A ABSTRATIZAÇÃO E A BASE EXPERIENCIAL HUMANA
NO PROCESSO DE CATEGORIZAÇÃO
BREVES REFLEXÕES

Ivone Silva Nóbrega (UFF)

Introdução

O objetivo deste trabalho é propor uma breve discussão teórica acerca das relações entre as categorias lingüísticas, as categorias cognitivas e os possíveis envolvimentos de processos metafóricos – aqui entendidos como transferência ou extensão de significado – e de fatores li– gados à experiência humana.

Lançando mão de alguns conceitos do funcionalismo, na sua base cognitivista, e do con-fronto da visão de alguns autores, buscamos traçar paralelos entre as representações concep-tuais e as perceptuais da categorização lingüística.

Arbitrariedade X Motivação: a relação entre língua e cultura

A língua constitui um campo de estudo dentro do qual o objeto pode ser definido ou de– lineado pelo próprio observador, dependendo da perspectiva assumida. Tal fato pode ser per-cebido na visão das duas grandes linhas de pesquisas que se destacam dentro dos estudos lin-güísticos: o Formalismo e o Funcionalismo.

O Formalismo, como nos lembra Martelotta et alii (2003: 20): “ (...) caracteriza-se, em termos gerais, pela tendência a analisar a língua como um objeto autônomo, cuja estrutura In– depende de seu uso em situações comunicativas reais”. Dentro dessa perspectiva, entende-se a expressão do pensamento como a principal “função” da língua e o estudo da competência como tendo prioridade sobre o estudo da atuação, isto é, do uso efetivo que se faz da língua nos mais variados contextos.

Numa visão funcionalista, a língua é entendida como um instrumento “maleável” de co– municação e sujeito às pressões do uso. Percebe-se uma rede de relações, nas quais as estrutu– ras aparecem como uma interpretação dessas mesmas relações. Dik Apud Neves (2001: 46) contrapõe o paradigma formal ao funcional, enfatizando que, no paradigma funcional, “ (...) a pragmática é vista como o quadro abrangente no qual a semântica e a sintaxe devem ser estudadas. A semântica é instrumental em relação à pragmática e a sintaxe é instrumental em relação à semântica”.

Macedo (1998: 71-72) coloca que o funcionalismo tem:

(...) sua origem na antropologia, nos trabalhos de Malinowski (1922) e Radcliffe Brown (1952), que, por sua vez, foram influenciados por Durkheim (1984). Tais autores iniciaram uma reação ao evolucionismo (...) que (...) representava o paradigma predominante até mesmo para as ciências humanas e sociais. Na Antropologia, os evolucionistas admitiam que o homem primitivo se aperfeiçoa, biológica e social-mente, até o estágio civilizado. Os trabalhos de Malinowsky e Radcliffe Brown mu– daram o paradigma evolucionista e revolucionaram a área. Quando passaram a estu-dar os fatos culturais de cada grupo em relação às próprias instituições desse grupo, na verdade eles se tornaram os precursores da chamada antropologia moderna.

Malinowski procurou “ (...) explicar cada fato culturalmente em função de outras estrutu– ras sociais mais abrangentes” (Ibidem, p. 72). É o que Macedo (1998) chama de “postura teleológica” (anali– sa e explica uma coisa em função de outra: “Cada fato social foi explicado por Malinowski por sua função de satisfazer às necessidades humanas (...)” grifo nosso. (Ibidem, p. 72). Para Malinowski, to– dos os fatos sociais tinham uma função determinada.

Dentro desse pensamento, a língua aparece ligada a atitudes práticas do homem em re-lação ao mundo, isto é, “O sentido das palavras deveria ser extraído a partir de seus usos, sen-do a função fundamental da língua não a expressão do pensamento, mas sim a sua função en– quanto meio de comunicação”. (Ibidem, p. 72).

Voltando à consideração da pragmática como um quadro geral dentro o qual a semântica e a sintaxe devem ser estudadas, podemos constatar em Neves (2001: 15) que:

Quando se diz que a gramática funcional considera a competência comunicativa, diz-se exatamente que o que ela considera é a capacidade que os indivíduos têm não apenas de codificar e decodificar expressões, mas também de usar e interpretar es-sas expressões de uma maneira inteiracionalmente satisfatória. Lembre-se que a ex-pressão competência comunicativa é geralmente relacionada com Hymes (1974), que justamente propunha acrescentar ao processo tradicional de descrição grama-tical a descrição das regras para o uso social apropriado da linguagem.

