UMA QUESTÃO DE TERMINOLOGIA GRAMATICAL
A CLASSIFICAÇÃO DOS
MORFEMAS

Ana Paula Araujo Silva (UERJ)

 

Uma das características da linguagem humana é o que Martinet (1974: 11), lingüista francês, chamou de dupla articulação:

A linguagem humana é não somente articulada, mas duplamente articulada em dois planos, aquele em que, para usar os termos do falar cotidiano, os enunciados se articulam em palavras, e aquele em que as palavras se articulam em sons.

A primeira articulação tem como constituintes mínimos, segundo Martinet, unidades significativas, denominadas monemas: “monema é o menor segmento de discurso ao qual se pode atribuir um sentido” (Martinet, 1974: 13). A segunda, unidades distintivas (os fonemas). O lingüista francês reservou a denominação de morfemas para as unidades mínimas significativas gramaticais. As lexicais foram designadas lexemas. A nomenclatura das formas mínimas varia entre os autores. Pottier (1968: 53-4) usa o termo morfema como genérico; mantém a designação de lexemas, mas chama de gramemas os morfemas gramaticais. O lingüista brasileiro Câmara Jr. (1977: 91-3) adota a de Vendryes (1978: 91-2), que chama de semantemas as formas mínimas de valor lexical e de morfemas as de valor gramatical. Será, aqui, adotada a terminologia dos autores norte-americanos, que parece estar mais próxima dos hábitos didáticos brasileiros: morfema (termo geral), morfema lexical e morfema gramatical (cf. Azeredo, 2002: 69-71; Silva & Koch, 1997:12).

É comum o valor significativo dos morfemas, tanto lexicais quanto gramaticais, ser enfatizado. Câmara Jr. (2002: 218) afirma que os primeiros apresentam uma significação externa e os últimos, uma significação interna:

Ao lado da significação dos semantemas, dita significação externa, há para considerar a significação interna, ou gramatical, que se refere aos morfemas e pode ser categórica (indicativa de uma categoria gramatical) ou relacional (quanto à função do morfema como conectivo).

Coseriu (1978) define cinco tipos de significadoléxico, categorial, instrumental, estrutural e ôntico. O significado léxico é o correspondente, como a própria denominação evidencia, aos morfemas lexicais:

O significado léxico, que corresponde ao quê da apreensão do mundo extralingüístico; por exemplo, o significado que é comum a todas as palavras de cada uma das séries: quente calor esquentar, rico riqueza enriquecer, branco – brancura – branquear – *brancamente, e que, ao mesmo tempo, diferencia cada uma destas séries, como um todo, de outras séries do mesmo tipo. [1]

o significado dos morfemas gramaticais é denominado instrumental pelo autor:

O significado instrumental, ou seja, o significado dos morfemas, e, este, independentemente de serem palavras ou não; assim, por exemplo, o em o homem, tem o significado «atualizador», e –s, em mesa-s, tem o significado «pluralizador».[2]

Pena (2000), entretanto, critica a definição do morfema comounidade significativa mínima”, preferindo a de “unidade gramatical mínima”, ou seja, que não pode ser decomposta em outras, mas sem ser, necessariamente, significativa ou distintiva:

(...) a análise formal da palavra pode dar também como resultado unidades gramaticais mínimas carentes de significado. O que quer dizer que a definição do morfema comosigno mínimoouunidade significativa mínima’ resulta inadequada por ser demasiado restritiva e não poder assim caracterizar a totalidade das unidades obtidas na análise formal da palavra, relevantes em sua estrutura ou constituição morfológica.[3]

O autor espanhol cita as vogais temáticas e os interfixos como exemplos de unidades carentes de significado.

Assim, como frisa Pena (op. cit.), é preciso reconhecer que nem sempre o morfema é uma entidade de dupla face. Há morfema sem significante (morfema zero) e morfema sem significado.

A afirmação de que os morfemas são sempre significativos pode ser questionada se relacionarmos o significado ao conteúdo que o emissor acredita estar vinculando, e ao que o receptor entende. Ao dizer cantávamos, por exemplo, não faz parte do projeto de discurso comunicar que cantar é um verbo da primeira conjugação. Logo, a vogal temática verbal é um morfema sem significado.

