Os Campos Lexicais do Vocabulário
do Livro de
Cozinha da Infanta D. Maria

Celina Márcia de Souza Abbade (UNEB e UCSAL)

 

A tese em doutoramento, defendida em novembro de 2003 na Universidade Federal da Bahia sob a orientação da Profª. Drª. Célia Marques Telles, traz um estudo do vocabulário quinhentista relativo à cozinha a partir do levantamento de seiscentas e quarenta e sete lexias e estruturação das mesmas em campos lexicais, encontradas no primeiro livro de cozinha portuguesa conhecido até o momento: o  Manuscrito I-E 33 da Biblioteca Nacional de Nápoles, através da edição crítica mais completa: O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal (G. MANUPPELLA, 1967). Um códice, que apesar dos problemas paleográficos e cronológicos que levanta, é valioso, contribuindo não para o vocabulário histórico da língua portuguesa, como também mostrando um lado importante da vida social que é a arte de cozinhar e bem comer, numa época da história portuguesa de que muito pouco se conhece e cujo mais antigo documento impresso de receitas culinárias, não é anterior a 1680, que é A Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues( RODRIGUES, 1987).

tese traz uma análise das lexias existentes nessas receitas, observando seus conceitos à época, a etimologia das mesmas, assim como a utilização dessas lexias naquele período.

O léxico de cozinha levantado no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, é dividido em campos lexicais, tomando como base teórica para tal proposta, os estudos realizados e propostos  por Stephen Ullmann e, principalmente a teoria dos campos lexicais proposta por Eugenio Coseriu. Essa teoria propõe uma análise estrutural do vocabulário, determinando o campo lexical dentro de estruturas lexemáticas no qual os lexemas integram um sistema de oposições.

Nessa perspectiva, o campo lexical seria um paradigma lexical, surgido a partir da subdivisão de um conteúdo léxico entre unidades diversas que têm oposição entre si em função de traços simples de distinção de conteúdo.

 Partindo-se desse princípio, faz-se a estruturação dos campos lexicais propostos. É evidente que a análise de um vocabulário articulado em campos lexicais, difere daquele classificado em campos semânticos.

Metodologicamente, o estudo desenvolvido, percorreu as seguintes etapas:

·  Levantamento dos campos lexicais, a partir do fichamento das lexias das sessenta e uma receitas do Livro de cozinha;

·  Consulta a alguns dicionários sincrônicos de língua portuguesa, estendida aos dicionários etimológicos;

·  Separação das lexias em campos lexicais;

·  Organização do corpus em macrocampos: manjares, processos e métodos, utensílios, ingredientes, unidades de peso e medida, qualificadores;

·  Divisão desses macrocampos em seus respectivos microcampos;

·  Classificação gramatical  da lexia seguida do conceito;

·  Ao final, fornecimento de um Índice das lexias, dispostas em ordem alfabética, registrando-se todas as formas utilizadas, com remissão para o texto da tese.

Na organização das entradas lexicais, registram-se as lexias na grafia moderna apenas quando esta for documentada no texto de base, caso contrário,  faz-se opção pela forma gráfica mais freqüente no texto. As entradas lexicais são organizadas em seus respectivos macrocampos e microcampos, seguindo, na medida do possível uma hierarquia alimentar, partindo-se sempre das lexias mais genéricas para as mais específicas. Colocam-se entre colchetes as formas não documentadas no texto (no masculino para os adjetivos e no infinitivo para os verbos). A seguir, vem a classificação gramatical e, por fim, o conceito. A etimologia e a datação são indicadas em notas de rodapé. Os exemplos são citados na ordem em que aparecem no texto de base, seguindo-se, entre parênteses, o número da receita (em algarismos romanos) e a página e as linhas (em algarismos arábicos), do exemplo na edição de G. Manuppella.

A tese foi organizada em quatro capítulos, precedidos da Introdução e seguida das Considerações Finais e das Referências Bibliográficas.

