“NA PANCADA DO GANZÁ”,
UM MICROCOSMO LEXICAL

Jorge Moutinho (UERJ)

O objetivo deste trabalho é abordar aspectos referentes ao que chamo aqui de microcosmo lexical do artista popular pernambucano Antonio Nóbrega, como parte da tese de doutorado em Língua Portuguesa que desenvolvo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) sob a orientação do professor doutor André Crim Valente. Especificamente, restrinjo-me neste texto a uma análise geral da letra de Na Pancada do Ganzá, composta por Nóbrega em parceria com o poeta Wilson Freire. Nesta música, que dá nome ao primeiro CD de Nóbrega e é um coco (gênero musical) nordestino típico, deparamo-nos com uma valiosa amostra do vocabulário com que ele - cantor, compositor e dançarino - trabalha em seus CDs e espetáculos musicais e teatrais, tendo sempre como base a cultura popular brasileira.

Para começar, deve-se esclarecer o porquê do nome Na Pancada do Ganzá. Este seria o título que Mário de Andrade daria a um livro no qual reuniria vasto material musical recolhido no Nordeste, conforme conta Oneyda Alvarenga nas “Explicações” que abrem a obra Os Cocos (ANDRADE, 1984). No material deixado por ele, constam diversas referências aos cantadores de coco (coquistas, coqueiros, tiradores-de-coco ou cantadores-de-ganzá, como se verá adiante), especialmente do Rio Grande do Norte, onde conheceu um artista popular que se tornou símbolo de suas pesquisas: Chico Antônio. Quanto ao ganzá, trata-se de um instrumento de percussão característico no acompanhamento desses cantadores. E no material de pesquisa deixado por Mário, incluíam-se desenhos de ganzás, possivelmente para ilustrar capas de livros que seriam dedicados ao populário musical potiguar.

Oneyda Alvarenga destaca o fascínio que a arte de Chico Antônio exerceu sobre Mário (ANDRADE, 1984). O próprio escritor paulista escreveu:

Que artista. A voz dele é quente e duma simpatia incomparável. A respiração é tão longa que mesmo depois da embolada inda Chico Antônio sustenta a nota final enquanto o coro entra no refrão. O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na “pancada do ganzá”, Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável (...) (ANDRADE, 1983: 277).

E acrescentou: “Porque Chico Antônio não é só a voz maravilhosa e a arte esplêndida de cantar: é um coqueiro muito original na gesticulação e no processo de tirar um coco” (ANDRADE, 1983: 278).

Mesmo com tanta reverência, Mário acabou não escrevendo o livro em que reuniria o material de suas pesquisas musicais no Nordeste e faria homenagem especial a Chico Antônio, obra que teria o título de Na Pancada do Ganzá. Admirador de ambos, Mário e Chico, outro Antonio (o Nóbrega) resolveu prestar uma homenagem a ambos ao escolher esse nome para seu primeiro trabalho solo em CD (e conseqüente espetáculo musical), resultado de suas pesquisas e recriações artísticas inspiradas na cultura popular nordestina. O próprio Nóbrega afirma no texto do encarte do CD (selo Brincante 001, 1996): “Disco e espetáculo são dedicados à memória de Mário de Andrade e Chico Antônio, cujo encontro revela e celebra um Brasil com o qual continuo sonhando.”

Após essa introdução que considerei necessária para situar o leitor no universo cultural em questão, passarei então a abordar especificamente aspectos da letra da música Na Pancada do Ganzá, por considerá-la bastante representativa das referências lexicais que Nóbrega vem utilizando ao longo de sua obra.

Para que o leitor conheça esse microcosmo lexical ao qual me refiro, eis a letra completa da música:

Na Pancada do Ganzá

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)

Eu estava em casa
mastigando o pensamento,
olhando pro firmamento,
que era noite de luar.
E de repente
uma estrela cadente,
piscando na minha frente,
parou pra me falar.

Ela me disse:
meu poeta camarada,
tome aqui quero lhe dar
um presente magistral.
E foi tirando
do seu peito colossal
um instrumento real
que ela chamava ganzá.

Meu ganzá, meu ganzarino,
meu ganzarino real,
gira o mundo, treme a terra, (Refrão)
e eu na pancada do ganzá.