Podemos pensar que “um uso social apropriado da linguagem” apontaria para a concep– ção da língua como instrumento da interação verbal, considerando-se que, nessa interação, es– tariam envolvidos elementos como, por exemplo, as informações pragmáticas do falante e do ouvinte. A pragmática, aqui entendida como o conhecimento de mundo trazido pelo falante e pelo ouvinte, aparece como importante fator na constituição das expressões lingüísticas. Nas palavras de Neves (2001: 21): “ (...) as regras pragmáticas (que governam os padrões de inte– ração verbal em que essas expressões lingüísticas são usadas)”.

Abstratização e Gramaticalização

Segundo Martelotta Apud Abraçado:

A metáfora constitui um processo unidirecional de abstratização crescente, pelo qual conceitos que estão próximos da experiência humana são utilizados para expressar aquilo que é mais abstrato e, conseqüentemente, mais difícil de ser definido. A me-tonímia diz respeito aos processos de mudança por contigüidade, no sentido de que são gerados no contexto sintático, grifo nosso. (Martelotta et alii 1996: 54).

Percebe-se a questão da “experiência humana”, discutida de forma geral no capítulo an– terior, como ponto de partida para a formulação de conceitos “menos concretos”, isto é, conceitos que estariam mais distantes daquilo que, em princípio, consideramos como sendo “mais concreto”, ou mais próximos da nossa “realidade”. Também Neves (2001: 99) afirma que:

(...) num modelo cognitivista da gramática se supõe que a estruturação das catego-rias lingüísticas se faz dentro dos mesmos princípios que orientam a estruturação de toda as categorias humanas, por exemplo as perceptuais, grifo nosso.

Podemos dizer que os dois autores pensam a experiência como um importante fator na transferência de elementos do domínio do mundo real para o mundo abstrato. Em termos cog– nitivos, como afirma Heine et alii Apud Martelotta, podemos conceber uma escala de domí– nios de conceptualização do tipo: pessoa > objeto > atividade > espaço > tempo >qualidade. Quanto aos elementos dessa escala, comenta Martelotta (1996: 50): “A relação entre eles é metafórica, o que significa dizer que qualquer um deles pode ser usado para conceptualizar qualquer elemento à sua direita”.

Lembra-nos, ainda, o referido autor, que se trata de uma tabela unidirecional, na qual dados mais concretos e mais fáceis de serem conceptualizados são utilizados para expressar noções mais abstratas.

Abstratização, então, pode ser interpretada como uma possibilidade de se considerar a existência de itens lingüísticos portadores de significados mais concretos e outros portadores de significados menos concretos na língua, a exemplo do que acontece na escala de domínios de conceptualização de Heine et alii, citada há pouco. Dentro desse pensamento, muito opor– tunamente nos lembra Neves (2001: 131):

(...) o trabalho Sapir (1921), que relaciona quatro tipos de conceitos lingüísti-cos, que vão desde o tipo concreto (que inclui objetos, ações e qualidades) até um tipo puramente relacional, passando por um tipo menos concreto, mas ainda com conteúdo material, e por um tipo já relacional, mas ainda não puramente abstrato.

A visão funcionalista, conforme já foi comentado, admite a não-autonomia da língua, ou seja, a possibilidade de a língua estar sujeitas às pressões do uso. Dentro dessa perspectiva, podemos falar num fenômeno chamado de gramaticalização, que é definido nas palavras de Hopper & Traugott Apud Neves (2001: 115): “ (...) como o processo pelo qual itens e cons– truções gramaticais passam, em determinados contextos lingüísticos, a servir a funções gra-maticais, e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais” (Ibidem, p. 115). Trata-se de um fenômeno de mudança lingüística que pode compreender várias trajetórias, dentre elas, como afirma Martelotta et alii (1996: 47):

a) A trajetória de elemento lingüístico do léxico à gramática, que compreende, por exemplo, a passagem de verbo pleno a verbo auxiliar, como ocorre com o verbo de movimento ir (de perto para longe do falante), que passa a designar futuro como auxiliar

b) A trajetória de vocábulo a morfema, que ocorre, por exemplo, com a passagem amar + hei > amarei e tranqüila + mente > tranqüilamente

c) A trajetória de elemento lingüístico da condição de menos gramatical (ou menos regular) para mais gramatical (ou mais regular), como acontece, por exemplo, com seja > seje e menos > menas, por influência forte da analogia.

