O ANTIPURISMO LINGÜÍSTICO EM LIMA BARRETO

Lúcia Maria de Assis (USP, FERP e UBM)

Uma pesquisa que pretenda trabalhar com a teoria da História das Idéias Lingüísticas, deve observar, no dizer de Orlandi (2001: 9), “ a língua e o saber que se constrói sobre ela ao mesmo tempo em que pensamos a formação da sociedade e dos sujeitos que nela existem”. Assim, vinculam-se os estudos da linguagem a assuntos relevantes da história e da constituição de determinada sociedade na tentativa de compreender o imaginário social que se constitui ao longo dessa história, chegando à identificação lingüístico-cultural de um povo.

Apoiando-nos, então, nessa linha teórica, pretendemos observar de que forma a ideologia antipurista de Lima Barreto manifesta-se como metalinguagem que marca sua obra e, como conseqüência, inaugura um novo pensamento a respeito da utilização da língua portuguesa no Brasil no início do século XX. Com esse objetivo, observamos, especialmente, o romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, escrito em 1909, o qual, segundo Assis Barbosa (2002), pode ser considerado uma obra biográfica, uma vez que a personagem principal não só possui as características físicas de seu criador, mas também comunga de sua crença e sua ideologia, ou seja, Isaías pensa como Lima Barreto - Isaías é Lima Barreto.

Para melhor entendermos o significado do que Lima Barreto dizia, é necessário que conheçamos, pelo menos um pouco, o Brasil de sua época. A fim de estreitarmos essa noção, optamos pela descrição do que acontecia no Brasil no final século XIX até chegarmos às crenças do início do século XX.

No século XIX, começava a se legitimar a sociedade brasileira, suas instituições, seu saber e seu poder político. Como língua e sociedade caminham juntas, conforme afirma Orlandi (id.), também o emprego da língua se modificava. Contudo, como as transformações não eram aceitas com facilidade, crescia um forte movimento de conservação. Mesmo assim, tal século foi o momento da reivindicação por um Brasil mais brasileiro, com língua, literatura e instituições que o representassem de verdade.

No final desse século o Brasil tornava-se uma República e via surgir, segundo Carvalho (1997: 24), “um abrir de janelas, por onde circulavam mais livremente idéias que se continham no recatado mundo imperial”. Vivia-se, então, um porre ideológico, no qual se misturavam vertentes do pensamento europeu com o liberalismo e o positivismo, além do socialismo e do anarquismo.

Nesse cenário, efervesceu o espírito da Belle Époque que impôs como modelo as fórmulas européias, em especial a parisiense, o que se refletia inclusive no uso da língua, com a inserção de diversos galicismos e, por conseqüência, estrangeirismos de uma forma geral. Por outro lado, essa mesma apologia fez surgir, em seguida, o preciosismo, a preocupação com a perfeição lingüística, gerando um forte movimento purista. De acordo com Leite (1999), na língua, esse movimento se define como a escolha de um modelo específico de falar e escrever, no qual se traduza o cuidado excessivo no trato da língua, configurando uma preocupação com a pureza da linguagem.

O movimento purista não existia somente no Brasil, mas, nesse país, ele objetivava defender a natural formosura da linguagem portuguesa, libertando-a de todo e qualquer francesismo. Pregavam-se, assim, o nacionalismo e a valorização do vernáculo. Na prática, essa força de preservação pretendia valorizar o modelo lingüístico utilizado por pessoas que possuíam maior prestígio sócio-cultural e político-econômico. Observamos, com isso, que as pessoas eram excluídas por serem pobres e por morarem nas favelas, uma das primeiras criações da República, e, conseqüentemente, excluíam-se pelo suposto mal uso que faziam da língua.

Na literatura, além de preocupar-se com a linguagem, o movimento purista ocupava-se também dos gêneros literários, das regras da poesia, do conteúdo e das ideologias veiculadas. Isso se manteve até o momento em que a reação contra o Romantismo e a criação da Academia Brasileira de Letras marcaram a vida literária, provocando uma mudança no português escrito, o qual estava em completo desacordo com a realidade brasileira, conforme explicita Leite (1999).