Quando eu peguei
meu ganzá pra cantar coco
eu pensei que estava louco,
eu não pude acreditar,
pois na primeira
batida da minha mão
meu ganzá caiu no chão
e deitou logo a falar:

“Salve o coquista
que chegou de longe agora
você veio bem na hora
de poder me resgatar
da solidão
onde eu tenho vivido,
onde eu tenho me escondido
pra poder me revelar.”

(Refrão)

“Sou um instrumento
Pequeno, feio, chinfrim,
que trago dentro de mim
basculho pra ‘saculejar’,
garrafa velha,
qualquer coisa reciclada
dou beleza ritmada
quando vem me balançar.”

“Dou marcação
pro samba, pro foxtrote,
pro baião, forró e xote
e o que mais venham a inventar.
O que vier,
até som do outro mundo,
sou primeiro, sem segundo
na arte de ritmar.”

(Refrão)

E o ganzá
se colou na minha mão,
apertei ele bem forte
senti forte um balançar.
Fazia assim:
tum, tum, tum, tum, tum, tum, tum,
como no peito o baticum
que está pronto para amar.

E fui cantando,
fui dizendo ao ganzarino:
“Te conheço de menino
mas hoje fui te encontrar.”
Ele falou:
“Te conheço há bem mais tempo
mas não vai ter contratempo
que possa nos separar.”

(Refrão)

E disse mais:
“Meu cantor, meu menestrel,
eu conheço esses céus
antes de Cabral chegar;
pode ir me ver
onde eu fui desenhado:
pelo homem pré-datado
lá na Pedra do Ingá.”

Eu aprendi
sobre ele e ele de mim,
e tem sido sempre assim
e assim sempre será,
pois nessa vida
quem ensina sempre aprende
e a gente mais entende
o que foi e o que virá.

Fomos cantando
o país do futebol,
da Amazônia, praia e sol
do Babau, do Boi-Bumbá,
do carnaval, do São João, da cavalhada,
do repente, da congada,
da catira, do guará.

(Refrão)

Esse país,
feio, rico, pobre, lindo,
que eu não sei pra onde tá indo
mas eu sei que chega lá.
Fomos ouvir
a floresta tropical,
o sertão, o litoral,
ver a seca, a preamar.

Por isso eu digo,
meu amigo, camarada,
se não está fazendo nada
por que “cê” não vem pra cá?
Tire a gravata
do pescoço, solte o nó,
abra o peito e o gogó,
eu, você e meu ganzá.

(Refrão)

Por se tratar de uma letra um tanto extensa, a análise inicial aqui empreendida restringir-se-á a alguns de seus aspectos, os quais serão aprofundados na tese de doutorado citada no primeiro parágrafo. Os apontamentos que se seguem, portanto, privilegiam determinados elementos do léxico em questão, considerados palavras-chave para se conhecer melhor o microcosmo artístico e lingüístico de Antonio Nóbrega (nesse coco ressalte-se, mais uma vez, a presença de seu parceiro Wilson Freire).

De imediato, vejam-se algumas acepções dadas pelos dicionários Aurélio (FERREIRA, 1995) e Houaiss (HOUAISS & VILLAR, 2001) para o substantivo feminino “pancada”: choque, embate, batida; baque; bordoada; pulsação; pancada de água; salto ou cachoeira a pique; pessoa amalucada, aluada (substantivo de dois gêneros); que ou quem é estouvado, grosseiro (adjetivo e substantivo de dois gêneros); pancada do mar: zona da costa, da foz dum rio ou da entrada dum porto, onde o mar se agita em vagas (lusitanismo); praia, fralda do mar (regionalismo - Ceará); choque que um corpo dá e recebe no instante em que se encontra com outro; movimento pulsatório; pulsação, batimento.

Com base em tantas acepções, pode-se dizer que a “pancada” da letra não deixa de representar um somatório de todas elas, pensando-se de uma forma poética. Essa palavra data do século XIII, segundo HOUAISS & VILLAR (2001: 2115-lxxv), os quais citam Antônio Geraldo da Cunha referindo-se à sua etimologia:

Índice do Vocabulário do Português Medieval. Fundação Casa de Rui Barbosa. Vol. 1 [A] Rio de Janeiro, 1986. - Vol. 2 [B-C] 1988. - Vol. 3 [D] 1994 -- suplemento [A-C] (in Confluência Revista do Instituto de Língua Portuguesa e do Liceu Literário Português, nº 3, separata, Rio de Janeiro, 1992).

