A coloquialidade como estratégia de sedução
no texto literário

Lucia Helena Lopes de Matos (UERJ)

Hoje é assunto de destaque no panorama didático-pedagógico a formação de leitores.Pergunto-me até que ponto o professor pode dar conta de mais essa tarefa num mundo com tantos apelos e numa escola que ainda está em busca de novos caminhos.

Como sabemos um leitor não se faz de um dia para outro e é interessante observar que o predicado “não se faz”, neste caso, usa um pronome reflexivo, isto é, “não faz a si mesmo”.Dito dessa forma, passamos a compreender a leitura como um processo cognitivo em que a construção, a solidificação e a ampliação da capacidade de compreender e apreciar um texto literário vão depender da vontade e do esforço individual do aprendente, exercendo o professor um papel coadjuvante, mas não menos importante nessa trajetória. Cabe ao professor seduzir o aluno para o prazer de ler e mostrar-lhe que o universo ficcional amplia, além da nossa capacidade para lidar com situações reais, o discernimento crítico que nos habilita a estar no mundo.

É importante reconhecer que a evolução de uma competência na construção dos sentidos deve ser gradativa e adequada ao nível da bagagem cognitiva sem que isso implique perda de qualidade do material literário apresentado. Tendo em vista esta estratégia, o professor deve apresentar sugestões para que a tarefa possa não ser impositiva, afastando dessa forma aqueles que mais dificuldades encontram para o exercício solitário da leitura. Somente quando a autonomia está formada e a busca por novas leituras se torna uma prática auto-estimulada é que o leitor em constante formação estará pronto para o exercício da crítica e o reconhecimento do texto que traz novos desafios tanto no que se refere à língua quanto à plurivocidade dos sentidos. Nessa fase, nada mais oportuno que exercitar o olhar deste leitor para a realização lingüística do escritor, capacitando-o a perceber não apenas o que diz o texto, mas como ele diz.

Quase sempre o leitor jovem ainda sente necessidade de partilhar com o autor /enunciador do texto a intimidade de sua escrita, portanto, nesses primeiros passos de aproximação/sedução, é interessante que a linguagem seja familiar e não um entrave para a compreensão.

Uma das escritoras brasileiras que melhor constrói esse clima de identidade sem apelar para a banalidade ou a facilitação de um texto essencialmente digerível é Lygia Bojunga Nunes que se apropria da língua de maneira bastante coloquial para criar novos efeitos no processo narrativo.

Por esse motivo elegi a obra Livro: um encontro com Lygia Bojunga para exemplificar o exposto acima e tentar encontrar as brechas para aliciar o leitor iniciante e envolvê-lo não só pelo assunto tratado, mas também pela fluidez da forma, pela naturalidade da linguagem. É preciso levá-lo a perceber que um tema, mesmo sendo banal, vai receber, através do talento do autor, um tratamento especial materializado através da língua, habilitando o texto à chancela literária.

Através desta obra, pretendo mostrar apenas um viés de como a literariedade se expressa no discurso dessa autora que trata a língua com tanta naturalidade a ponto de seus leitores terem a sensação de que participam da mesma situação de comunicação.

O livro em questão, Livro: um encontro com Lygia Bojunga, nasceu com o “pé” na oralidade. Sua origem foi uma encomenda da Editora Agir à autora para uma exposição de suas publicações européias, resultando em uma palestra teatralizada. Trata-se, então, de um solilóquio, forma narrativa destinada ao teatro, mas que é encontrada também no discurso literário:

Enquanto o solilóquio literário somente admite o leitor como ouvinte virtual da personagem, o solilóquio teatral pressupõe que a personagem fale como se estivesse sozinha e não fosse ouvida por ninguém. Mas como a fala se processa no palco, é evidente que se destina a ser ouvida pela platéia, e, apenas pela platéia. Nos dois casos, a fala pode ser considerada solilóquio 1) porque se manifesta em voz alta, 2) porque alguém (leitor ou espectador) a presencia como tal. O leitor ou espectador é que, graças ao seu testemunho, confere identidade ao solilóquio, quer teatral, quer literário, uma vez que o primeiro se oferece precipuamente como espetáculo, e o outro, como texto destinado à leitura. (Moisés, 2001: 255).

No solilóquio o tom conversacional se estabelece numa espécie de face a face bilateral encenada e quando a narradora / autora dá voz a algum personagem, ela o faz sem qualquer aviso ou sinal gráfico, como se imitasse a voz dos mesmos e até a sua própria voz em diálogo com outrem.