O que Câmara Jr. (op. cit.) chama de significação interna e Coseriu (op. cit.) de significado instrumental parece ser, na verdade, a função dos morfemas gramaticais. Comparemos, por exemplo, as conjunções integrantes que e se (morfemas gramaticais). Ambas têm a mesma função, todavia, a primeira é semanticamente vazia enquanto a segunda expressa dúvida.

Após essas considerações, podemos afirmar que o morfema é a unidade mínima da língua que possui, em princípiomas não obrigatoriamente –, significante e significado.

 

ALGUNS CONCEITOS BÁSICOS
PARA A ANÁLISE MÓRFICA

O método utilizado na análise mórfica (depreensão dos morfemas) é a comutação, que consiste na substituição de elementos a partir da qual resulta um novo vocábulo. Câmara Jr. (1996: 72-3) exemplifica a comutação com o vocábulo falamos:

A primeira comutação que ocorre é um zero (Æ), que nos dá o vocábulo fala. Como passa então a se tratar de outra pessoa gramatical (a 3a pessoa do singular), concluímos que –mos é que é o morfema da 1a pessoa do plural, ou 4a pessoa gramatical. Por outro lado, a comparação de falamos, como falávamos, faláramos, falaremos e falaríamos, indica um presente e um pretérito com morfema zero e dois outros pretéritos, com morfemas -va- e -ra-, respectivamente, e com dois futuros, respectivamente, de morfemas -re- (tônico) e -ria- (com tonicidade no /i/). (...) O primeiro elemento indivisível, comum a todas as formas de cada um dos verbos, é o morfema lexical, em que se concentra a significação específica do ato que o verbo expressa: fal-, em falamos, referente a uma atividade vocal distinta da de cantamos (morfema lexical cant-), ou da de gritamos (morfema lexical grit-) (...).

É necessário associar à comutação o critério semântico para, por exemplo, verificar se um segmento fônico corresponde, realmente, a um morfema. Em onipotente (oni- + potente), onisciente (oni- + ciente), onipresente (oni- + presente) e onívoro (oni- + -voro), por exemplo, oni- é um morfema lexical. Em ônibus, no entanto, é apenas uma seqüência de fonemas, uma vez que ônibus é uma palavra simples. No estágio atual da língua nãocomo pensar em uma divisão ôni- + -bus. O vocábulo bus[4] até existe em português, mas em nada se relaciona com ônibus. O critério semântico é importante também para o reconhecimento da homonímia em pares como casocasa. A homonímia pode abranger todos os morfemas de uma palavra como em canto (“ângulo”) e canto (“ato de cantar”). No último caso, conforme explica Câmara Jr. (1977: 95), “é o contexto ou a situação que identifica a forma (cf. ‘a cadeira estava num canto’, ‘aprecio o canto de Gigli’)”.

É preciso ressaltar quemorfemas que não podem ser depreendidos diretamente pelo método da comutação. Podemos citar as vogais temáticas como exemplo, visto que da troca de uma vogal temática nominal ou verbal por outra resulta, na maioria das vezes, uma forma inexistente (mes/a, *mes/o, *mes/e; grit/a/r, *grit/e/r, *grit/i/r).

 

ALOMORFIA

Alomorfia é a variação de um morfema sem mudança no seu significado. Em infeliz e imutável, por exemplo, tanto in- quanto i- indicam negação. Para se estabelecer a forma básica, utilizam-se dois critérios (Kehdi, 2002: 20-1): o estatístico (qual das variantes é a mais freqüente) e o da regularidade (caso os alomorfes apresentem a mesma freqüência). Voltando ao exemplo acima, como i- ocorre diante de determinadas consoantes (l-, m- e r-), in- será considerada a forma básica. No caso dos morfemas de modo e tempo no futuro do presente do indicativo (-ra- e -re-), é necessário utilizar o segundo critério, visto que ambos ocorrem com a mesma freqüência (três vezes). Como, estatisticamente, os morfemas modo-temporais apresentam, no português, a forma básica em –a e a variante em -e, têm-se -ra- como forma básica e -re- como variante. Kehdi (op. cit., p. 22) mostra ainda que, havendo uma forma isolada e outra que ocorra junto a um novo elemento, a primeira deve ser considerada a forma básica. Cita o autor chapéu e chapel- (em chapelaria e chapeleiro) como exemplos.