Completando o título da música, a próxima palavra a ser estudada é ganzá. Novamente, tome-se como referências FERREIRA (1985: 835) e HOUAISS & VILLAR (2001: 1426): espécie de chocalho de folha-de-flandres e formas variadas; variação: canzá; sinônimos: amelê (Bahia), pau-de-semente, xeque, xeque-xeque, xaque-xaque, xique-xique; no Amazonas, dança cujo nome provém desse instrumento; reco-reco. Alguns destes termos resultam de onomatopéias em função do som produzido pelo instrumento (xaque-xaque, xeque-xeque e xique-xique, por exemplo).

Antônio Geraldo da Cunha esclarece a etimologia deste substantivo masculino: vem do quimbundo nã’za ‘cabaça’, século XX (CUNHA, 1986: 378). HOUAISS & VILLAR (2001: 1426-lxxix) dão 1938 como o ano do registro histórico da palavra, tomando como fonte o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, editado naquele ano no Rio de Janeiro. Esses dois autores também registram ganza como variante de ganzá e, na etimologia, dão “origem obscura” para aquele termo.

Outra variante assinalada por HOUAISS & VILLAR (2001: 604) é “canzá”: “alt. de ganzá, este do quimb. nganza ‘cabaça’ ou do umbundo rikanza ‘nome de um chocalho’”, citando o Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo (Lisboa, 1899), como a fonte do primeiro registro do termo em nossa língua.

Já que se falou em quimbundo, de onde provém a palavra ganzá, registrem-se as informações de FERREIRA (1985: 1435) sobre o verbete: vem de ‘kimbundu’ (glossônimo) e é língua banta dos bundos ou ambundos (Angola, África); ambundo, andongo, bundo, dongo, luanda, quindongo, e (desus.) língua de Angola. O registro do termo em língua portuguesa, segundo o Aurélio, também data de 1899.

Cite-se agora o que escreveu Mário de Andrade sobre a palavra ganzá:

Instrumento de percussão de origem africana muito difundido no Brasil em duas formas de construção bastante distintas, também conhecidas como anzá, canzá, gazá e pau de semente. O termo é sem dúvida de origem africana (...) (ANDRADE, 1989: 239).

Segundo o pesquisador Jacques Raimundo, o termo representa o quimbundo nganza, ‘cabaça’, com “acutização” (apud ANDRADE, 1989: 239). Já com referência à forma variante “ganzarino”, que aparece na letra de Na Pancada do Ganzá, o Dicionário Musical Brasileiro (ANDRADE, 1989: 240) esclarece:

Mário de Andrade no diário do Turista Aprendiz (11 de janeiro de 1929) estuda a palavra. “O curioso é de ganzá terem os do povo feito ganzarino. Isso prova bem que nos verbos e palavras em ar ditas popularmente casá, amá, má, etc., subsiste virtualmente a noção do r final. Essa noção ou lhes fez confundir, imaginando que a palavra era ganzar e formarem por isso ganzarino; ou de fato inicialmente o ganzá se chamava ganzar.

Abrindo-se o leque para o sentido das letras encontradas no gênero musical coco, no Turista Aprendiz está registrado:

No geral as emboladas são mesmo assim. As mais das vezes não têm sentido (...). (...) Isto é: não é que não tenham sentido propriamente. Não se trata do verso “nonsense” feito pra dar habilidade rítmica. É um painel de sonho que passa, feito de frases estratificadas, curiosas como psicologia: “Bela mandou me chamar” ou “Porto de Minas Gerais” ou “Meu ganzá, meu ganzarino”, etc., etc., às quais se juntam verbalismos, frases tiradas do trabalho quotidiano, do amor; referências aos presentes e aos acontecimentos do dia; desejos, ânsias... Todos os coqueiros são assim (ANDRADE, 1983: 278).

Verbalismo, segundo HOUAISS & VILLAR (2001: 2844), significa:

1. ensino ou transmissão de conhecimentos e tradições realizado apenas oralmente, sem contribuição da escrita; 2. tendência literária caracterizada pela atribuição de importância maior às palavras e à eloqüência do que às idéias transmitidas; 3. uso abusivo de palavras; verborréia, falatório; 4. repetição de palavras sem atenção ao seu conteúdo; psitacismo.

E psitacismo, por sua vez, quer dizer:

1. Distúrbio da linguagem, que consiste na repetição mecânica de palavras ou de frases vazias de sentido para quem as repete; 2. Arte de alinhar frases ocas; verborragia; 3. Processo de aprendizagem apenas por memorização (FERREIRA, 1985: 1413).