E se em vez de ler, liam para mim, aí mesmo é que a coisa não se descomplicava: o meu pai e a minha mãe liam história pra mim numa coleção de livrinhos pra criança que tinha lá em casa, tudo impresso em Portugal, e cheio de infantas, estalagens, escopetas, arcabuzes, abadessas rezando vésperas, raparigas na roca a fiar...

O quê?

Como é?

Lê de novo?

Que que é isso? E quando diziam, é português, não é, minha filha? Eu achava tão esquisito! Mas não é a língua da gente?

Era. (p .12)

A oralidade passa por um processo de elaboração simples na aparência, mas que exige do autor uma mestria com a língua que assegura o valor do seu trabalho. Na língua falada, o falante é amparado em sua produção por todo um contexto que o cerca (entonação, ritmo, traços fisionômicos, gestualidade etc), enquanto na língua escrita, seja literária ou não, todos os elementos não-verbais precisam ser recriados no enunciado através da verbalização. Nesse aspecto, a habilidade de Lygia Bojunga, se expressa no fazer crer ao leitor que ele é o Outro com quem ela interage. Em sua narrativa, a figura do autor e do narrador se funde dando ao discurso uma pessoalidade incomum na narrativa de terceira pessoa. As marcas do enunciador são claras, sem subterfúgios, trazendo para o enunciado a cena da enunciação, estabelecendo um diálogo com o enunciatário, estratégia que não escapa aos olhos do leitor atento, como podemos comprovar no grifo:

(...); só que agora, pra mim, é hora de falar mais comprido e mais direto.

Mais...direto?

Com mais direto eu queria dizer: pertinho, junto. Pela primeira vez me dava vontade de contar uma história ao vivo. (p. 8)

No primeiro capítulo, uma espécie de apresentação de livro, chamado O QUE QUE É LIVRO? a autora/ personagem-narrador explica o que motivou a sua escritura e numa linguagem marcada por estruturas próprias da coloquialidade vai construindo a grande metáfora condutora do livro: a experiência na construção da sua própria formação como leitora. As metáforas de superfície estão a serviço de uma metáfora mais profunda, condutora de todo arcabouço da narrativa: o projeto do livro passou a ser um encontro consigo mesma construindo-se sob uma metáfora extremamente poética, apesar de calcada em experiências rotineiras e comuns. O que a faz poética é o arranjo da sua construção, ou seja, o traço pessoal que confere autoria ao sujeito enunciador e marca o seu estilo.

A gente bota essas experiências fortes de lado, mas elas ficam acontecidas dentro da gente; e os fragmentos delas formam um novo desenho lá no fundo do nosso caleidoscópio. Um caleidoscópio que o Tempo vai virando. Só que no nosso caleidoscópio as imagens viradas – mesmo parecendo que nunca mais vão voltar, acabam aparecendo de novo – porque a gente não deixa de ser cada desenho que criou. (p. 9)

O valor estético de uma obra vai se revelando à medida que o escritor usa os subterfúgios que há a seu dispor dentro do sistema – utilizando a variedade mais adequada aos seus planos comunicativos – para dar conta de expressar a afetividade e a subjetividade que não cabem nos moldes rígidos da norma gramatical. Em Lygia, o discurso literário, todo construído sobre a oralidade, já que a simulação de conversa a dois (narrador / narratário), exclui praticamente os outros personagens (e, quando aparecem, mesmo em discurso direto, como é o caso da Ana Lucia, do namorado da narradora, não estão presentes na cena enunciativa), apresenta vários recursos dessa modalidade transpostos para a escrita, como pode ser comprovado pelo rol abaixo:

· Redundâncias e repetições: “Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação.” (p. 7); “Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia;” (p. 8); “...querer fazer uma homenagem a um amigo, e querer então reunir uns amigos desse amigo pra homenagem se alargar. O amigo, no caso, era o Livro.” (p. 9); “E mesmo hoje, que eu vou falar nele, eu vou contar o milagre mas não vou dar o nome do santo.” (p. 11); “...aquilo rasgava à toa, à toa.” (p. 20); Um vinho branco tão seco, tão seco, que dava...” (p. 260); “...rasgava tudo de novo outra vez.” (p. 38).