1.        LIVRO DE COZINHA E A ALIMENTAÇÃO MEDIEVAL

2.        ESTRUTURAÇÃO DOS CAMPOS LEXICAIS: O ESTUDO FUNCIONAL DO LÉXICO

3.        OS CAMPOS LEXICAIS DO VOCABULÁRIO DE COZINHA

4.        OS CAMPOS LEXICAIS DO LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIA

O primeiro capítulo, O LIVRO DE COZINHA E A ALIMENTAÇÃO MEDIEVAL, trata de dois aspectos:

1. O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria e  a edição crítica de Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut.

2. Algumas observações de caráter histórico e social sobre o léxico de cozinha, oferecendo-se uma abordagem histórica dos campos lexicais selecionados, unindo-se dessa forma, a língua e a história do povo que a fala.

 

O Livro de Cozinha E A ALIMENTAÇÃO MEDIEVAL

O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria teria pertencido a uma infanta portuguesa de cultura notável: a infanta D. Maria de Portugal, filha de D. Duarte, duque de Guimarães, neta do rei D. Manuel e sobrinha de D. João III. Foi uma moça letrada e culta, tendo conhecimentos de grego e latim, que, ao casar-se com Alexandre Farnésio (duque de Parma, Placêncio e Castro), viaja em 1565 para morar em Parma. O manuscrito que teria sido levado para a Itália pela infanta, faz parte de um grupo de cinco tomos de origem farnesiana. Consta de setenta e três fólios dos quais quarenta e um foram aproveitados pelos copistas, ficando brancas as folhas sem identificação. Os fólios compõem quatro cadernos com sessenta e uma receitas: Caderno dos Magares de Carne, Caderno dos Mamgares de Ovoos; Caderno dos Mamgares de leyte; Caderno das Cousas de Comseruas. Provavelmente esses cadernos tiveram origem independente, sendo mais tarde reunidos e encadernados em um volume. Além desses quatro cadernos, encontram-se seis receitas avulsas de utilidades caseiras. Essas receitas são colocadas anteriormente ao primeiro caderno (três receitas) e posteriormente ao quarto caderno (três receitas).

Em 1967, Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut, publicaram em Portugal a edição crítica do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria ( ARNAUT, MANUPPELLA, 1967). Essa edição seria a mais completa e a quarta realizada até então. São editadas as sessenta e sete receitas distribuídas nos quatro cadernos e mais as seis receitas avulsas: as receitas de número 1 à 3 (Este he o modo q) se tem pera enguordar framguoos, Pera se fazer sesemta varas de veludo de pello miudo, vynho dacuquar q) se bebe no brasyl q e muito saõ e pera o figado e marauylhoso) e as de número 65 à 67 (Receita de dom luis de moura pera os demtes, Reçeita pera squinecia, Reçeita pera ffogo ou escaldamento) que não integram os quatro cadernos em que se divide o livro; são receitas diversas de uso doméstico e por isso não foram incluídas no presente estudo.

 

Considerações sobre o léxico de cozinha

As classes dominantes, com seus modelos alimentares, deixam na Idade Média, através de receitas culinárias, sua perfeita expressão gastronômica. Esse novo gênero, surgido na Europa entre os séculos XIII e XIV, eram destinados aos cozinheiros das cortes ou às famílias ricas urbanas.

O contraste e a dosagem, sabiamente elaborados, conferiam à cozinha medieval sabor forte e picante, sendo notório o sabor agridoce, através das misturas e modos de preparar os seus ingredientes. De modo geral, todo tempero e cozimento exerciam uma dupla função: tornar os alimentos mais apetitosos e mais fáceis de serem ingeridos.

O contraste social foi nitidamente traçado a partir desse receituários culinários pois comer bem era para bem poucos privilegiados da época, o que não difere muito da sociedade atual.

Denomina-se alimento ou manjar toda substância que possa ser ingerida por um ser vivo e seja capaz de nutri-lo. Ingrediente é aquilo que entra no preparo dos alimentos. Para fazer uso desses ingredientes, é necessário utilizar-se de peso ou medida para dosagem dos mesmos. Após serem pesados ou medidos, são necessárias determinados processos e métodos atuações, atos, feitos’, para a execução de tais misturas na busca da feitura da receitaTudo isso levará a sabores, cheiros, consistência, cores, ou melhor qualidades que são identificadas com os qualificadores. Juntando tudo isso, chegam-se aos manjares, finalidade das receitas. Tentou-se, assim, organizar as seiscentas e quarenta e sete lexias levantadas nas sessenta e uma receitas do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Essas lexias estão distribuídas em campos lexicais, e cada um desses macrocampos subdivide-se em campos menores, os microcampos, provando-se que é possível e lógico fazer-se uma estruturação lexical da culinária quinhentista portuguesa com base em um dos livros de cozinha existentes à época.    

