PROPOSTA PARA UMA DESCRIÇÃO DO VERBO
QUANTO À CATEGORIA DE VOZ

Paulo Mosânio Teixeira Duarte (UFC)

 

Introdução

A categoria de voz, na gramática tradicional, é mal descrita. Por isto, divergem os critérios, às vezes num mesmo autor, e conseqüentemente altera-se a tipologia.

O critério mais usado tanto na definição de voz como na caracterização dos seus tipos é o semântico. Este critério aparece isolado, conjugado à forma ou disfarçado de critério sintático, neste caso, há referência à relação sujeito/predicado. Outras vezes, os autores empregam um critério no conceito e outro na tipologia diatética.

Cunha & Cintra (1985), por exemplo, apresentam voz como uma variação verbal, o que seria o mesmo que afirmar ser ela uma “forma verbal”. Em seguida, asseveram que “o fato expresso pelo verbo pode ser representado de três formas: como praticado pelo sujeito, como sofrido pelo sujeito, como praticado e sofrido pelo sujeito” (1985: 372). Esta caracterização é nitidamente semântica.

Luft (1974) é outro que define voz comoforma que toma o verbo para exprimir as relações de atividade e passividade entre sujeito e verbo” (1974: 132), usando, então, um critério morfo-semântico, que se revela apenas semântico na tipologia das vozes.

Bechara (s/d) não define a categoria de voz, mas a expressão comum a todos os conceitos que dá de cada tipo é “forma verbal”, o que indicia o emprego do critério mórfico, mas o todo de cada definição conduz também a um critério semântico.

Lima (1992) define a voz comoacidente que expressa a relação entre o processo verbal e o comportamento do sujeito.” (1992: 123). Usa o critério semântico disfarçado de sintático. Todavia, quando a coloca como um dos acidentes do verbo, assume claramente que é uma categoria formal e semântica.

A confusão não é apenas conceitual, mas também tipológica. Há autores que reconhecem dois tipos de voz, como Melo (1978), a ativa e a passiva, e Lima (1992) que identifica a ativa e a medial. Outrosque distinguem três, a exemplo de Cunha & Cintra (1985), a ativa, a passiva e a reflexiva. Almeida (1980), por seu turno, reconhece quatro: ativa, passiva, reflexiva e neutra.

O que falta a nossas gramáticas é explicitar critérios para a categoria de voz: formal, baseado nos morfemas verbais? sintático-semântico, fundado na estrutura argumental da frase? semântico, ancorado no papel semântico dos actantes?

Daí o objetivo do nosso artigo: propor uma tipologia coerente de vozes para o português. Poderíamos propô-la no nível da oração ou no nível da forma verbal, do que resultariam duas modalidades básicas: a verbal e a oracional (cf. Halliday, 1976). Para os nossos propósitos, restringimo-nos à primeira, mesmo porque é a mais difundida nas gramáticas escolares.

Para tanto, explicitaremos, em primeiro lugar, nossos pressupostos teóricos: as noções de signo e de valores de língua/valores de fala (cf. Hjelmslev, 1974 e Coseriu, 1979). Em seguida, analisaremos os desdobramentos destes pressupostos numa tipologia de vozes.

 

Pressupostos teóricos

Um dos pressupostos estruturais, infelizmente não levado até as últimas conseqüências pela maior parte dos lingüistas, é o princípio da funcionalidade, que se fundamenta no postulado da solidariedade entre o plano da expressão e o plano do conteúdo. É digno de atenção o termo solidariedade, porque é técnico: diz respeito a uma função entre uma constante e outra constante (cf. Hjelmslev, 1974). Quer dizer: um termo A pressupõe um termo B e um termo B, por seu turno, também pressupõe um termo A. Assim, quando dizemos que plano da expressão e plano do conteúdo são solidários, queremos afirmar que se pressupõem reciprocamente, instaurando a função signo, definida por Coseriu (1979: 60) nos seguintes termos: “a uma unidade de língua no plano da expressão, deve (em geral) corresponder uma unidade no plano do conteúdo diferente das outras unidades da mesma língua; e a uma unidade de conteúdo deve (em princípio) corresponder uma unidade de expressão”.

