A GLORIFICAÇÃO DO PEITO ILUSTRE LUSITANO
A VITÓRIA DA INTELIGÊNCIA E A FESTA DOS SENTIDOS
NA ILHA DOS AMORES

Roberto Nunes Bittencourt (PUC-Rio)

Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta

(Os Lusíadas, I, 3)

Avisado por Monçaide de que o Catual e seus aliados pretendiam deter os portugueses em Calicute até a chegada de uma frota guerreira vinda de Meca para destruir as naus lusitanas, Vasco da Gama resolve partir. Antes, porém, negocia com o Samorim: em troca dos dois portugueses que haviam sido feitos prisioneiros em terra, o Capitão libertaria indianos que estavam a bordo.

Trazendo especiarias das Índias – “pimenta ardente”, “seca flor de Banda”, “noz”, “cravo” e “canela” – iniciam a viagem de regresso à pátria. No semblante, a satisfação pelo sucesso da empreitada e o desejo de “contar a peregrina e rara / navegação”. Segue com os portugueses Monçaide, que vem a converter-se ao cristianismo. Enfrentam “tímidos e ledos” o mar e os seus “duros medos”.

Vênus, que desde o início da viagem se pusera em favor dos portugueses e nunca os deixara desamparados, resolve glorificá-los com “algum deleite, algum descanso, / no Reino de cristal, líquido e manso”, para “dar-lhes nos mares tristes, alegria”.

Isto bem revolvido, determina
De ter-lhe aparelhada, lá no meio
Das águas, algũa ínsula divina,
Ornada d' esmaltado e verde arreio;
Que muitas tem no reino que confina
Da primeira co terreno seio,
Afora as que possui soberanas
Pera dentro das portas Herculanas.

Ali quer que as aquáticas donzelas
Esperem os fortíssimos barões
(Todas as que têm título de belas,
Glória dos olhos, dor dos corações)
Com danças e coreias, porque nelas
Influïrá secretas afeições,
Pera com mais vontade trabalharem
De contentar a quem se afeiçoarem.

(Lus., IX, 21-22)

Vênus, com seus poderes, desloca a “ínsula divina” ao encontro da armada.. Então, pede Citeréia ao seu filho Cupido – o Amor –, que lance suas certeiras flechas no coração das ninfas. Estando as nereidas “do doce amor vencidas”, aconselha a “formosa deusa” que façam “o que ela fez mil vezes, quando amava”. Eis que

Cortando vão as naus a larga via
Do mar ingente pera a pátria amada,
Desejando prover-se de água fria
Pera a grande viagem prolongada,
Quando, juntas, com súbita alegria,
Houveram vista da Ilha namorada,
Rompendo pelo céu a mãe fermosa
De Menónio, suave e deleitosa.

De longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que Vénus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Pera onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Pera onde as naus navegam a movia
A Acidália, que tudo, enfim, podia.

(Lus., IX, 51-52)

Percebendo que os portugueses estavam decididos a desembarcar, Vênus, em “uma enseada / curva e quieta, cuja branca areia / pintou de ruivas conchas”, imobiliza a ilha. Desembarcando, têm os navegadores a visão de um verdadeiro paraíso. As árvores, as frutas, as flores e a fauna, toda a natureza está em perfeita comunhão, em perfeita harmonia. A manifestação da Beleza – a concretização do locus amoenus –, uma verdadeira pintura e o cenário ideal para a realização amorosa entre as ninfas e os lusitanos.

Camões faz da ilha ameníssima o símbolo de todas as compensações que podem premiar as grandes aventuras que descerram os mistérios do planeta: satisfação de apetites dos sentidos, de curiosidades da inteligência, de ambições da vontade. Vênus povoa a ilha de delícias naturais e ninfas que não se esquivam à caça dos nautas lúbricos, senão para mais vivo tornarem o prazer de sua conquista. E antes, da própria ilha fizera a mais amena, fresca e luminosa estância das festas de amor, de que a mesma natureza dava exemplo. (CIDADE, 1979: 133)

O mar é repleto de aventuras e perigos, culminando muitas vezes com o martírio de desafortunados – lembremos aqui Sepúlveda, Bartolomeu Dias e D. Francisco de Almeida, que pereceram no mar. Em contrapartida, a Ilha dos Amores simboliza porto e prêmio aos fatigados navegadores. Ainda mais, a glorificação pelos feitos heróicos, a imortalidade do nome, para sempre gravado na História. E o Amor representa a vitória sobre o desconcerto do mundo, afinal travara “ũa famosa expedição / contra o mundo rebelde”.