Aqui está a chave, então, para a utilização de vários termos nas letras dos cocos que muitas vezes não fazem sentido ao observador, mas cuja razão de ser está na sonoridade da palavra, que se torna mais importante do que o seu próprio significado. Ressalte-se também o caráter afetivo encontrado nas letras, como escreveu o autor de Macunaíma: o ganzá torna-se o “ganzarino”...

Voltando ao dicionário já citado de Mário, ali está registrado o verbo “ganzear”, intransitivo: “Mover-se como o ganzá quando é tocado”. Ele cita um exemplo de Catulo da Paixão Cearense: “... a cobra a se ganziá. Pulando como biscaia” (ANDRADE, 1989: 240).

Sobre a palavra ganzá e suas variantes, deve-se lembrar ainda Câmara Cascudo, que registra também a forma “granzal”, remetendo ao autor Pereira da Costa:

Instrumento rústico, espécie de maracá grande, de folhas-de-flandres, tendo na extremidade do cabo uma peça arredondada contendo dentro certa porção de chumbo grosso de munição, e que agitado, produzindo um certo som ruidoso, marca os passos de certos bailados populares, nomeadamente o coco e o torrado” (CÂMARA CASCUDO, s/d: 423).

Apenas para ilustrar, “torrado”, neste caso, é uma “dança popular ‘lasciva’, espécie de samba, segundo o Aurélio (FERREIRA, 1985: 1692).

O mesmo Câmara Cascudo, no verbete ganzá, remete a “casaca”:

Cassaca, canzá, ganzá, canzaca, também conhecido, em certas localidades, pelo nome de reco-reco. Instrumento de música usado nas “bandas de congo” em quase todos os recantos do Estado do Espírito Santo (CÂMARA CASCUDO, s/d: 254).

Segundo o dicionário Houaiss, “casaca” também significa um instrumento semelhante ao reco-reco, dando como regionalismo do Espírito Santo (HOUAISS & VILLAR, 2001: 641).

No Dicionário do Nordeste, lançado em 2004, o autor Fred Navarro, confirmando informações dadas anteriormente, diz que ganzá vem “do quimbundo ‘nganza’ (cabaça). Espécie de maracá, um cilindro fechado com grãos dentro. Também é chamado pau-de-semente, segundo Luís da Câmara Cascudo” (NAVARRO, 2004: 180).

Dando prosseguimento ao estudo das palavras-chave que compõem o microcosmo lexical de Na Pancada do Ganzá, fale-se agora sobre o coco. “No Nordeste há o coco de ganzá, cantado pelo coqueiro, quase sempre meio improvisação, meio memoriado, no ritmo de um ou dois ganzás, balançados nas mãos”, ensina CÂMARA CASCUDO (s/d: 424). “Coqueiro”, aqui, ou coquista, como aparece na letra da música, nada mais é que o cantador de coco.

HOUAISS & VILLAR (2001) trazem dois verbetes referentes ao assunto que não constam de FERREIRA (1985): tirador-de-coco e cantador-de-ganzá (ambos regionalismos do Nordeste do Brasil), indicando a datação do século XX para esta última expressão. Desta forma, constata-se como o léxico vai se ampliando e pelo menos um dicionário já registra os termos que, a princípio, ficariam circunscritos a determinados segmentos da população brasileira - no caso, os praticantes e admiradores do coco.

Ressalte-se que a letra em questão inclui diálogos entre o coquista e o ganzá; o instrumento é personificado. O coquista dirige-se ora ao ouvinte, ora ao ganzá. A linguagem utilizada é sempre coloquial, com grande aproveitamento de termos regionais. No trecho

Sou um instrumento
Pequeno, feio, chinfrim,
que trago dentro de mim
basculho pra ‘saculejar’,
garrafa velha,
qualquer coisa reciclada
dou beleza ritmada
quando vem me balançar,

o instrumento diz “basculho pra ‘saculejar’”, em que sobressai a forma variante “basculho”, menos comum que a tradicional “vasculho”. A idéia de vasculhar (varrer com vasculho, espécie de vassoura), com a conseqüente sonoridade associada ao ato, é muito bem aplicada aqui em comparação ao movimento realizado pelo tocador de ganzá. E “saculejar”, devidamente entre aspas no encarte do disco, destaca a pronúncia habitual dos falantes em detrimento do vernáculo sacolejar, segundo o padrão culto da língua portuguesa. Assim, a ação de sacudir ou agitar o ganzá é perfeitamente representada pela escolha do verbo “saculejar” (por sacolejar), o qual parece lhe conferir ainda mais musicalidade.

