GALICISMOS EM MÁRIO BARRETO
UMA QUESTÃO DE POLÍTICA DO IDIOMA

Helênio Fonseca de Oliveira (UERJ)

Analisar-se-á neste artigo, sob a ótica da política da língua, o tratamento dado por Mário Barreto à questão dos galicismos. A título de exemplificação, selecionamos algumas palavras e expressões consideradas galicismos, colhidas na segunda edição do De gramática e de linguagem, de 1955 (a primeira data de 1922), comparando-as com as formas propostas pelo autor para substituí-las:

EMPRÉSTIMO FRANCÊS FORMA QUE DEVE SUBSTITUÍ-LO SEGUNDO MB PÁGINA
“a olho nu” (fr. “à l’oeil nu”) “a olhos desarmados” ou “com a vista desarmada” 107-109
“abat-jour” (“abajur”) “quebra-luz” ou “guarda-luz” 146
“revanche” ou “revancha” “desforra” 143
“conduta” (do fr. conduite) “procedimento” 144-145
“a mulher em questão”, “o problema em questão” etc. “a mulher” (“o problema”) “de que se trata”, “de que se fala” etc. 147
“crucifixo em marfim” “crucifixo de marfim” 142

Algumas dessas correções pareceriam hoje ridículas. Nossa proposta, no entanto, é tentar avaliar a atitude que as motivou dentro da “lógica” da época em que foram propostas. É etnocêntrico julgar de maneira implacável o etnocentrismo de outras épocas.

Passemos, então, a comentá-las, agrupando-as em três categorias:

1.a) palavras e expressões em que se fixou a forma considerada como galicismo, em detrimento da alternativa purista - a olho nu e abajur;

2.a) casos de especialização de sentidos (em que as duas formas se mantêm, com valores semânticos diferentes) - revanche / desforra e conduta / procedimento;

3.a) casos em que se usam facultativamente as duas formas, com maior ou menor resistência de um discurso purista remanescente - de e em para indicar “matéria” de que um objeto é feito e em questão e seus equivalentes;

1.o caso - Fixação da forma afrancesada
em detrimento da alternativa purista

Um caso de fixação da forma afrancesada em detrimento da alternativa purista é o da expressão “a olho nu”, que já se fixou no português formal culto atual, sendo, pois, atualmente, de uso generalizado. Em 1922, porém, ano da primeira edição do De gramática e de linguagem, é possível que não existisse esse consenso.

Algo semelhante ocorre com “abajur”: essa forma é de uso generalizado, tendo-se já fixado em português, encontrando-se inclusive ortograficamente aportuguesada. Em 1922, contudo as opiniões divergiam. Segundo MB, havia, por um lado, os adeptos de “abat-jour” (com a grafia francesa), entre eles Eça de Queirós, e, por outro, os defensores de “quebra-luz” ou “guarda-luz”, entre os quais o filólogo se incluía.

É bom não esquecer que, historicamente, a evolução da variedade formal culta escrita do idioma é uma caminhada da não padronização para a padronização. O português atual é mais “maduro”, no sentido de mais padronizado, que o do tempo de Mário Barreto e este, mais que o da Idade Média, por exemplo. Essa característica da língua padrão denomina-se, em sociolingüística, codificação ou padronização.

2.o caso - Especialização de sentidos

MB propõe substituir “revancha” (do francês revanche) por “desforra”. Hoje temos as duas formas, com diferentes sentidos:

· revanche (que, aliás, não nos damos ao trabalho de aportuguesar, como fez MB, trocando o e final por a) e que se usa no sentido de “desforra numa disputa” - eleitoral, esportiva, enfim relativa a situações em que haja vencedores e perdedores (para esta forma existe inclusive o derivado revanchismo);

· desforra, sem especialização de sentido, que é uma espécie de hiperônimo em relação a revanche.

A forma “conduta”, também considerada galicismo por MB, deveria, segundo ele, ser substituída por “procedimento”. Seu argumento era que essa palavra é uma adaptação do vocábulo francês conduite. “Conduta”, no entanto, já se impôs, inquestionavelmente, coexistindo no uso com “procedimento”, embora não exatamente com o mesmo significado. O sentido de conduta associa-se freqüentemente a uma conotação moral, ao passo que o de procedimento está mais ligado a aspectos pragmáticos, tanto que se emprega com freqüência em textos técnicos.

3o caso - Uso facultativo das duas formas,
com maior ou menor resistência do ensino escolar

O emprego de “em questão”, por “de que se trata”, “de que se fala” etc. - “a mulher em questão”, “o problema em questão”, “o assunto em questão” etc. - era tido como galicismo pelos puristas, e MB neste ponto concordava com eles. No entanto, usamos hoje, indiferentemente, qualquer dessas formas. Ao que parece, não havia, em 1922, consenso sobre esse caso, ou talvez até fosse consensual que tal uso deva ser considerado errôneo. Trata-se, aqui também, de um problema de padronização.

O mesmo se aplica ao emprego da preposição em para significar a matéria de que um objeto é feito. No português padrão atual - entendido como variedade formal culta atual da língua - coexistem as duas formas: “anel todo em ouro” e “anel todo de ouro”, “crucifixo em marfim” ou “de marfim” e assim por diante. Atualmente, portanto, não tem relevância se a forma com em resulta ou não da influência francesa. Sabemos que resulta, mas isso não a torna menos adequada.

Cabe, todavia, a ressalva de que, atualmente, no ensino da língua, ainda há professores e livros didáticos, como Cegalla (1996:103), por exemplo, que condenam esse emprego da preposição em. Isso pode ser interpretado como um efeito retardado da atitude antigalicista, que ficou por inércia.

