DA PERDA DOS CLÍTICOS
NO FALAR COLOQUIAL DO RIO DE JANEIRO

Anderson da Silva Ribeiro (UERJ)

Para Ana Maria Novaes, Manoel P. Ribeiro e Tânia Câmara, com admiração.

O tema de investigação deste artigo está fundamentado nos pronomes objetivos ou oblíquos átonos da língua portuguesa que podem ser definidos como partículas inacentuadas dispostas antes ou depois dos verbos, o que vai constituir uma sílaba a mais do verbo ao qual se refere.

É um estudo da queda dos clíticos em nosso idioma, tendo em vista o falar coloquial carioca. A perda à qual nos referimos não se dá somente pelo desaparecimento de tais elementos, mas também devido a outras construções sintáticas.

Apoiamo-nos em vários estudiosos que contemplam a diversidade lingüística. Entretanto, é a lingüística funcional de Eugênio Coseriu que recebe destaque. Esse lingüista trouxe conceitos importantes como o de diassistema.

Para Monteiro (1994: 29), os pronomes possuem três grandes equívocos cujas raízes se encontram na cultura greco-latina. Primeiramente, há a questão de se definir os pronomes sempre como substitutos o que não acontece em todas as situações de uso. Em segundo lugar, aqueles que exercem a função substitutiva nem sempre substituem nomes. E, por último, há expressões cujas funções substitutivas não se classificam como pronomes.

Para Postal (1969), os pronomes apresentam um comportamento sintático e semântico diferente do (s) elemento (s) substituído (s). Por isso, toda e qualquer substituição não é perfeita.

Essa aura dos pronomes de elementos “exclusivamente substitutivos” (cf. Monteiro, 1994: 31) permeia o pensamento de grandes lingüistas como Bloomfield (1995) e Dubois (1965) que chegaram a denominá-los de substitutos. Cunha & Cintra (1985: 275) e Bechara (1999: 162), numa postura diversa, apresentam, respectivamente, um conceito de pronomes mais condizente com a reflexão aqui proposta.

Os pronomes desempenham na oração as funções equivalentes às exercidas pelos elementos nominais.

Servem, pois:

a) para representar um substantivo;

[...]

b) para acompanhar um substantivo determinando-lhe a extensão do significado.

No primeiro caso desempenham a função de um substantivo e, por isso, recebem o nome de pronomes substantivos; no segundo chamam-se pronomes adjetivos, porque modificam o substantivo, que acompanham, como se fossem adjetivos.

Pronome - é a classe de palavras categoremáticas que reúne unidades em número limitado e que se refere a um significado léxico pela situação ou por outras palavras do contexto.

De modo geral esta referência é feita a um objeto substantivo considerando-o apenas como pessoa localizada do discurso.

A pessoalidade e a questão do número são dois fatores integrantes da natureza pronominal os quais apresentam também algumas contradições quanto à idéia do sentido e, conseqüentemente, quanto ao uso das nomenclaturas.

Partimos de Monteiro (1994: 32-37) para discutir e reavaliar um novo conceito de pessoalidade a qual se incumbiu de durante séculos envolver elementos que não participam do ato da comunicação interlocutória. O que se tem é uma elasticidade para um conceito originalmente tão restrito, ou seja, a rigor, os pronomes dotados de pessoalidade são aqueles que se referem “exclusivamente aos interlocutores do ato de fala”.

Acreditamos serem duas as pessoas do discurso: o falante e o ouvinte. A terceira pessoa “possui natureza e funções diferentes e tanto se refere a seres como a coisas ou abstrações” (cf. Monteiro: 1994: 33).

Vemos que a categoria de plural não se aplica igualmente a primeira e à terceira pessoa. “Nós”, de maneira alguma, deve ser considerado como plural de “eu”, visto que não há em seu campo semântico a mesma idéia de diversos falantes existentes em “eles”, considerado fora do eixo interlocutório.

A colocação pronominal é um outro ponto nevrálgico e polêmico gerador de diversas contendas teóricas. Isso tudo porque se solidificou uma controvérsia sobre a existência ou não de um padrão brasileiro culto diferente do padrão lusitano. Sobre isso, nos valemos dos comentários de Possenti (1996: 67).

[...] no português do Brasil, as regras de colocação de pronomes átonos ainda encontráveis nas gramáticas e ensinadas na escola como desejáveis são evidentemente decorrência de uma visão equivocada da língua. Só é possível entender que ainda se suponha que aquelas regras funcionem ou, pelo menos, deveriam funcionar, por absoluto saudosismo e purismo. Em Portugal, elas são relativamente correntes - pode-se ouvir uma mesóclise de um analfabeto - mas, defender que sejam aceitas no Brasil equivale a propor que se volte a formas do português medieval. - os grifos são meus.