Nesse processo de mudança, admite-se que um item lingüístico possa exercer funções específicas num dado contexto. A gramática da língua está, então, sujeita às pressões do uso efetivo que o usuário faz dessa mesma língua – o falante tem a capacidade de usar as expres– sões lingüísticas de uma maneira interacionalmente satisfatória.

Não há, entretanto, um consenso acerca dos processos da gramaticalização, como nos alerta Martelotta et alii (1996: 53):

Heine et alii, por exemplo, falam em transferência metafórica, Lehmann (1991), a-ponta a importância da analogia no processo (...) Em Traugott e König (1991) lê-se que o tipo de mecanismo que efetua a gramaticalização depende da natureza particu-lar da função envolvida no processo (...) Já em Hopper e Traugott (1993), vê-se uma tendência a considerar a transferência metonímica, e não a metafórica, e a reanálise, e não a analogia, os mecanismos que predominam maciçamente na mudança por gramaticalização. E Givón (1995), ao analisar o grau de integração entre cláusulas cita o processo de reanálise (Ibidem, p. 53).

Pensamos que a presença da abstratização no processo não deve ser ignorada e concor– damos com Neves (2001: 135), que se trata de:

(...) uma extensão gradual do uso de uma entidade original. Dois mecanismos estão aí envolvidos: transferência conceptual (que é metafórica e se relaciona com diferen-tes domínios cognitivos) e reinterpretação induzida pelo contexto (que é metoními-ca e resulta em conceitos inter-seccionados.

Acreditamos que podemos pensar a gramaticalização como um processo metafórico, no sentido que envolve uma abstratização, isto é, um caminho que aponta para aquilo que é mais abstrato. Nas palavras de Martelotta et alii (1996: 49), comentando a respeito do realismo ex-periencialista de Johnson (1987):

(...) o pensamento inicialmente trabalha com conceitos adquiridos pelo contato com o mundo concreto. O sistema conceptual que emerge dessa experiência serve de base para a compreensão de uma realidade mais abstrata que constitui o mundo das idéias. É a metáfora que permite que o homem compreenda o mundo das idéias em função do mundo concreto.

A gramaticalização, então, no aspecto que diz respeito à abstratização, pode sofrer influ– ência da base experiencial que envolve a metáfora, comentada no capítulo anterior. Se o usuário da língua faz uso do real e do mais concreto para significar, entender e interpretar idéias mais abstratas, parece lógico que toda a “bagagem” trazida por esse usuário estará concorren– do no processo de abstratização, incluindo suas experiências psicólogicas, culturais e até mes– mo suas experiências com o ambiente em que vive. Martelotta (1996: 51) alerta para um aspecto muito interessante e esclarecedor: “O fato que se manifesta de modo universal nas lín– guas humanas de que, por exemplo, partes do corpo se gramaticalizam em objetos e noções espaciais, em noções temporais, e não vice-versa, demonstra que a gramaticalização tende a se processar num crescente de abstraticidade”.

A experiência do homem com o seu próprio corpo seria uma espécie de ponto de parti-da para a atribuição de significados ao mundo que o cerca e a gramaticalização poderia ser pensada como um processo que envolve extensão de significado. A mudança lingüística de um item lexical a gramatical ou um item menos gramatical que exerce uma função mais gra-matical, num determinado uso da língua, pode ser interpretada como uma busca de significa-ção do mais abstrato nos termos do mais concreto.

Categorias prototípicas

A teoria aristotélica clássica, cuja perspectiva tem sido aceita tradicionalmente, aparece como alvo de constantes críticas acerca da natureza e da estrutura da categorização. Não sen– do resultado de estudos empíricos, a posição filosófica aristotélica mostra-se baseada em es– peculação apriorística. As categorias são definidas por um conjunto de traços (ou proprieda– des) que todos os seus membros devem compartilhar. Podemos concluir, então, que as catego– rias são definidas somente por propriedades inerentes, elas são independentes das peculiarida– des dos humanos, ou seja, as coisas que categorizamos estão no mundo e têm vida independen– dente da percepção humana.Quando categorizamos, apenas captamos o que já está na realida-de.