Fica difícil, ou melhor, impossível falar do léxico de uma língua sem enveredar pela história de seu povo. Por isso, antes de iniciar o trabalho de levantamento lexical propriamente dito, faz-se aqui uma abordagem do sociedade medieval portuguesa no período em que viveu a Infanta D. Maria de Portugal e foram preparadas tais receitas

A alimentação de um povo diz muito mais do que se imagina a respeito do mesmo. O permitido,  o proibido, o que faz bem, o que faz mal, todos esses fatores gastronômicos estão ligados à cultura e sociedade de cada povo. Saber qual o alimento certo ou errado, nutritivo ou não, vai depender muito da época em que se encontre, da sociedade em que se esteja, da cultura a que o povo pertença e dos hábitos alimentares aprendidos na comunidade de cada um.

A alimentação medieval, assegurava a sobrevivência das pessoas pelo consumo de  vinho, pão e todas as outras coisas que se comiam com o pão. Portanto, pão  e vinho (tão importantes na cultura cristã) alimentavam o homem medieval. O pão, vai distinguir também as classes sociais da época, pois a farinha utilizada no seu preparo ia depender da condição econômica de cada um, havendo assim uma relação entre o consumo do pão e a relação social: quanto mais baixa fosse a posição social de uma pessoa, maior seria a percentagem de sua renda para o consumo do pão.

Mas a relação prato / nível social, não era definida apenas pelo consumo do pão. Outros alimentos também fizeram parte dessa distinção.

As carnes também eram consumidas distintamente: as “boas” eram  para as classes elevadas e as de “pior qualidade” bastavam para satisfazer a população mais modesta da sociedade.

Essas distinções alimentares, tão evidentes nesse período, eram tão fortes a ponto de se acreditar àquele tempo que os alimentos superiores (aves, carnes delicadas), davam inteligência e maior sensibilidade às pessoas do que àquelas que se alimentavam de boi e de porco, definindo assim os alimentos em nobres e vulgares.

Na alimentação medieval, a caça, a pesca e a criação selvagem, eram grandes fontes de alimentação. Os alimentos vegetais (cereais e legumes) desempenhavam papel secundário. De qualquer sorte, no regime alimentar desse período, predominava o modelo misto onde cereais e legumes coexistiam com a carne e o peixe. Sobrevivência ou prazer evidenciavam a discriminação social da época

E nesse conjunto de manjares com seus processos e métodos de preparo, ingredientes, utensílios, pesos e medidas e qualificadores, os alimentos são elaborados das mais diversas maneiras, acrescentando-se aqui e ali, um ingrediente novo, uma quantidade diferente, um modo de cozer especial, além é claro, da mão de todo preparador do alimento, que não foi citado aqui, mas que, sem a mesma, nada disso teria sentido.

O segundo capítulo, ESTRUTURAÇÃO DOS CAMPOS LEXICAIS: O ESTUDO FUNCIONAL DO LÉXICO, traz a  fundamentação teórica da tese, mostrando a possibilidade de um estudo diacrônico estrutural do léxico, através da teoria dos campos lexicais proposta por Eugenio Coseriu. A partir desse estudo teórico, mostra-se como se fez a estruturação dos campos lexicais do vocabulário de cozinha. Assim, apresenta-se a estruturação dos macrocampos lexicais  e os seus microcampos.