Corolário importante do postulado de solidariedade entre os dois planos é o princípio da oposição. Coseriu (1979: 71) esquematiza-o da seguinte maneira.

 

 

 


 

O princípio pode ser assim traduzido: “dadas duas unidades A e B compostas de mais de um elemento, e de tal modo que tenham uma parte comum (a), estas duas unidades se acharão em oposição uma com a outra e funcionarão como unidades independentes pelas partes que não possuem em comum (b e c)” (Coseriu, 1979: 71). Em outras palavras, o princípio nada mais é do que aquele saussuriano, segundo o qual: “o mecanismo lingüístico gira todo ele sobre identidades e diferenças, não sendo estas mais que a contraparte daquelas.”(Saussure, 1977: 126).

O princípio da oposição liga-se ao da comutação e ao da diferença entre língua e fala, ou entre valores de língua e valores de fala, sugeridos por Coseriu (1979) e definidos por Soares (1987), nos termos abaixo.

Uma forma lingüística possui um valor de língua quando apresenta significado próprio e meios formais para expressá-lo. Faz parte do sistema de oposições básicas da língua. É o significado da forma no contexto mínimo.

Os valores secundários [de fala] existem potencialmente numa forma, mas necessitam de contextos especiais para se atualizarem. (1987: 25)

Isto posto, passamos a discutir a questão das vozes verbais, tais como estabelecidas pela tradição.

 

Das vozes do verbo

A voz ativa

A voz ativa é a mais bem caracterizada em português, ainda que as gramáticas tradicionais a estabeleçam sobre alicerces semânticos, notadamente sobre o conceito de ação. Ora, a perserverarem os critérios baseados no significado, ter-se-ia que reconhecer outras vozes, como a estativa e a processual (em que o sujeito é afetado), mas isto demandaria ultrapassar os meios morfêmicos para acolher a relação entre o verbo e os argumentos. Diga-se de passagem que, sob o prisma sintático-semântico, a voz não se aplica apenas ao verbo, mas aos nomes, uma vez que estes também têm estrutura argumental. Assim, nos sintagmas o amadurecimento da fruta e a corrida dos atletas existem respectivamente voz processual e voz ativa, em termos sintático-semânticos. Privilégio do verbo é a voz marcada por meio de morfemas: desinências ou verbos auxiliares.

Do ponto de vista explicitado por nós na seção anterior, a voz ativa se manifesta por meio de desinências, como em durmo, trabalho, construo casas, isto exemplificando apenas com o presente do indicativo. Os conteúdos são distintos: o primeiro verbo é descritivo, o segundo, ativo tão somente e o terceiro, por fim, causativo, uma vez que envolve ação e resultado da ação. Da perspectiva que nós adotamos, não obstante as diferenças semânticas, as desinências são as mesmas. Se, para cada valor semântico, houvesse uma desinência específica, poder-se-iam distinguir várias outras vozes, mas, a despeito da diversidade no conteúdo referencial, ocorre a unicidade da expressão, que corresponde à forma do conteúdovoz ativa”.

A voz ativa pode também expressar-se por meio de auxiliares temporais (tinha feito, tinha dormido, tinha construído casas), aspectuais (estou fazendo, estou dormindo, estou construindo casas) e modais (posso fazer, posso dormir, posso construir casas).

 

Das vozes reflexiva, recíproca e média

Em português, a chamada voz reflexiva não tem meios de expressão de caráter morfêmico: desinências ou auxiliares. O que a caracteriza, segundo Macambira (1986), é a presença dos pronomes pessoais átonos correferenciais e susceptíveis de expansão por formas tônicas acompanhadas de preposição: a mim mesmo, a ti mesmo, a si mesmo etc. Ora, os pronomes não constituem morfemas adequados para indicar a voz. São formas dependentes, sujeitas, portanto, a sínclise, problemas de alomorfia à parte. A reflexidade decorre deles e/ou do contexto de situação, como o próprio Macambira (1986) assevera. Em o menino se feriu na cerca, pode haver duas interpretações: (1) o menino ficou ferido (acidentalmente) na cerca. (2) o menino se feriu a si mesmo (propositalmente) na cerca.