A Ilha é, assim, o restabelecimento da Harmonia, de modo que a consagração e a transfiguração mítica dos heróis, que na ilha e pela ilha se opera, são, também e sobretudo, a recolocação do Amor, do verdadeiro Amor, como centro da Harmonia e do Mundo. A Ilha é uma catarse total, não apenas de todos os recalcamentos, mas das misérias da própria História, e das misérias da vida no tempo de Camões e fora dele. É a reconciliação, a transcendência. (SENA, 1980: 76)

Portanto, a concretização amorosa é uma das maiores conquistas dos lusíadas em toda a empreitada marítima. É a celebração da vitória do povo que ousou desafiar os mares. No fundo, é um prêmio àqueles que bravamente navegaram para além “do que prometia a força humana.”

Andavam pelas florestas “as belas deusas, como incautas”. Algumas tocavam cítaras, outras harpas e doces flautas e simulavam “cos arcos de ouro” “seguir os animais”, como em uma caçada. Já tendo os argonautas desembarcado, às ninfas

[...]aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algũas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa formosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.

(Lus., IX, 65)

Estavam os navegantes desejosos de encontrar caça selvagem. Lançavam-se com determinação, empunhando espingardas e bestas, “pelos sombrios matos e florestas”. Não esperavam, porém, enxergar

Por entre verdes ramos, várias cores,
Cores de quem a vista julga e sente
Que não eram das rosas ou das flores,
Mas da lã fina e seda diferente,
Que mais incita a força dos amores,
De que se vestem as humanas rosas,
Fazendo-se por arte mais fermosas.

(Lus., IX, 68, v.2-8)

O encontro entre as nereidas e os navegantes estava selado. Em um jogo amoroso, “fugindo as ninfas vão por entre os ramos”, fogem manhosas, mais que ligeiras e, “pouco a pouco, sorrindo e gritos dando, / se deixam ir dos galgos alcançando”. Uma “os cabelos de ouro o vento leva”, outra “as fraldas delicadas” e “alvas carnes” mostra. Uma se deixa apanhar pelo seu perseguidor e outras, despidas, nas águas se “lançam / nuas por entre o mato, aos olhos dando / o que às mãos cobiçosas vão negando”. Um mancebo, desejoso de amor, “a matar na água o fogo que nele arde”, toma a sua presa. Estava consumada a perseguição e simulada fuga.

Vencedores e vencidas, estavam todos entregues ao puro amor. O sentimento é tão intenso, o afago é tamanho, que os enamorados “se prometem eterna companhia, / em vida e morte, de honra e alegria”. Nos versos seguintes, inundados de lascívia, o relacionamento amoroso entre as ninfas e os portugueses não representa uma orgia desenfreada e desmedida:

Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo. (Lus., IX, 83)

É, sim, a realização do amor, do desejo de amar e ser amado. É o momento de glória. Ainda mais, o momento em que o Amor, através do desejo, manifesta-se de forma que, mesmo que por um momento, o mundo recupera sua harmonia, estando livre de toda sorte de desconcerto. Evidentemente há uma entrega aos prazeres da carne, mas é um prazer fruto do Amor, que preenche a alma e purifica. O Amor que deifica homens e humaniza deuses, unindo-os em um só ser, fazendo com que entre eles não haja mais distinção, deixando criaturas humanas e divinas em um mesmo patamar, em uma mesma existência.

O Paraíso é a Ilha dos Amores, episódio final que desvenda todo o significado do Poema. Vênus concedeu-a para que ali nascesse uma ‘progênie forte e bela’ e para que o ‘mundo vil e maligno’, caracterizado pela ‘triste hipocrisia’, que tenta separar os amantes por um muro intransponível como o diamante (‘muro adamantino’), soubesse que nada resiste à força do Amor. A Ilha é um pomar onde a natureza produz todos os frutos necessários à vida, ‘sem Ter necessidade de cultura’ [...] N’ Os Lusíadas [...] a revelação súbita da nudez desperta o instinto para o qual o pecado não existe. É em plena inocência, como se o tabu bíblico nunca tivesse existido, que se realiza e consuma o conúbio geral, sem restrições [...] Depois desta recuperação da inocência e desta abolição da consciência do Bem e do Mal, os homens recuperam também a imortalidade. Como amantes das ninfas imortais, tornam-se eles próprios divinos. A mulher, intermediária à serpente maléfica, fizera Adão ser sujeito à morte. Na Ilha dos Amores é também a mulher (agora no plural) que liberta os homens da lei da morte. (SARAIVA, 1995: 127-128)

A concretização sexual entre os lusos e as nereidas, a concretização do amor e do desejo, ultrapassando quaisquer convenções da ars amatoria clássica é o único momento da epopéia em que há a plenitude amorosa. E aqui nos recordamos da trágica história de D. Inês de Castro, a bela de “colo de garça”, feita Rainha depois de morta, e do triste lamento do Gigante Adamastor, subjugado pelo poder avassalador do Amor. Em ambas as histórias, além do aspecto trágico, não há a realização plena do amor.

Camões faz “voar o pensamento, libertando-o de quaisquer grilhetas conceptuais (neoplatónicas ou outras) graças ao poder das emoções e à força sempre misteriosa do desejo e do amor que o eleva e legitima” (AMARAL, 2003, p. 29-30). É o amor concreto, realizado, mas que não apaga ou oblitera o desejo, e sim ultrapassa os modelos clássicos petrarquistas.