Eugenio Coseriu nos mostra que é possível um estudo diacrônico estrutural das significações das palavras, desde que se entenda a forma ou substância semântica como substância lingüísticamente formada. Ele deixa isso muito claro em Para una semántica diacrónica estructural (COSERIU, 1967), através de exemplos latinos e de línguas românicas,  onde Coseriu vem mostrar a necessidade e a possibilidade de um estudo diacrônico estrutural da significação das palavras. Para um estudo estrutural, é necessário analisar a língua funcional, entendida como língua enquanto sistema, ou seja, uma língua até certo ponto unitária dentro de uma língua histórica e não aquilo que se refere a uma língua histórica tomada em seu conjunto que geralmente compreende uma série de línguas funcionais que às vezes são bastante diferentes. As unidades funcionais de uma língua devem estabelecer-se ali onde funcionaram, e mediante as oposições em que funcionam.

Sendo o léxico o domínio menos estruturado de uma língua, estabelecer estruturas básicas, tal como se faz na Gramática, não é tarefa fácil, mas também não é impossível. É muito difícil fazer-se uma descrição coerente do conjunto do léxico, na medida em que se considera o mesmo como um sistema. Pode haver limites nos sistemas fonológicos ou gramaticais. Mas estabelecer um sistema lexical, devido ao seu caráter empírico, é algo que pode parecer sempre impreciso e inconcluso. Mas, se não se pode estabelecer todo o léxico de uma língua, pode-se começar modestamente por estabelecer sistemas parciais que poderão ser  organizados posteriormente em outros sistemas mais complexos.

Essa estruturação de sistema não pode ser arbitrária. Não faria sentido querer organizar elementos de sistemas diferentes em um sistema mais amplo. Assim, oposições do tipo arroz e cadeira tornam-se impossível pois não existe qualquer sentido lógico para essas lexias serem organizadas em um único sistema. Porém arroz, açucar, leite, ovos estariam unidos em um campo único que poderia ser o campo dos alimentos ou o dos ingredientes, por exemplo.

Se as unidades funcionais do léxico podem ser analisadas e organizadas em campos ou sistemas distintivos, pode-se falar então em estruturas lexicais.

Essa proposta para uma análise estrutural do léxico, tem como maior dificuldade o grande número de unidades léxicas comparadas aos números limitados de unidades tanto na Fonologia, quanto na Gramática, porém, como E. Coseriu explica, essa enorme extensão do vocabulário não chega a ser um problema, mas uma dificuldade prática que, baseado em uma série de distinções, propõe e recomenda uma redução do material a ser analisado.

Assim, o presente estudo, por exemplo, visa a uma estruturação do léxico da cozinha  portuguesa quinhentista, não tentando abarcar todo o vocabulário da culinária quinhentista encontrado até então em inúmeros livros e documentos. Com o material reduzido, é totalmente possível se fazer um estudo desse tipo.

Enfim, é muito difícil apresentar uma teoria concisa sobre a estruturação dos campos lexicais, uma vez que existem problemas difíceis de se resolver ou até mesmo sem solução. Mas o estudo histórico de uma língua necessita de lingüistas interessados na estruturação do seu léxico.

No terceiro capítulo, OS CAMPOS LEXICAIS DO VOCABULÁRIO DE COZINHA, faz a  argumentação a propósito da teoria dos campos lexicais. Mostra-se a estruturação desses campos em macrocampos e microcampos, mostrando-se, então, a proposta de organização dessas lexias. Ainda neste capítulo, abordam-se, brevemente, algumas relações de sentido encontradas dentro dos campos analisados.

Fundamentado na teoria dos campos lexicais proposta por Eugenio Coseriu, faz-se a classificação dos campos lexicais existentes no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. O Quadro 1 oferece uma idéia da organização dos macrocampos estruturados na tese.

CAMPO

LEXICAL

EXEMPLOS

TOTAL

MANJARES

Biscoutos, bolo, carmelo, morcela, pilouro, manjar....

87

PROCESSOS E

MÉTODOS

cobrjr, coar, clarificar, assar,

alimpar, ajuntar, afogar, abafar...

210

UTENSÍLIOS

tacho, prato, alfinete, sertã, algujdar, tauoleyro, fogareiro, tauoa ...

72

INGREDIENTES

Acuquar, arroz, farinha, galinha,

 Laranja, noz, porco, trigo ...

137

UNIDADES DE

PESO E MEDIDA

arratel, duzia, omça, arroba,

canada, palmo ...