Lima Barreto, entretanto, discordava de um e de outro uso lingüístico. Tendo vivido o final do século XIX e o início do XX, era uma voz que clamava pela identidade brasileira. Mais que isso, ele reclamava igualdade entre os cidadãos, independente de raça, crença e classe social e, a seu ver, isso começaria pelo uso lingüístico. Sua voz, entretanto, não foi ouvida àquela época e seu trabalho só foi realmente reconhecido anos depois de sua morte. Mesmo assim, pode-se dizer que sua metalinguagem colaborou para a construção de um novo pensamento lingüístico e literário no Brasil. Apesar de não ter presenciado a semana de 22, pode-se afirmar que Lima Barreto foi o precursor do movimento modernista, o qual rompe de vez com o conservadorismo na literatura, nas artes e na utilização da língua.

Os preconceitos que vivenciou devido à sua origem colaboraram para que Lima Barreto questionasse a sociedade e, conseqüentemente a linguagem utilizada por ela, instrumento de classe e de repressão, que ajudava a impedir que os homens vivessem em harmonia. Isso pode ser observado no pensamento do narrador-personagem de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Isaías, que sonhava com o dia de se mudar para o Rio de Janeiro (a capital) a fim de aperfeiçoar seus estudos e conquistar o diploma de doutor, pois só assim seria respeitado. É Isaías quem diz:

(1) Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro de respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, ,não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se contorciam no meu cérebro (...) Ah! Doutor! Doutor! Andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano.

Lima Barreto denunciou também a artificialidade lingüística presente na literatura brasileira, afirmando que se empregava a genuína norma portuguesa, característica da época imperial. Ele, que não se conformava com os mandarinatos literários e com o preconceito vernáculo, falava, em sua obra, contra o poder do dinheiro, da posição social, da palavra rebuscada, da sintaxe preciosa, da falta de simplicidade, das regras rígidas diferentes da forma usada normalmente. Em síntese, ele defendia o emprego do português do Brasil e recusava-se a empregar a linguagem e o modelo purista, uma vez que via a “linguagem apurada como índice de um poder constituído”, segundo Silva (1998).

Por isso, em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, há personagens que figurativizam a crítica às normas artificiais do emprego da língua e sua ineficiência bem como aqueles que defendem esse uso. O purismo é defendido pelo “gramática” Lobo, que tratava a língua como uma entidade divina que deveria ser cultuada. No trecho que segue, reproduz-se um diálogo entre Lobo e o doutor Loberant, dono do jornal O Globo, em que Isaías trabalhava. Loberant, nervoso com a constante concorrência com O Jornal do Brasil, atribui a culpa à linguagem empregada em seu jornal, muito rebuscada:

(2) - Não quero mais gramática, nem literatura aqui!... Nada! Nada! De lado essas porcarias todas... Coisa para o povo, é que eu quero!

- Mas doutor, a língua é uma coisa sagrada. O culto da língua é um pouco o culto da pátria. Então o senhor quer que o seu jornal contribua para a corrupção deste lindo idioma de Barros e Vieira...

- Qual Barros, qual Vieira! Isto é brasileiro - coisa muito diversa!

- Brasileiro, doutor! Falou mansamente o gramática. Isto que se fala aqui não é língua, não é nada: é um vazadouro de imundície. Se Frei Luís de Sousa ressuscitasse, não reconheceria a sua bela língua nessa amálgama, nessa mistura diabólica de galicismos, africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, cacotenias, hiatos, colisões... Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disto: os romanos desapareceram, mas a sua língua ainda é estudada... (pág. 150)

Como se pode observar, Lobo, purista por convicção, defende o emprego da língua vernacular, mesmo que este contraste com a linguagem que o povo fala, que o povo entende, que o povo compra. Entretanto, Doutor Loberant supõe que tal forma pode não lhe estar rendendo os dividendos almejados. Tal passagem revela a preocupação de Lima Barreto com uma linguagem que estivesse mais próxima da vida cotidiana, que fosse mais comunicativa, enfatizando que o purismo é pouco comunicativo.

É importante ressaltar que, pelas memórias de Caminha, não fora sempre essa a posição de Loberant. Ele, apesar de pouco entender da língua e suas regras, antes desse episódio louvava a correção e não permitia que nada passasse, em seu jornal, sem que fosse preciosamente revisado. Segundo Isaías:

(3) Loberant julgava-se um purista.; demais, ele sempre tivera culto pelo dicionário, pelo purismo. Era um gosto ver surgir nos seus artigos-descomposturas, termos, catados ao Morais e ao domingos Vieira. E essa sua crença de purista e cultor da língua, juntara-se com o tempo, a de ser um grande homem, um messias, um homem providencial. (pág. 143)

Lobo, durante todo o restante da história, é caracterizado como alguém muito preocupado com a correção da linguagem, com os preciosismos gramaticais. É comum encontrarmos situações em que tal personagem esclarece alguma questão normativa ou que reclama um mau emprego.