Se a frase estivesse no plural, os meninos se feriram na cerca, haveria três interpretações: (1) cada menino feriu-se a si mesmo (propositalmente) na cerca. (2) cada menino feriu um ao outro na cerca. (3) cada menino ficou ferido (acidentalmente) na cerca.

De nada adiantam os recursos estruturais indicados por Macambira (1986) para diferençar as três vozes ancoradas no pronome, a reflexiva, caracterizada      pela expansão referida; a recíproca, caracterizada pela expansão um ao outro/uns aos outros e a média, que é caracterizada pela ausência de qualquer expansão, ou seja, por um traço negativo. Além do fato de que os meios não são morfêmicos, há o fato de que o contexto de situação (que impõe valores secundários, de discurso) pode definir a que voz estamos nos referindo. A expansão é um tanto tautológica, pois decorre da prévia interpretação contextual.

Pelo que ficou exposto nesta seção, podemos constatar que a reflexividade, a reciprocidade e a “mediedade” não são mórfica ou sintaticamente vozes autônomas em português. Cabe apenas uma palavra tocante à voz média, chamada por muitos de voz neutra. As construções com esta voz correspondem freqüentemente a construções de caráter causativo: a porta se abriu/alguém ou algo abriu a porta. Cabem aqui algumas objeções: (1) o se não é permitido em muitos casos (ex.: o salário aumentou); (2) o se é facultativo em alguns casos (ex.: a porta abriu-se/a porta abriu-se). Além disso, nem sempre é possível a correspondência com a causativa. Se o fato é considerado espontâneo pelo falante, nãonecessidade de postular uma causativa correspondente. Em outros casos, não há nenhuma possibilidade de equivalência causativa em João se arrependeu. Em alguns outros, a presença do pronome não implica afetação do sujeito: João se queixa muito, o rapaz se afastou da casa.

Em suma, as vozes reflexiva, recíproca e média, de um ponto de vista formal, são subaspectos da voz ativa. As desinências são as mesmas, bem como os auxiliares, excluídos casos de restrição semântica ao emprego destes últimos. Apenas num ângulo sintático-semântico-discursivo se podem admitir subtipos de voz.

 

Da voz passiva

A voz passiva verbal é assentada em bases frágeis em português. Na lingüística estrutural, aqui representada por Camara Jr. (1979), a estruturabilidade da passiva é posta em xeque.

O que caracteriza, com efeito, a construção passiva depende exclusivamente do nome predicado, que aqui é o particípio perfeito de um verbo transitivo e não um nome adjetivo puro. Do ponto de vista oracional, tem-se o mesmo tipo de frase em: (a) os soldados foram punidos; (b) os soldados foram covardes. A diferença significativa está entre o adjetivo covardes, que expressa uma qualidade nominal, e o partícipio punidos, que tem força verbal e assinala uma atividade realizada.

Assim, a chamadavoz passiva em português não tem caracterização morfológica. (1979: 165).

Para o autor, trata-se de uma oração nominal, “que se obtém na base de uma oração ativa de verbo transitivo, isto é, um verbo indicador de uma atividade que parte de um ser sujeito e chega a um ser paciente.” (Camara Jr., 1979: 165).

A argumentação de Camara Jr. em favor da interpretação verbal da forma em –do é de natureza semântica: o particípio indicaria atividade. Nas entrelinhas, portanto, Camara Jr. admite uma categoria dupla, formalmente adjetivo e semanticamente verbo. Isto, porém, cria sérios obstáculos, porque, ao analisarmos uma frase com o chamado particípio, não sabemos se estamos lidando com verbo ou com nome. Deste modo, o SP que é actante da chamada forma participial, é complemento verbal ou nominal?

Cremos que a forma há de prevalecer, o que não implica refugar a interpretação verbal do derivado nominal. Não há, a nosso ver, outra interpretação possível para as formas em –do a não ser a adjetival. Estas, segundo sua natureza semântica, admitem formas superlativas, prefixais ou sufixais: João é estimadíssimo pela turma/João é superestimado pela turma. Outros argumentos há de natureza sintática e distribucional para mostrar a natureza adjetival da forma em –do. Comparem-se as seguintes frases: a notícia é falsa/a notícia é divulgada; o processo foi instrutivo/o processo foi instaurado.