Vejamos ainda a diferença entre morfema e morfe. Para alguns autores (cf. Silva & Koch, op. cit., p. 26-7), o primeiro é uma entidade abstrata e o segundo, sua concretização. Assim, retomando os exemplos infeliz e imutável, há, na verdade, um morfema de negação que se realiza através dos morfes in- ou i-. Todavia, para maior simplicidade na descrição, não haverá, aqui, rigor na distinção entre os termos morfema e morfe, sendo considerada a forma básica o morfema, e as demais, alomorfes.

 

CUMULAÇÃO

Entende-se por morfema cumulativo aquele que traz em si mais de uma noção gramatical. Em português, as desinências modo-temporal e número-pessoal são morfemas cumulativos. Em cantávamos, por exemplo, o morfema -va- traz a noção de modo (indicativo), tempo (pretérito) e ainda aspecto (imperfeito ou inconcluso). o morfema -mos indica o número (plural) e a pessoa (primeira).

 

SUPERPOSIÇÃO

Nem sempre os autores distinguem a cumulação da superposição. A diferença entre os dois fenômenos está no fato de o primeiro ocorrer em qualquer contexto e o segundo, apenas em determinados contextos. Assim, ao analisarmos diversas formas verbais, percebemos que as noções de número e pessoa bem como as de tempo, modo e aspecto são sempre representadas por uma única forma, ou seja, nãoforma verbal em que o número seja indicado por um morfema e a pessoa por outro. O mesmo ocorre com o tempo, o modo e o aspecto. No entanto, em formas como cantaste e cantastes os morfemas número-pessoais -ste e -stes marcam também tempo, aspecto e modo (pretérito perfeito do indicativo) e são, por isso, considerados morfemas superpostos.

 

NEUTRALIZAÇÃO

Há neutralização quando a oposição distintiva entre dois morfemas deixa de existir pelo aparecimento de um morfema único. Câmara Jr. (1996: 74) cita dois exemplos de sua ocorrência no plano mórfico. Na 3ª pessoa do plural, ocorre a neutralização, apenas no plano formal, entre o pretérito perfeito e o mais-que-perfeito (falaram, venderam, partiram). O autor propõe duas maneiras de resolver a ambigüidade causada pela neutralização mórfica: o paradigma (falou x falaram / falara x falaram) e o contexto da comunicação (os pretéritos perfeito e mais-que-perfeito são empregados em diferentes tipos de frase). em teme e parte, por exemplo, a indistinção entre a 2ª e a 3ª conjugação é conseqüência de uma neutralização fonológica.

Bechara (2001: 345), no entanto, discorda que o primeiro exemplo citado seja um caso da neutralização. Para o autor, há sincretismo, uma vez que não ocorre suspensão da oposição entre pretérito perfeito e mais-que-perfeito em contexto algum:

Não se há de confundir neutralização e sincretismo. A neutralização, (...), é a suspensão, em determinado contexto, de uma oposição funcional que existe na língua em um dos seus dois planos: o da expressão ou do conteúdo.

O sincretismo, por seu turno, é a ausência de manifestação material, numa seção de um paradigma ou em um paradigma, de uma distinção de conteúdo que, em outras seções do mesmo paradigma ou em outros paradigmas análogos, se manifesta também materialmente (...) haverá sincretismo, e não neutralização, em falaram como forma da 3ª pessoa do plural do pret. perf. e do pret. mais-que-perfeito do indicativo [grifo nosso], oposição recuperada na forma de 3ª pessoa do singular (falou/falara) e ainda pelo contexto.


 

TIPOS DE MORFEMAS

Os morfemas podem ser divididos em lexicais e gramaticais, conforme abordado no início deste artigo. Os primeiros apresentam o significado básico da palavra, representam elementos externos à língua e pertencem a uma lista aberta, pois podem ser criados a qualquer momento. Os últimos, por outro lado, servem à gramática da língua e pertencem a uma lista fechada, sendo criados ao longo de muito tempo. Em cantávamos, por exemplo, há um morfema lexical (cant-) e três morfemas gramaticais (-a-, -va- e -mos).