· Avaliações introduzidas por marcadores conversacionais: “Aí eu achei que...” (p. 8)

· Formas verbais analíticas: “...a vontade de falar nesse assunto podia ir dormir sossegada.” (p. 8).

· Paráfrases: “Com direto eu queria dizer pertinho, junto.” (p. 8).

· Marcadores que têm a função de conduzir e orientar as atividades do locutor: “O primeiro foi o seguinte: como eu vivo...” (p. 9).

· O verbo ter no lugar do verbo haver: “ “Quer dizer, todos não: teve um que eu acabei escondendo.” (p. 11).

· Palavras marcadas por iconocidade gestual: “ Um livro grosso assim” (p. 11); “Uma bela noite eu sonhei um sonho desse tamaninho. (p. 44).

· Revalorização da expressão-chavão: “Dei um dos muito obrigada mais sem convicção da minha vida, ...” (p. 11).

· Adjetivo com sufixo de diminutivo e prefixo indicando excesso e ainda prefixo com autonomia vocabular: “Eu estava superfresquinha de recém ter aprendido a ler...” (p. 11).

· Indeterminação semântica de certas expressões cristalizadas: “...eu gostava deles, mas, sei ! Era uma gente tão diferente da gente.” (p. 11).

· Pronome usado como intensificador: “...eles tinham cada nome tão estranho...” (p. 12); “Assim toda apaixonada, eu não queria...” (p. 15).

· Comparações de caráter simples, afetivo, espontâneo: “...não era uma coisa descomplicada feito descascar uma laranja, pular uma amarelinha, cantar junto a música que tocava no rádio.” (p. 12); “E ficar desenhando e apagando letra, escrevendo e reescrevendo palavra, era bom. Feito ir lá pro quintal mexer na terra. Feito depois encher a banheira bem cheia e ficar lá dentro dela, eu e mais o barco que eu vivia fazendo de papel.” (p. 35).

· Uso da preposição em para indicar lugar aonde: “E quando cheguei no fim do livro...” (p12).

· Expressões cristalizadas: “...fui indo toda a vida outra vez, ...” (p. 13); ”...eu enfrentava qualquer mão-de-obra pra me encontrar, todo santo dia, com Dostoievski e com Edgar Allan Poe.” (p. 14); “Ô, sua chata de galochas!” (p. 28); “...como eu não queria misturar alhos com bugalhos ela só faltou morrer.” (p. 31)

· Entonação marcada pelo grifo da fonte: “...e aquela gente toda do sítio do Picapau amarelo começou a virar a minha gente.” (p. 13); “...cada vez que um escritor decepciona o seu leitor-...” (p. 20); “Nem pensar em entrar naquele jogo com o meu ritmo.” (p. 20).

· Pronome com valor interjetivo e presença constante do expletivo “é que”: “... nossa, como é que ela teve coragem de dizer isso?” (p. 13).

· Pronome reto no lugar da forma oblíqua: “...eu experimentei eles todos;” (p. 13); “Eu fui lá buscar ele, ...” (p. 24).

· Composições inusitadas, algumas, diagramaticamente icônicas: ...e quando eu acabava a tarefa eu sentia um prazer-alívio quase irmão gêmeo daquele outro...” (p. 49); “E sempre dentro do jeito-modelo: espera-se que uma novela de rádio seja assim...” (p. 50); “Numa dessas conversas de como-e-onde levar a exposição, ...” (p. 8); “...e longa-e-perdidamente eu me apaixonei pelos dois.” (p. 14); “...eu me dei conta de como é forte a transa livro-e-a-gente” (p. 20); “E limpando gaveta pra minha papelada de vestibular, eu tive um acesso de hoje-eu-começo-vida-nova-o-passado-passou, ” (p. 38); “Mas eu achava tanto que escritor-escreve-é-à-máquina que durante muito tempo...” (p. 51).

· Advérbios acompanhados de prefixo ou sufixo com valor hiperbólico: “Eu gostava muitíssimo de cada leitura...” (p. 15); “Eu achava o Crime e Castigo superbem escrito;” (p. 15).

· Pronome demonstrativo usado como intensificador: “Isso era o Poe”. (p. 16) “Olha, que minha língua é essa!” (p. 28).

· Uso excessivo de dois pontos: “– Não: eu não gosto de promiscuidade”.; “A gente: nós todos aqui: leitores” (p. 17).