O próprio emprego de “em questão” descrito acima não está livre de encontrar quem o condene. Se um dia determinada palavra ou expressão foi considerada galicismo, está sempre aberta a possibilidade de, nos nossos dias, alguém continuar, por inércia, condenando-a.

Galicismo e ideologia

Nos final do século XVIII e início do XIX, grande número de empréstimos franceses invadiram o português, em conseqüência da liderança francesa sobre o mundo, não só no plano intelectual (haja vista a influência do enciclopedismo, da Revolução Francesa e do Romantismo sobre o pensamento ocidental), mas também nos aspectos político, econômico e - no período napoleônico - militar.

Ora, isso mexia com os brios nacionais portugueses. Os puristas queriam preservar o idioma da dominação francesa, já que não era possível ser independente em outros campos. Quanto ao antigalicismo brasileiro, embora sendo mais um eco do português, foi significativamente intenso.

Galicismo, portanto, é o empréstimo francês, nesse contexto ideológico, quando visto pejorativamente, tanto que MB, como lembra Manzolillo (2004:226), prefere, acertadamente, não considerar galicismos palavras de origem francesa como freira, chapéu, charrua e outras, introduzidas no português muito antes do contexto histórico em que surgiu a atitude antigalicista.

Política da língua

A conclusão a que se chega é que o combate à influência estrangeira na língua, seja ela francesa, inglesa ou qualquer outra, não é algo que se possa classificar como científico ou anticientífico, verdadeiro ou falso, válido ou não válido. É uma questão de política do idioma e pode ser acertado ou insensato, dependendo do objetivo a que se vise e do contexto histórico.

O purismo, portanto, não é necessariamente um erro de política idiomática. Pode haver um purismo saudável. O planejador lingüístico, em princípio, não tem de estimular nem de rejeitar o recurso do empréstimo, podendo uma ou outra posição ser preferível, dependendo das circunstâncias, em cada caso específico.

Na fase atual da história do português, por exemplo, parece-nos preferível abordagem a approach, como nos parece pouco aceitável o emprego de atualização no sentido de “realização”, “concretização”, por influência do inglês, e não é nenhum sentimento de nacionalismo lingüístico que motiva essa escolha, e sim o princípio da adequação - sobre este conceito, ver Oliveira (2000).

Mas isso pode mudar com o tempo. Nada impede que essas formas, com o passar dos anos, venham a impor-se pelo uso. Se tal acontecer, só nos restará ceder à pressão dos fatos. Mesmo uma forma combatida por um purismo saudável, por conseguinte, uma vez imposta pelo uso, deixa de ser inadequada e continuar a combatê-la passa a ser purismo condenável. Foi isso que os puristas tradicionais não perceberam. Em outras palavras, havia um “fundo de verdade” no “boato” do antigalicismo, mas os puristas esqueceram o princípio que motivou tal combate e caíram no purismo pelo purismo.

Quanto à validade ou não de se interferir nos rumos que a língua toma, diríamos - nadando contra a correnteza do preconceito antinormativista vigente em nossos dias na universidade - que a boa política do idioma é uma atitude moderadamente normativa. Nem o laissez-faire total (por falar em galicismos...), nem o excessivo policiamento da língua. Para uma discussão de como operacionalizar esse tipo de política lingüística, ver nosso artigo “Como e quando interferir no comportamento lingüístico do aluno” - Oliveira (2000).

Posição doutrinária de Mário Barreto

A posição de Mário Barreto sobre a questão dos galicismos é bastante razoável. Os casos em que ele rejeita formas hoje perfeitamente aceitáveis se explicam pelo fato de que o emprego dessas formas em sua época era polêmico, não havendo então o consenso que existe hoje. Mas o princípio geral que defende - como grande filólogo que era - assemelha-se bastante ao que dizem hoje lingüistas e sociolingüistas.

Na página 311 do De gramática e de linguagem, lê-se:

Em matéria de galicismos, meu senhor, todos pecamos, porque os mamamos com o leite. Ainda sabendo que são galicismos, eles escorrem-nos pela pena sem darmos fé. Nem os escritores mais puros logram livrar-se do extenso contágio francês que nos rodeia. Não podemos ser inimigos sistemáticos do galicismo. Alguns são necessários, e outros, menos úteis, estão já tão difundidos, que hão de sobreviver aos furibundos puristas que os condenam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Mário. De gramática e de linguagem. 2.ed. Rio de Janeiro: Simões, 1955. [1.ª ed.: 1922].

------. Através do dicionário e da gramática. 4.ed. Rio de Janeiro: Presença / INL / FCRB / MEC, 1986. [1.ª ed.: 1927 ; 3.ª ed.: 1954].

------. De gramática e de linguagem. 3.ed. Rio de Janeiro: Presença / INL / FCRB / MEC, 1982a. [1.ª ed.: 1922 ; 2.ª ed.: 1955].

------. Fatos da língua portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Presença / INL / FCRB / MEC, 1982b.

------. Novíssimos estudos da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Presença / INL / FCRB / MEC, 1980A.

------. Novos estudos da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Presença / INL / FCRB / MEC, 1980B.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

MANZOLILLO, Vito César de Oliveira. Vocabulário Técnico e Crítico do Empréstimo Lingüístico. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Tese de Doutorado.

OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. Como e quando interferir no comportamento lingüístico do aluno. In: JÚDICE, Norimar et alii, Org. Português em debate. Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 1999. p. 65-82. Há uma versão de 2000 deste artigo, disponível no site www.collconsultoria.com, mais completa que a de 1999.