O morfema lexical corresponde ao radical de uma palavra. É importante contrastarmos os termos raiz e radical. Ambos constam na NGB. Há alguns autores que os tomam como sinônimos; outros que empregam o primeiro no sentido diacrônico e o último no sincrônico; e ainda outros que se referem à raiz como o radical primário de uma palavra, ou seja, o segmentoirredutível a que se chega dentro da língua portuguesa e comum a todas as palavras de uma mesma família” (Bechara, op. cit., p. 341).

Os morfemas gramaticais podem ser subdivididos em classificatórios, relacionais, categóricos e derivacionais, de acordo com sua função.

Os morfemas classificatórios são, geralmente, denominados vogais temáticas[5]. Subdividem-se em nominais (-a, -e, -o[6]) e verbais (-a, -e, -i).

discordância quanto à classificação do morfema átono final de nomes masculinos que apresentam um par opositivo como menino (x menina) e gato (x gata). Para alguns autores o morfema -o de menino e de gato é uma vogal temática; para outros, é marca nítida de gênero, assim como o morfema -a do feminino (cf. Silva, 2004: 47-63).

Os substantivos terminados em vogal tônica (como café, saci e bambu) são considerados atemáticos[7]. Os terminados em consoante também podem ser assim considerados. Muitos autores, no entanto, preferem postular uma vogal temática teórica (*-e), que reaparece no plural (mares = *mare + s). Parece-nos, sincronicamente, mais coerente considerar -es um alomorfe da desinência de número -s e mar uma forma atemática. Além disso, esta opção sincrônica de análise evita abstrações; nela, nãotemas teóricos que não existem como palavras. Há de se admitir neste caso, obviamente, um alomorfe -es da desinência de plural -s.

Cada um dos morfemas classificatórios verbais agrupa os verbos em uma determinada conjugação verbal. Assim, cantar pertence à 1a conjugação; vender, à 2a; e partir, à 3a. Como as vogais temáticas não acrescentam nenhum significado ao vocábulo, não acordo entre os lingüistas a respeito de sua inclusão entre os morfemas. Esse fato, todavia, não pode ser um obstáculo para a inclusão das vogais temáticas entre os morfemas, uma vez que, conforme abordado anteriormente, nem sempre o morfema é uma entidade de dupla face.

Ao compararmos as vogais temáticas nominais e verbais, percebemos que estas dividem os verbos em grupos que se flexionam de maneira distinta, enquanto aquelas não desempenham essa função tão claramente. Que diferenças flexionais há entre os nomes terminados em -o, -a e -e?

Henriques (2002: 17) apresenta, como principal motivo para as vogais temáticas nominais serem reconhecidas, sua função de “viabilizar o radical como vocábulo, para uns; formar o tema para outros”. No artigo "Atualizadores léxicos", Carvalho (1973: 49-60) questiona a função das vogais átonas finais dos nomes, apresentando um minucioso levantamento a fim de esclarecer a relação entre essas vogais e o gênero. O autor conclui que os substantivos terminados em -o são, predominantemente, masculinos, que a terminação -a é característica de elementos da classe do feminino e que o morfema -e é indiferente à categoria de gênero. Entretanto, há um bom número de substantivos de dois gêneros (guia, vigia, acrobata, autodidata etc.) ou masculinos (dia, mapa, papa, patriarca, entre outros) em -a. Dentre os primeiros, muitos podem funcionar como adjetivos (poliglota, homicida, carioca etc.). Em relação aos substantivos em -e, podem alguns, referentes a seres animados, opor-se a um feminino em -a (mestre – mestra, infante – infanta).

Salvo raras exceções, Carvalho (op. cit., p. 58) constata que, em português, os nomes no singular terminam em vogal. Quanto aos terminados nas consoantes -s, -z, -r ou -l, o autor se posiciona a favor da postulação de um morfema vocálico latente -e, que se torna patente no plural (cor / cores, paz / pazes)”[8]. Acredita, assim, que a função primária dos morfemas nominais -e, -o e -a é permitir que o conjunto de formantes léxicos (denominado tema pelo autor) “seja integrado no léxico, atualizado com um dos seus elementos (primeira atualização da palavra), e em seguida realizado concretamente no discurso (segunda atualização)”. Propõe, então, a denominação de “atualizadores léxicos”, termo que representaria a verdadeira função desses morfemas. Ressalta também que -o e -a podem, secundariamente, indicar o gênero.