Melo (1971: 191) aponta um caminho para a resolução do problema da colocação pronominal. Ele ressalta que tanto numa perspectiva da “língua brasileira” quanto numa abordagem da “língua lusa”, a solução está no estudo minucioso da história da lingüística do português.

Urge que se faça pesquisas em textos do período arcaico e nos séculos subseqüentes, verificando as evoluções e mudanças na sintaxe de colocação a qual se deve ao condicionamento lingüístico dado pelos falantes.

Ainda que o objetivo de análise seja a fala coloquial carioca de falantes cultos, apresentamos como primeira amostra das idéias debatidas, a música Beija eu, composta por Monte, Antunes e Lindsay (1990):

Seja eu,

Seja eu,

Deixa que eu seja eu.

E aceita

O que seja seu.

Então deita e aceita eu.

Molha eu,

Seca eu,

Deixa que eu seja o céu.

E receba

O que seja seu.

Anoiteça e amanheça eu.

Beija eu,

Beija eu,

Beija eu, me beija.

Deixa

O que seja ser.

Então beba e receba

Meu corpo no seu corpo,

Eu no meu corpo,

Deixa,

Eu me deixo.

Anoiteça e amanheça.

Com o uso predominante de verbos no imperativo (“seja”, “deixa”, “aceita” etc.), caracterizando a função conativa da linguagem, o eu lírico do texto tenta, com grande força argumentativa, convencer seu interlocutor de realizar seus desejos que podem ser vistos nos versos: “Seja eu”, “Deixa que eu seja eu”, “Molha eu”, “Seca eu”, “Beija eu”, “Anoiteça e amanheça” etc.

No que tange ao aspecto lingüístico-gramatical, ressaltamos a substituição do clítico me pelo pronome pessoal reto eu, o que, segundo a tese deste trabalho, constitui uma perda. Tal perda está, no caso da música de Marisa Monte, dotada de toda uma expressividade a qual não existiria com a presença do pronome. Quando o enunciador diz “beija eu”, além da questão argumentativa, percebo que ele não quer abdicar da sua posição dominadora, utilizando-se, por isso, do pronome sujeito eu no lugar do pronome objeto me.

Após este intróito, recorremos a D’Albuquerque (1984: 97-121), a fim de mostrar alguns casos de perda de pronomes oblíquos no discurso oral os quais tomamos como parâmetro de observação:

a) Construções com verbos “essencialmente” pronominais, usados sem os respectivos pronomes. Ex.: Ele chama João (notamos a ausência do reflexivo se);

b) Construções com verbos acidentalmente pronominais aparecem sem os reflexivos. Ex.: Marcelo machucou jogando bola (observamos que a estrutura da frase se encontra na voz reflexiva, devendo ter um verbo acompanhado de um pronome oblíquo);

c) O clítico que expressa reciprocidade é abandonado por estruturas como: UM COM OUTRO e UM AO OUTRO. Registramos também a ausência total. Ex.: Um trem chocou com outro/ Kátia e Carlos beijaram;

d) O se, índice de indeterminação do sujeito, é evitado e substituído por outros recursos. Ex.: A gente come bem aqui/ e não Come-se bem aqui;

e) Geralmente com sentido passivo, determinadas construções onde aparecia o pronome átono, foram substituídas por estruturas equivalentes. Ex.: Maria se assustou com o barulho Þ Maria ficou assustada (a construção reflexiva foi substituída pela locução verbal);

f) Os falantes deram preferência a alternativas de regências verbais que evitam os verbos pronominais. Ex.: Alice se curou do resfriado Þ Alice curou o resfriado;

g) Construções do “ele” acusativo. Ex.: Vi ele ontem na festa Þ Eu o vi ontem na festa;

h) Construções com o objeto pronominal nulo. Ex.: “- Há quanto tempo você conhece Maria?” “- Eu conheço (f) há muitos anos”;

i) A mesóclise, que é um caso especial de ênclise, cai em desuso, procurando o falante outras formas de expressão. Ex.: Dar-lhe-ei um presente Þ Vou te dar um presente (colocação pronominal do português do Brasil).

- O corpus utilizado é constituído por um grupo de sete falantes a quem foi proposto um debate, tomando como princípio o escândalo político o qual envolveu a ex-Ministra da Assistência Social, Benedita da Silva.