· Criações de palavras, mas não inusitadas dentro da língua falada coloquial: “...como eu vivo muito encascada (engasgada não: encascada)”;” (p. 9)...e fui lendo com a mesma avidez, com a mesma escondidez de sempre.” (p. 19); “...Foi no tempo que eu achei que ia ser médica (um ano depois ia desachar).” (p. 38); “...e a variedade de opções que eu tinha na hora de fazer a minha mexeção de palavras.” (p. 42).

· O artigo com valor estilístico de ênfase: “Eu não tinha falhado um livro dele.” (p. 19).

· Gírias: “Era aceitar a cadência de quem empacotava o visual, e fim de papo.” (p. 20).

· Reduções aferéticas e sincopadas: “, eu vou sim...”; Saindo do cinema: pera aí, pera aí: o Rilke caiu no chão” (p. 22); “...pegava tom de fofoca pra falar no Rilke.” (p. 23); “...o que que eu fazendo aqui tava fazendo ali?” (p. 50).

· Substituição do futuro do pretérito pelo imperfeito do indicativo, mais comum na língua coloquial: “Sempre sabendo que, se fosse hoje, eu rasgava tudo de novo outra vez.” (p. 38); “Se você fosse morar numa ilha deserta e distante só podendo levar um livro pra ler por lá, que livro você levava? (p. 39).

Cabe, ainda, observar que a autora utiliza-se basicamente da coordenação, das frases sintéticas que são comuns na linguagem falada, facilitam a entonação conversacional e dão à narrativa o ritmo que marca a espontaneidade, além de servirem como canal para expressão emotiva, carregando o texto escrito de uma certa musicalidade poética:

Eu podia fazer um capítulo de três linhas

Ou de três páginas.

Ou de trinta.

Nossa!

Querendo, eu botava um barco dentro do livro.

Eu botava bicho.

E ainda por cima fazia ele falar.

E fazia o barco chorar, tá bem?

Puxa, eu podia tudo. (p. 54)

A opção pela oralidade expressa em solilóquio enseja a percepção de que não é o inusitado que faz a obra ser literária, mas o impacto sobre o leitor e o pacto que este faz com o autor para atualizar os sentidos no ato da leitura. Para Maingueneau, “ao contrário de um preconceito muito divulgado, o discurso literário não é fonte de prazer apenas se é inovador; destina-se tanto a desestabilizar quanto a se adequar a esquemas preestabelecidos” (1996: 50).Por outro lado, também não existe, como acreditava a tradição, uma única variante lingüística para a língua literária, pois esta comporta muito mais a variante individual que imprime autoria a um discurso já assujeitado em sua gênese.

Segundo Fonseca (1999: 265), Umberto Eco (1983) diz que o texto é um “artifício sintático-semântico-pragmático” partilhado pelos atores da enunciação (autor/ leitor) e:

A partir desse ponto de vista, a chamada literariedade do texto, que os estruturalistas tanto defenderam como atributo do texto e somente dele, ficaria também na dependência da atualização do destinatário, que pode reiterar ou não o trabalho de linguagem exibido pelo texto. Visto como peça de um jogo que o texto atualiza, o leitor é também elemento dessa literariedade, pois é figura de papel, construção que se inscreve numa textualidade.

Formar leitores comprometidos com o texto, caçadores do sentido e conscientes da sua função de estar no mundo apropriados da sua história pode ser um projeto muito ambicioso, mas é também uma tentativa de fazê-los, na medida do possível, leitores de suas próprias vidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ECO, Umberto. Leitura do texto literário. Lisboa: Presença, 1983.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Análise do discurso literário: pontos de vista e controvérsias. In: MARI, Hugo...[et alli] (org.). Fundamentos e dimensões da análise do discurso. Belo Horizonte: Carol Borges, 1999, p. 259 – 268.

KOCH, Ingedore Villaça. A repetição e sua peculiaridades no português falado no Brasil. In: Dino Preti e seus temas: oralidade, literatura, mídia e ensino. Vários organizadores. São Paulo: Cortez, 2001.

MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. Tradução de Marina Appenzeller. Revisão da tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, (Coleção Leitura e Crítica).

MOISÉS, Massaud. Do solilóquio e do monólogo interior. In: Dino Preti e seus temas: oralidade, literatura, mídia e ensino. Vários organizadores. São Paulo: Cortez, 2001.

NUNES, Lygia Bojunga. Livro: um encontro com Lygia Bojunga. 3ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1995.

URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura (o caso Rubem Fonseca). São Paulo: Cortez, 2000.

 

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