Os morfemas relacionais têm a função de conectar palavras e/ou orações. Subdividem-se em preposições, conjunções, verbos auxiliares e pronomes relativos. Essa não é, no entanto, a única proposta de análise desses vocábulos. Azeredo (op. cit., p. 210-2), dentre outros, considera preposições, conjunções adverbiais e integrantes e pronomes relativos, bem como advérbios interrogativos, pronomes indefinidos[9] e desinências aspectuais, transpositores, ou seja, instrumentos da transposição, que é o “processo pelo qual se formam sintagmas derivados de outras unidades, as quais podem ser sintagmas básicos ou orações” (Azeredo, op. cit., p. 211). Os sintagmas formados pelas preposições substituem ora os sintagmas adjetivais (líquido sem cor / líquido incolor) ora os adverbiais (agiu com prudência / agiu prudentemente). As orações introduzidas por conjunções integrantes (Ele sabe que os meninos se escondem . / Ele sabe o esconderijo dos meninos.), advérbios interrogativos (Vi como ele chegou. / Vi sua chegada.) e pronomes indefinidos (Todos sabem quanto custou a casa. / Todos sabem o preço da casa.) formam sintagmas nominais. As introduzidas por conjunções adverbiais formam sintagmas adverbiais (Ele saiu quando ela ligou). os pronomes relativos iniciam orações que funcionam como sintagmas adjetivais (Não comprei a roupa que vi na loja. / Não comprei a roupa vista na loja.). As desinências aspectuais –r, –ndo e –do formam, respectivamente, o infinitivo, o gerúndio e o particípio dos verbos (cantar, cantando e cantado).

Os morfemas categóricos não criam palavras novas. São chamados também de morfemas flexionais e servem para indicar as categorias gramaticais próprias dos nomes (gênero[10] e número) e verbos (modo, tempo, aspecto, número e pessoa). Os morfemas -s de casas e -mos de cantamos são exemplos de morfemas categóricos; o primeiro marca o plural, e o segundo traz a noção de número (plural) e pessoa (primeira).

Os morfemas derivacionais criam novas palavras na língua a partir do morfema lexical e podem ser divididos em prefixos, sufixos, infixos, interfixos, circunfixos e confixos[11], de acordo com a posição em que se juntam à base.

Os prefixos se antepõem à base (infeliz) enquanto os sufixos vêm após esta (felizmente). Entretanto, prefixos e sufixos se diferenciam não somente pela posição em que se juntam à base para formar um novo vocábulo. Os sufixos não ocorrem independentemente na língua, emprestam uma idéia acessória ao vocábulo a que se juntam e determinam a classe a que este pertence (o sufixo –dade, por exemplo, forma substantivos abstratos a partir de adjetivos: igualdade, crueldade etc.). Na prefixação, nãomudança na classe da palavra. Os prefixos podem ser de dois tipos: os que são meras partículas, sem existência própria na língua (como re- em refazer) e os que costumam funcionar também como palavras independentes (contra- em contradizer, por exemplo). Alguns autores preferem considerar o último caso como um exemplo de composição, apontando para a natureza lexical dos prefixos. Monteiro (2002: 139) faz um breve confronto entre as duas posições e constata uma acentuada tendência para se incluir a prefixação no mecanismo da derivação. Em seguida, o autor propõe a solução que parece ideal para esse impasse – a prefixação é um tipo de derivação, mas devem ser retirados do rol dos prefixos elementos como extra, contra e super, usados freqüentemente como formas livres (preposições nocionais ou advérbios).