As notícias foram todas retiradas do jornal O Globo. A reportagem de 25/09/2003 faz um primeiro relato acerca do caso Benedita da Silva. Diante dessa informação, pedimos aos informantes uma avaliação sobre o caso, cujo resultado nos permitiram sistematizar a seguinte tabela:

Tabela 1 - Questão 1

Casos Presença Ausência
Verbos essencialmente reflexivos 0 0
Verbos acidentalmente reflexivos 0 0
Verbos pronominais recíprocos 0 0
Verbos com partícula indeterminadora 2 0
Construções do ele com acusativo 0 0
Construções com mesóclise 0 0
Construções com objeto direto nulo 0 0
Total 2 0

A segunda pergunta, feita também com base na reportagem do dia 25/09/2003, gira em torno de uma possível proteção a Benedita por parte do Presidente da República em exercício, José Alencar. Apresentamos os resultados:

Tabela 2 - Questão 2

Casos Presença Ausência
Verbos essencialmente reflexivos 0 0
Verbos acidentalmente reflexivos 0 0
Verbos pronominais recíprocos 0 0
Verbos com partícula indeterminadora 2 0
Construções do ele com acusativo 0 0
Construções com mesóclise 0 0
Construções com objeto direto nulo 1 0
Total 3 0

A terceira pergunta (O Globo, 25/09/2003) questiona aos falantes sobre uma possível decepção eleitoral por parte deles:

Tabela 3 - questão 3

Casos Presença Ausência
Verbos essencialmente reflexivos 0 0
Verbos acidentalmente reflexivos 3 0
Verbos pronominais recíprocos 0 0
Verbos com partícula indeterminadora 0 0
Construções do ele com acusativo 0 0
Construções com mesóclise 0 0
Construções com objeto direto nulo 0 0
Total 3 0

Baseamo-nos na reportagem do dia 17/10/2003 para fazer a quarta pergunta a qual está centrada na declaração de defesa dada por Benedita da Silva:

Tabela 4 - Questão 4

Casos Presença Ausência
Verbos essencialmente reflexivos 0 0
Verbos acidentalmente reflexivos 0 0
Verbos pronominais recíprocos 0 0
Verbos com partícula indeterminadora 0 0
Construções do ele com acusativo 0 0
Construções com mesóclise 0 0
Construções com objeto direto nulo 0 0
Total 0 0

A quinta e última pergunta está baseada numa charge de Chico Caruso publicada no dia 22/10/2003:

Tabela 5 - Questão 5

Casos Presença Ausência
Verbos essencialmente reflexivos 0 0
Verbos acidentalmente reflexivos 0 0
Verbos pronominais recíprocos 0 0
Verbos com partícula indeterminadora 0 0
Construções do ele com acusativo 0 0
Construções com mesóclise 0 0
Construções com objeto direto nulo 0 0
Total 0 0

Resta-nos concluir que a perda dos clíticos no falar coloquial ainda não contagiou o discurso de falantes cultos, ainda que esses falantes estejam numa situação de informalidade. Acreditamos que após o indivíduo entrar em contato com a língua padrão, dificilmente ele faz uso de determinados coloquialismos ou variações da norma culta.

Esperamos ter oferecido aos pesquisadores de linguagem algumas provocações que propiciem novas pesquisas a respeito da diversidade lingüística brasileira. Assim, citamos o semiólogo Roland Barthes que tão bem defende a língua e a sua variedade:

Tantas linguagens quantos desejos houver: proposta utópica, pelo fato de que nenhuma sociedade está ainda pronta a admitir que há vários desejos. Que uma língua, qualquer que seja, não reprima a outra: que o sujeito futuro conheça, sem recalque, o gozo de ter a sua disposição duas instâncias de linguagem, que ele fale isto ou aquilo segundo as perversões, não segundo a Lei.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. Aula. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 36ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

COSERIU, Eugenio. Lições de lingüística geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

CUNHA, Celso Ferreira da; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

D’ ALBUQUERQUE, Alair da Cruz Reis Cavalcanti. A perda dos clíticos em um dialeto mineiro. In: LEMLE, Miriam (org.). Revista Tempo brasileiro: sociolingüística e o ensino do vernáculo. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984, p. 97-121.

MARISA MONTE. Beija eu. Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Arto Lindsay. [compositores]. In: ---. Mais. [S. l.] Emi-Odeon Brasil, p. 1990. 1 CD. Remasterizado em digital.

MELO, Gladstone Chaves de. A colocação dos pronomes. In: ---. Iniciação à filologia e à lingüística portuguesa. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1971, p. 191-196.

MONTEIRO, José Lemos. Pronomes pessoais: subsídios para uma gramática do português do Brasil. Fortaleza: UFC, 1994.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado de Letras, 1996.

RANGEL, Rodrigo. Benedita vai a encontro evangélico na Argentina com dinheiro público. O Globo, Rio de Janeiro: 25 de setembro de 2003. O país.

------; BRAGA, Isabel. Benedita ignora Comissão de Ética. O Globo, Rio de Janeiro: 17 de outubro de 2003. O país, p. 3.