Os traços que caracterizam uma determinada categoria são uma questão de tudo ou na-da: ou um determinado traço pertence a uma categoria ou não pertence. As fronteiras são bem delimitadas. Uma vez que a categoria é estabelecida, divide-se o mundo em duas entidades: as que fazem parte da categoria e as que não fazem. Todos os membros têm igualdade de sta-tus: nenhum membro pode constituir melhor exemplo de uma categoria do que outro.

Uma das primeiras críticas à teoria aristotélica foi feita por Wittgenstein, no seu Philoso-phical Investigations (1953). Wittgenstein ponderou que a fronteira de uma determinada cate-goria é vaga, o que não prejudica sua utilidade comunicativa. As categorias não são estrutura-das em termos de traços compartilhados, mas através de uma rede de similaridade. Admite-se a existência de atributos tipicamente associados à categoria, entretanto, não existem atributos comuns a todos os membros e há até casos em que alguns membros não têm praticamente na-da em comum.

Wittgenstein propôs que a significação não se baseasse em referência e valor de verda-de, mas dissesse respeito à relação que se estabelece, no uso interativo da língua, entre os sím-bolos e as coisas no mundo.

Eleanor Rosch elaborou um trabalho de pesquisa com o objetivo de julgar até que ponto certos tipos de entidades poderiam ser vistos como bons exemplos de uma determinada cate-goria. A estudiosa descobriu que existe um grau de exemplaridade de uma categoria e que es-sa noção é psicologicamente muito real. Outro fator interessante foi a correlação entre o grau de participalidade (membership) em uma categoria e a freqüência e a ordem com que os mem– bros são mencionados.Quando se pede a um informante que dê exemplos de uma categoria, ele tende a mencionar os protótipos primeiro. Percebemos, então, que alguns “exemplares”de uma categoria possuem o status privilegiado de categoria prototípica, isto é, são perceptiva-mente mais salientes do que outros. Assim sendo, a prototipicidade pode ser vista como um fator inerente à percepção humana.

A noção de categorias prototípicas permite que se pense as categorias como sendo fle-xíveis e capazes de acomodar dados novos. Dentro dessa perspectiva podemos afirmar que: as categorias não são estanques – há membros mais centrais que outros; não podem ser cara-terizadas por um conjunto de traços que todos os membros compartilham; os membros rela-cionam-se através de semelhança por familiaridade (family resemblance).Podemos pensar que todas essas características apontadas podem se aplicar tanto a categorias do mundo quanto a categorias lingüísticas.

No que diz respeito às categorias lingüísticas, entendemos que o grau de participalidade de uma categoria também depende de sua similaridade com um representante prototípico des-sa categoria. Assim sendo, as categorias lingüísticas podem ser abordadas do mesmo modo que as entidades do mundo real e a separação dos diferentes sentidos de um item lexical pode ser mais uma questão de pontos em um continuum do que uma questão de dicotomia, como afirma Taylor (1989: 54):

Perhaps the most obvious difference between a classical and a prototype category is the fact that the former permits only two degrees of membership, i.e. member and non-member, while membership in a prototype category is a matter of gradience. It is worth mentioning at this point that attempts have been made to modify the strict assumptions of a classical model, in order to accommodate varying degrees of category membership.

É possível, dessa forma, pensar as categorias estruturais, em especial as classes gramati-cais, da seguinte maneira: numa relação icônica com a cognição; com uma capacidade de man-ter seus respectivos elementos em zonas fronteiriças entre uma classe e outra (num gradiente) – com a possibilidade, inclusive, de mudança de classe – e com a capacidade de refletir a ex-periência de mundo. Sendo um fator inerente à percepção humana, o reconhecimento da cate-goria prototípica aciona os conhecimentos pragmáticos do falante, que contribuirão na escolha de determinados exemplares como bons exemplos de uma categoria.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MACEDO, Alzira V. Tavares de. Funcionalismo. Veredas: revista de estudos lingüísticos, Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, (v.1 – nº 2) – Jan/Jun – 1998.

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