Os infixos se intercalam, geralmente, dentro da raiz. Alguns estudiosos de nossa língua defendem a existência desse afixo em português, enquanto outros refutam tal idéia. Monteiro (op. cit., p. 62-3) expõe a defesa dos infixos no português e cita exemplos como pinicar e cineminha. Bechara (op. cit., p 339) assegura que “o que se costuma apontar como infixos não interessa à gramática descritiva portuguesa” e ressalta que os elementos de ligação, vogais e consoantes, não devem ser confundidos com infixos por serem facilitadores da pronúncia desprovidos de significado.

Os interfixos servem de ligação entre o radical e um sufixo ou entre dois radicais de um composto (glorificar, filósofo), mas podem ser interpretados como integrantes “de um conglomerado de sufixosoucomo resultado de um alongamento de sufixo” (Bechara, op. cit., p. 340).

Como se , nãoconsenso entre os autores na análise das chamadas vogais e consoantes de ligação. Alguns preferem interpretá-las como morfemas independentes, apesar de não apresentarem significado. Outros optam por incorporá-las aos radicais que as antecedem ou aos sufixos que as seguem.

Monteiro (op. cit., p. 59-62) as analisa como morfemas independentes, alegando não haver critério definido para a incorporação das vogais e consoantes de ligação a outro morfe e chamando a atenção para o crescimento do número de alomorfes caso não se admitam os interfixos como morfes segmentáveis. Apesar das alegações do autor, parece ser mais vantajoso para a descrição interpretar, sempre que possível, as ditas vogais e consoantes de ligação como último segmento fônico do radical ou primeiro do sufixo, uma vez que morfemas sem significado são formas atípicas, e uma boa descrição deve reduzi-las ao mínimo necessário.

Os circunfixos caracterizam-se como afixos descontínuos por serem aplicados simultaneamente à base dando origem a formações parassintéticas (entardecer). Na verdade, o conceito de derivação parassintética varia entre os estudiosos. Para alguns, basta haver prefixo e sufixo no derivado para que ele seja considerado parassintético (como em infelizmente). Para outros, o acréscimo dos afixos deve ser simultâneo, de tal modo que não existirá na língua a forma somente com prefixo ou sufixo como anoitecer (não existem as formas *anoite nem *noitecer). Bechara (op. cit., p. 343) aponta ainda uma terceira análise que nega a existência desse processo de formação de palavras e, conseqüentemente, dos circunfixos:

Pode-se ainda entender que, a rigor, não existe a parassíntese, se partirmos do fato de que, numa cadeia de novas formações, não poucas vezes ocorre o pulo de etapa do processo, de modo que virtualmente no sistema exista a forma primitiva. Assim, para se chegar a farmacolando, parte-se de um virtual *farmacolar semelhança de doutorar em relação à doutorando), ou, para prefeitável, de um virtual *prefeitar (...).

A segunda análise parece ser a mais adequada, uma vez que a primeira não leva em conta a noção dos constituintes imediatos, e a terceira lida com formas teóricas.

Fechando o quadro de morfemas derivacionais, temos os confixos, formas que aparecem combinadas com outros elementos. Monteiro (op. cit., p. 53; 65) aponta como exemplos as formas, citadas por Martinet, poli- e -edro, que aparecem em combinações como poliedro, polígono e tetraedro.

Os morfemas também podem ser classificados, do ponto de vista do significante, em aditivos, subtrativos, alternativos e zero. Não serão incluídos aqui os morfemas reduplicativos nem os de posição, uma vez que os primeiros podem, em nossa língua, ser analisados como um recurso de caráter expressivo, e os últimos situam-se entre a Morfologia e a Sintaxe. (cf. Kehdi, op. cit., p. 45-7).

Os morfemas aditivos são os mais produtivos na língua portuguesa e consistem em segmentos que se acrescem a um radical[12]. Podem exprimir uma indicação gramatical ou formar uma nova palavra.

Temos um morfema subtrativo quando a indicação gramatical se dá pela supressão de fonemas como em réu, órfãoórfã e irmãoirmã. Nos dois últimos casos, Bechara (op. cit., p. 35), entre outros, prefere considerar que há supressão da vogal temática, acréscimo de –a e posterior crase: “irmãoirmã(o) + airmãa irmã (por crase)”.

