISTÓTELES, Arte Retórica e Arte Poética. Coleção Universidades de Bolso. Ediouro.

CAMPEDELLI, Samira Youssef; SOUZA Jesus Barbosa. Literatura, Produção de Textos & Gramática. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da Letra. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. In: O narrador Pós-Moderno. p.38-40.