O chamado apagamento do SP não é privativo das formas em –do. Consideremos os exemplos: o professor é útil (a alguém ou a algo)/os rapazes estão descontentes (com algo ou alguém).

Pode-se alegar que as formas em –do têm dupla leitura, como se pode depreender da frase a edição do livro foi reduzida, que pode ter, segundo Pimenta-Bueno (1986), leitura [+estativa] “a edição foi de poucos exemplaresou [-estativa] “a edição foi reduzida por alguém”. A leitura decorre de aspectos discursivos e/ou textuais. É importante registrá-la, obviamente, mas em outra perspectiva. Na língua, estamos perante o mesmo signo. Ademais, a duplicidade de leitura (não necessariamente estativo/não-estativo) pode ser atribuída a uma forma adjetival como bom, que pode ser interpretada como qualidade inerente, “estáticaou como qualidads que transita para alguém ou algo.

Um outro argumento, aduzido por Llhorach (1980: 170), merece ser considerado. Embora se refira ao espanhol, cremos que se aplica também ao português. Nas orações caracterizadas pela atribuição, sabe-se que o núcleo apenas admite um número e comutações limitado. Tais limitações são encontradas com os sintagmas chamados participiais: a casa é/está/parece/torna-se/fica velha; a casa é/está/parece/fica destruída.

Mesmo no gerativismo, as interpretações mudam, mesmo em pormenor, quanto à chamada passiva. Segundo Brito (1983: 334), o SV comporta, no esquema subjacente, um verbo de cópula e um adjetivo participial, o que significa admitir uma categoria dupla. , segundo Raposo (1992: 107), o SV, na estrutura-D, comporta um verboser, não caracterizado como cópula — e outro sintagma verbal, constituído de um verbo — o chamado particípioum SN e um SP, este último, o tradicional agente da passiva. Assim, na frase os discos foram comprados pelo Luís, a interpretação do SV seria:


 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

É estranho o tipo de SV referido por Raposo, constante de outro SV encaixado. Ademais não explica como uma forma flexionada à maneira de nome pode ser interpretada como verbo.

Lemle (1984: 124) interpreta o SV como constituído de verbo e sintagma adjetival, o que nos parece uma interpretação mais simples e coerente. Ressalte-se que Lemle não despreza a interpretação semântica dos adjetivos deverbais em –do, bem como a relação entre verbos e adjetivos (cf. Lemle, 1984: 123).

Caixa de texto: forma fonológica
VERBO
a                             b
a tem com b a relação z
Caixa de texto: forma fonológica + -do
ADJETIVO
b..._______________________
b revela o efeito de ter sido 
afetado pela relação z

 

 

 

 

 

 


 

Considerações finais

O que expusemos leva à conclusão inevitável de que, de um ponto de vista estrutural, baseado nos parâmetros que explicitamos nos pressupostos teóricos deste trabalho, a voz ativa é bem caracterizada em português. A reflexiva, a recíproca e a média são subaspectos da voz ativa, os quais podem naturalmente ser reinterpretados numa dimensão sintático-semântico-discursiva. Na chamada frase passiva, o que as gramáticas rotulam de particípio deve ser, por simplicidade teórica, considerado adjetivo.

Não consideramos, neste trabalho, as sérias restrições sintático-semânticas para a chamada voz passiva, que constituiriam, por si sós, assunto para um trabalho especializado. Porém, se as tivéssemos considerado, seríamos obrigados a dizer, com Vilela (1992: 56), que “a passivização apresenta tantas restrições que somos forçados a perguntar se a transitividade tem a ver apenas com o verbo ou, pelo contrário, se tem a ver com a frase total...”.

Por fim, resta observar que este trabalho deixou de lado a questão dos verbos de cópula, para os quais, a nosso ver, até o momento, não apareceram argumentos que consolidem, em bases mais confiáveis que as puramente semânticas, a existência dos mesmos, quanto ao número e aos tipos.

 

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