Os morfemas alternativos ou de alternância resultam da troca de fonemas que ocorre dentro do morfema lexical. A alternância pode ser apenas um morfema redundante (ou submorfema). É um morfema quando ocorre como única marca da noção gramatical a se expressar como em avôavó. Por outro lado, quando apenas reforça uma noção gramatical indicada por um morfema segmental, é um submorfema. Em porco porca, por exemplo, a oposição entre masculino e feminino é apenas reforçada pela alternância entre o timbre fechado e o aberto.

Por fim, morfema zero (Ø) é, como definiu Câmara Jr. (1996: 72), “a ausência de um morfema, num dado vocábulo, que aparece noutro vocábulo e estabelece com o primeiro uma oposição significativa”. Há, no vocábulo cantava, um morfema número-pessoal zero que o opõe, por exemplo, a cantávamos (morfema número-pessoal -mos) e, em casa, um morfema de número zero que o opõe a casas (morfema de número plural –s).

Ressaltando que o intuito deste trabalho não foi abranger todas as classificações dos morfemas, mas apresentar um quadro coeso e possível de classificação, além de contribuir na reflexão sobre o conceito de morfema, finalizamos aqui este artigo, esperando ter alcançado nosso objetivo.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VENDRYES, Joseph. Le langage: introduction linguistique a l’histoire. [?] ed. Paris: Albin Michel, 1978.


 


 

[1] “El significado léxico, que corresponde al qué de la aprehensión del mundo extralingüístico; por ejemplo, el significado que es común a todas las palabras de cada una de las series: caliente – calor – calentar, rico riqueza enriquecer, blanco – blancura – blanquear – blancamente, y que, al mismo tiempo, diferencia a cada una de estas series, como un todo, de otras series del mismo tipo.” (Coseriu, op. cit., p. 136-7)

[2] “El significado instrumental, es decir, el significado de los morfemas, y, ello, independientemente de si son palabras o no; así, por ejemplo, el en el hombre, tiene el significado «actualizador», y –s, en mesa-s, tiene el significado «pluralizador».” (Coseriu, op. cit., p. 137)

[3] “(...) el análisis formal de la palabra puede dar también como resultado unidades gramaticales mínimas carentes de significado. Lo que quiere decir que la definición del morfema comosigno mínimo’ o ‘unidad significativa mínima’ resulta inadecuada por ser demasiado restrictiva y no poder así caracterizar la totalidad de las unidades obtenidas en el análisis formal de la palabra, relevantes en su estructura o constitución morfológica.” (Pena, op. cit., p. 4320)

[4] O Dicionário Aurélio eletrônico - séc. XXI diz: substantivo masculino (“coisa nenhuma”) e pronome indefinido (“nada”). Reconheçamos, porém, o uso popular de "bus", isoladamente, como sinônimo de "ônibus", o que pode ser explicado como um caso de abreviação ou mesmo como uma incorporação da forma inglesa – a despeito de o empréstimo ter origem no francês (voiture omnibus), segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.

[5] A chamada vogal temática nominal também pode ser representada por uma semivogal; por isso, alguns autores preferem utilizar o termo índice temático. É preciso ressaltar, no entanto, que o termo vogal abrange, em um sentido amplo, tanto vogais quanto semivogais.

[6] Em alguns poucos vocábulos, a vogal temática pode ser representada pelo grafema -i (júri, táxi) e pelo grafema -u (chapéu e nau).

[7] Tema = radical + vogal temática.

[8] A explicação "estar latente" é também sincrônica. Dizemos que a posição de outros estudiosos é de base diacrônica pressupondo uma relação com os nomes da 3a declinação do latim.

[9] Azeredo (op. cit., p. 125) classifica como indefinidos os pronomes qual, quanto, que, o que e quem que introduzem frases interrogativas e exclamativas comoQual de vocês pode me acompanhar?” e “Quem diria!”.

[10] Para alguns autores, os substantivos não apresentam flexão de gênero (cf. Silva, 2004: 26-38).

[11]ainda os transfixos, morfemas derivacionais que se inserem em mais de um ponto na raiz. No entanto, é ponto comum entre gramáticos e lingüistas o fato de tais afixos não ocorrerem em nossa língua (cf. Monteiro, op. cit., p. 53).

[12] Rosa (2002: 51) considera o próprio radical um morfema aditivo.