Como a proposta deste trabalho é abordar apenas alguns aspectos da letra de Na Pancada do Ganzá, para não torná-lo muito extenso destacarei apenas determinadas referências à cultura popular nordestina que aparecem na conversa entre o coquista e o seu instrumento.

Fomos cantando
o país do futebol,
da Amazônia, praia e sol
do Babau, do Boi-Bumbá,
do carnaval, do São João, da cavalhada,
do repente, da congada,
da catira, do guará.

Babau, neste caso (em letra maiúscula), é um personagem fantástico da farsa popular bumba-meu-boi (FERREIRA, 1985: 214), tendo seu significado ampliado para “acabou-se, foi-se, era uma vez” (ibid.), como interjeição familiar. Também quer dizer chefe de terreiro e imolador ritual nos babaçuês e batuques (religião: Pará e Maranhão) (ibid.). Além do bumba-meu-boi, variante do boi-bumbá que aparece na letra, HOUAISS & VILLAR (2001: 369-lxviii) relacionam o personagem ao reisado, outra manifestação da cultura popular brasileira. Estes autores informam que o termo data de 1632, servindo como fonte o Padre Bento Pereira, na Prosodia in vocabularium trilingue Latinum Lusitanum et Castellanum, editado em 1634 em Évora, Portugal. A etimologia, no entanto, dão como origem obscura.

Congada é um “bailado dramático em que os figurantes representam, entre cantos e danças, a coroação de um rei do Congo; congado” (FERREIRA, 1985: 453). E catira, ou cateretê, é uma dança regional típica da Região Sul brasileira, de São Paulo, Minas Gerais e Goiás.

Antes de encerrar, observe-se outro trecho da letra, de importância histórica para o contexto regional da conversa entre o coqueiro e o ganzá:

E disse mais:
“Meu cantor, meu menestrel,
eu conheço esses céus
antes de Cabral chegar;
pode ir me ver
onde eu fui desenhado:
pelo homem pré-datado
lá na Pedra do Ingá.”

A Pedra do Ingá fica a aproximadamente oitenta quilômetros de João Pessoa, capital paraibana, e contém grande número de inscrições rupestres que remontam à pré-história. Essas inscrições são também chamadas de Itaquatiaras do Ingá. Trata-se de um dos monumentos arqueológicos mais representativos da Região Nordeste. Essas inscrições teriam sido feitas há mais de 6 mil anos e representam répteis, pássaros, frutas tropicais, figuras humanas, constelações e até a Via Láctea.

Fiz essas breves considerações sobre a Pedra do Ingá por considerar bastante oportuna a sua citação por Nóbrega e Freire, uma vez que esses versos realçam a importância do ganzá não só para o tirador-de-coco como também para a própria cultura popular brasileira, fortalecendo poeticamente o vínculo do instrumento com seus tocadores e ouvintes. Mais do que elemento-chave para se entender melhor a letra da canção analisada, o ganzá simboliza aqui um ícone da cultura nordestina, tamanha quantidade de referências poéticas associada a ele pelos autores da canção, incluindo sua ligação com a histórica Pedra do Ingá.

Por fim, refiro-me a uma das definições de outro termo que aparece na letra, baticum (também batecum, segundo HOUAISS & VILLAR, 2001: 415), que sintetiza bem a natureza da atividade do coquista: pulsação forte do coração e das artérias. É essa pulsação que deve percorrer não só a leitura como também a audição de Na Pancada do Ganzá, um microcosmo lexical que reúne referências regionais e apaixonadas dos autores Antonio Nóbrega e Wilson Freire à nossa cultura popular, aliadas à arte e aos ensinamentos que nos deixaram Câmara Cascudo, Mário de Andrade e o admirável Chico Antônio, como se buscou mostrar neste trabalho, constituindo um universo propício a amplos estudos em língua portuguesa, aqui apenas iniciados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. 2.ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983.

ANDRADE, Mário de. Os Cocos. Preparação, ilustração e notas de Oneyda Alvarenga. São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984.

ANDRADE, Mário de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: Ministério da Cultura; São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo/Editora da Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção Reconquista do Brasil, 2ª série, v.162)

CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d]. (Coleção Terra Brasilis)

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

NAVARRO, Fred. Dicionário do Nordeste: 5.000 palavras e expressões. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.