68

QUALIFICADORES

Atochado, brando, bom, rroy,

 igual, dereyto, fermoso, folgado ...

73

 

 

647

Quadro 1 – Macrocampos lexicais do Livro de cozinha

As seiscentas e quarenta e sete lexias levantadas, são estruturadas em seis macrocampos, e, cada um desses macrocampos, se divide em microcampos mais específicos.

 

O macrocampo dos manjares

A designação genérica paraalimento preparado’ é manjar, forma lexical utilizada para intitular três dos cadernos do livro de receitas. Daí, ter-se escolhido  para a estruturação dos campos lexicais da culinária quinhentista, começar-se pelo macrocampo dos manjares que se divide em cinco microcampos. Esse macrocampo foi, assim, estruturado seguindo a lógica de preparação dos alimentos, ou seja, os alimentos que são feitos com carne integram o microcampo das carnes, e assim sucessivamente. Esse critério partiu da própria divisão dos cadernos do Livro de cozinha da Infanta D. Maria[1]: manjares de carne, manjares de ovos, manjares de leite e cousas de conserva.

Assim, tem-se a respectiva estrutura para as oitenta e sete lexias que integram o macrocampo dos manjares.

 

O macrocampo dos processos e métodos

No vocabulário de cozinha, entende-se processos e métodos como as maneiras de fazer as receitas realizando ações que geram mudanças de estado nos ingredientes até se chegar à confecção das iguarias propostas.

O macrocampo dos processos e métodos é composto de duzentos e dez lexias que estão estruturadas nos seguintes microcampos lexicais:

·  Genérico: quando indicam os resultados das ações praticadas. São as ações mais genéricas, que levam a determinados resultados.

·  Processo: quando implicam procedimentos, sucessões de estado ou mudanças;    

·  Método: quando demonstram a maneira de agir durante o processo de preparação dos alimentos;

·  Movimento: quando indicam movimento, deslocamento em relação aos ingredientes que estão sendo utilizados na preparação das receitas;

·  Mudança de estado: quando indicam a ‘metamorfose’ dos ingredientes, na modificação do seu estado na elaboração das receitas.

Partindo-se deste princípio, as lexias relativas aos processos e métodos, se distribuem nesses cinco microcampos, conforme vai demonstrado nos quadros abaixo:

 

O macrocampo dos utensílios

Para o macrocampo dos utensílios, o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria registra sessenta e oito designações, estruturadas em sete microcampos: instrumentos de trabalho, para colocar alimentos, para líquidos, que vão ao fogo, tapadores, para cortar, para perfurar.

 

O macrocampo dos ingredientes

As cento e trinta e sete lexias relativas ao macrocampo dos ingredientes encontrados, foram organizadas em dez microcampos, seguindo-se a hierarquia alimentar existente no período quinhentista, onde as “coisas do ar” estão sobre as “coisas da terra” (FLANDRIN, MONTANARI, 1998 : 466-477). Dessa maneira, o microcampo das aves é superior ao microcampo das carnes que é superior ao dos peixes, e assim por diante. Tenta-se aqui, pelo menos com as carnes, respeitar essa hierarquia medieval. Os dez microcampos são : genéricos, aves, carnes, peixes, vegetais, frutas, cereais, adubos, gorduras, líquidos

 

O macrocampo dasunidades de peso e medida

No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, encontram-se sessenta e oito designações referentes às unidades de peso e medida que se subdividem basicamente nas oposições de grandeza de valor absoluto e grandeza de valor relativo. Observe-se que, as grandezas de valor relativo são, na verdade, formas polissêmicas, tomadas a partir do seu sentido principal, transferido para o campo das unidades de peso e medida. A partir destes dois campos, o macrocampo das unidades de pesosmedidas, ainda subdivide-se nos seguintes microcampos: genéricos, para sólidos, para líquidos, para dimensão, para distância e para medir tempo.

 

O macrocampo dos qualificadores

No que diz respeito aos qualificadores, se compararem as receitas quinhentistas com as do século atual, não restará dúvidas de que tais receitas eram abundantes em gorduras e bem variável em condimentos. Esse macrocampo está composto de setentas e três designações, distribuídas em nove microcampos, partindo-se dos qualificadores genéricos, para os que indicam dimensão, forma, textura, cor, sabor, temperatura, distância e tempo.