(4) - Doutor Lobo, como é certo: um copo d’água ou um copo com água?

O gramática descansou a pena, tirou o pince-nez de aros de ouro, cruzou os braços em cima da mesa e disse com pachorra e solenidade:

- Conforme: se se tratar de um copo cheio, é um copo d’água; se não estiver perfeitamente cheio, um copo com água. (pág. 134)

(5) - Quem é este Sanches que escreveu este artigo sobre ‘Bancos Emissores’?

- Não sei bem, disse Floc (...)

- Que ignorante! Pois esta besta não escreveu - um dos que foram - isso de admite? Qual! Como é que saem batatas destas? ! Estou desmoralizado... todos sabem que tenho aqui a responsabilidade da língua... Que dirá o João Ribeiro? O Sai ali? O Fausto? E o Rui, que dirá? (pág. 178)

Conforme já afirmamos, o início do século XX é marcado pela pressão purista. Silva (1995), informa que havia, o tempo todo, alguém pronto a apontar incorreções gramaticais, erros de grafia e a colocação incorreta de pronomes. A Academia Brasileira de Letras, particularmente, interessava-se muito por essas questões e, por isso, ditava normas do bom uso, uma vez que era a sede do cultivo da língua nacional. Lima Barreto, que jamais conseguiu tornar-se membro dela, também sobre isso fala nas memórias de Caminha ao comentar a autonomia de Floc para escrever seus artigos:

(6) Floc, entretanto, gaba-se de ter autonomia nos seus artigos. Eram puramente literários, ou tinham esse propósito, e à luz da inteligência de Loberant, era-lhe perfeitamente indiferente que o naturalismo fosse elogiado e o nefelibatismo detratado; que a Academia de Letras tivesse referências elogiosas ou recebesse epigramas acerados. Floc era contra a Academia, contra os novos, contra os poetas, contra os prosadores. (pág. 143)

A crítica de Lima Barreto ao emprego da língua fica cada vez mais evidente ao longo do livro, principalmente nos momentos em que Isaías revela sua impressão sobre o “gramática” Lobo:

(7) A gramática do velho professor era de miopia exagerada. Não admitia equivalências, variantes; era um código tirânico, uma espécie de colete de força em que vestira as suas pobres idéias e queria vestir as dos outros. (pág. 179).

Isso fica ainda mais evidente diante do fim que o autor atri-buiu a Lobo:

(8) Lobo enlouqueceu e estava recolhido ao hospício. A sua mania era não falar nem ouvir. Tapava os ouvidos e mantinha-se calado semana inteira, pedindo tudo por acenos. Ao médico que lhe perguntou por que assim procedia, explicou, a muito custo:

- Isto não é língua... Não posso ouvir... tudo errado... que vai ser disto!

- E por que não fala?

- Os erros são tantos, e estão em tantas bocas, que temo que eles me tenham invadido e eu fale esse calão indecente... (pág. 217).

Diante do exposto, podemos observar que a crítica ao purismo permeia a obra de Lima Barreto, configurando também uma crítica aos valores sociais. Isso reforça a afirmação de que o pensamento lingüístico está diretamente relacionado à cultura, à história de um país, uma vez que língua e Estado caminham juntos, construindo a identidade da nação. Sendo assim, não se pode entender Lima Barreto sem entender a história do Brasil e não se pode entender a língua portuguesa e sua evolução sem se entender a história do seu povo.

De certa forma, pode-se afirmar que o pensamento do escritor a respeito desse uso lingüístico e literário influenciou sobremaneira seus sucessores, tanto que, conforme já afirmado, mesmo falecido antes da Semana de Arte Moderna, ele é considerado por alguns um pré-modernista, o inaugurador da Era Moderna, a qual é marcada pela redefinição de padrões artístico-lingüístico-literário no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 8a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: PubliFolha, 1997.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

LEITE, Marli Q. Metalinguagem e discurso: a configuração do purismo brasileiro. São Paulo: Humanitas, 1999.

ORLANDI, Eni P. (org.). História das idéias Lingüísticas: Construção do Saber Metalingüístico e Constituição da Língua Nacional. Campinas: Pontes/Unemat, 2001.

SILVA, Maurício. Confrontos Lingüísticos no Pré-Modernismo Brasileiro: Lima Barreto versus Coelho Neto. Anais do III CNLF: www.filologia.org.br/cong_iiicnlf.html, 1998. Consultado em 20 de abril de 2004.