No quarto capítulo, OS CAMPOS LEXICAIS DO LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIA, estão estruturados os campos lexicais propostos: manjares, processos e métodos, utensílios, ingredientes, unidades de peso e medida e qualificadores, nos quais se encontram a estruturação, vendo-se cada macrocampo estruturado em seus microcampos e os exemplos dessas lexias. A classificação em campos lexicais é, necessariamente, acompanhada de um Índice das lexias, dispostas em ordem alfabética, registrando-se todas as formas utilizadas, com remissão para o texto da tese.

Registre-se, ainda, que são colocadas entre a tese algumas ilustrações referentes à infanta D. Maria e à alimentação medieval.

 

Considerações Finais

A tentativa de proceder ao estudo estrutural do léxico de cozinha levou à organização deste em seis macrocampos lexemáticos. Traz-se, desse modo, alguma contribuição para o conhecimento do léxico da língua portuguesa no final dos anos quinhentos e no século XVI.

Fundamentada no estudo da obra de Eugenio Coseriu, oferece-se uma amostragem da possibilidade real de se fazer um estudo estrutural da língua na perspectiva da lingüística diacrônica estrutural.  Prova-se que a estruturação do léxico oferece uma visão de conjunto com muito mais coerência do que a simples organização alfabética das lexias.

 

Referências bibliográficas

ARNAUT, Salvador Dias. A arte de comer em Portugal na Idade Média. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986. Intr. a “O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal”.

BARBOSA, Maria Aparecida. Lexicologia: aspectos estruturais e semântico-sintáticos. In: PAIS, Cidmar Teodoro et al.  Manual de lingüística. Petrópolis: Vozes, 1978. p.81-125.BECHARA, Evanildo. Estudo estrutural do léxico: a lexemática. In: id. Modera gramática portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. p. 385-90.

COSERIU, Eugenio. Gramática, semántica, universales estudios de la lingüística funcional. 2 ed. rev. Madrid: Gredos, 1987.

COSERIU, Eugenio. Princípios de semántica estructural. Vers. esp. de Marcos Martinez  Hernández, rev. por el autor. Madrid: Gredos, 1977.

FLANDRIN, Jean-Louis, MONTANARI, Massimo.  História da alimentação. Trad. de Luciano Vieira Machado e Guilherme João de Freitas Teixeira.  2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

GAMA, Nilton Vasco da. Uma contribuição ao estudo do “Tratado de cozinha portuguesa” (ms. I -E -33 da B.N.N.). Salvador: UFBA / IL/ DLR, 1973.

GECKELER, Horst. Semántica estructural y teoria do campo léxico. Vers. esp. de Marcos Martinez Hernández rev. por el autor. Madrid: Gredos,1976.

GOMES FILHO, Antônio (edit.). Um tratado da cozinha portuguesa do século XV. 2ed. Rio de Janeiro. MEC INL, 1994. Leitura diplomática e modernizada.

LIVRO DE COZINHA DA INFANTA D. MARIA: CÓDICE PORTUGUÊS I. E. 33 DA BIBLIOTECA NACIONAL DE NÁPOLES.  Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986. Prólogo, leitura, notas ao texto, glossário e índices de Giacinto Manupella.

MARQUES, OliveiraA Sociedade medieval portuguesa: aspectos da vida cotidiana.  5. ed.  Lisboa: Sá da Costa, 1987.

QUEIROZ, Maria José de. A Comida e a cozinha ou iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988.

ULMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Trad. de J. A. Osorio Mateus. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1970.


 

[1] Ressalte-se que a receita XVI Receyta dos canudos dos ovos meixidos, transcrita pelo copista no Cadernno dos magares de carnne, integra, na verdade, o microcampo dos manjares de ovos. Por outro lado, a receita de Mamjar bramquo (XXIV) – feito de galinha – integra o Caderno dos mamgares de leyte, acha-se classificado, entretanto, no microcampo dos manjares de carne.