Encerrada a celebração amorosa entre as ninfas e os heróis portugueses, Tethys

[...]a quem se humilha
Todo o coro das Ninfas e obedece,
Que dizem ser de Celo e Vesta filha,
O que no gesto belo se parece,
Enchendo a terra e o mar de maravilha,
O capitão ilustre, que o merece,
Recebe ali com pompa honesta e régia,
Mostrando-se senhora grande e egrégia.

Que, despois de lhe ter dito quem era,
Cum alto exórdio, de alta graça ornado,
Dando-lhe a entender que ali viera
Por alta influïção do imóbil fado,
Pera lhe descobrir da unida esfera
Da terra imensa e mar não navegado
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação só merecia,

Tomando-o pela mão, o leva e guia
Pera o cume dum monte alto e divino,
No qual ũa rica fábrica se erguia,
De cristal toda e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia,
Em doces jogos e em prazer contino.
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.

(Lus. IX, 85-87)

Reuniram-se em um banquete oferecido por Tethys os portugueses e as nereidas. Uma “angélica sirena” entoava um canto épico em homenagem aos “altos barões que estão por vir ao mundo”. Narra a ninfa as vitórias belicosas dos portugueses, exaltando e elevando ao patamar divino “o peito ilustre lusitano”. Encerrados os festivos, Tethys conduz Vasco da Gama e seus homens através de “um mato / árduo, difícil, duro a humano trato” até a um elevado planalto. Diz a ninfa ao Capitão:

– Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Sigue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais.

(Lus. X, 76)

Sem que andassem muito, “se achavam, onde um campo se esmaltava / De esmeraldas, rubis, tais que presume / A vista que divino chão pisava”. Um globo, de “lume claríssimo” está pairado no ar. Tethys oferece a Vasco da Gama, “comovido / de espanto e desejo”, um “transunto”, um modelo do Universo em miniatura. Está o heróico luso diante da

[...]grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

(Lus. X, 80)

A contemplação da Máquina do Mundo trata-se da coroação máxima dos portugueses. Tem “algo de iniciação ao conhecimento do Universo, porque a iniciação é a passagem do mundo profano, vulgar, para um mundo sagrado”. (BENEDITO, 2002: 110) Vasco da Gama contemplara aquilo que só aos deuses era permitido vislumbrar. A Máquina do Mundo simboliza a vitória do conhecimento racional, do pensamento ordenado frente ao mundo desarmônico e confuso. Cabe ao homem, por meio de seus esforços, impor a si e àquilo que está em seu redor uma visão ordenada.

Desta forma, o homem se eleva à divindade. Como fora com os portugueses, que por seus feitos valorosos, heróicos, tornaram-se deuses. Veja-se que os próprios deuses reconheceram na lusa gente a divindade – e o que é a Ilha dos Amores senão uma celebração à moda de Baco. Ora, o próprio deus que perseguira e enfrentara os lusíadas por toda a empreitada, parece agora, também, render suas homenagens.

Só chega a este patamar divino quem caminha “firme e forte, com prudência” perpassando um caminho “árduo, difícil, duro a humano trato”. E navegaram os portugueses “por mares nunca de antes navegados” indo além “do que prometia a força humana”. Segundo António José Saraiva e Óscar Lopes:

Esta vitória dos homens sobre os deuses é uma idéia adequada ao impulso do Renascimento, que assistiu a um importante avanço no domínio do planeta por parte do Homem. É, aliás, também um mais vago ideal antigo, simbolizado pelo mito de Prometeu, o herói que roubou o lume divino para erguer os homens ao nível dos deuses. Camões realça-o, contrastando a heroicidade revolucionária com a sensatez do Velho do Restelo, que exprime o ponto de vista oposto, segundo lugares-comuns dos coros trágicos clássicos: o Velho alude ao mito de Ícaro, castigado pela ambição de querer elevar-se nos ares, ao mito de Prometeu, e o que é mais (e seria extremamente audacioso se não fosse feito de forma tão hábil), aproxima tudo isto, aproxima a própria viagem de Vasco da Gama, tema central da epopéia, da desobediência de Adão. A viagem do Gama, os Descobrimentos em geral aparecem assim, num relance, como renovação do Pecado Original: o da autodeterminação humana. Este orgulho humanista [...] verifica-se sobretudo nos lineamentos gerais do poema: repare-se que o humano Gama alcança, com a posse de Tétis, símbolo do domínio dos mares, aquilo que fora negado a Adamastor, um titã semidivino. (SARAIVA & LOPES, 2001: 335)

Podemos, também, aproximar a Máquina do Mundo da temática amorosa. Lembremo-nos do Amor como força capaz de corrigir os desacertos do mundo. Os nautas lusitanos, desde que desembarcaram na Ilha dos Amores, estavam além do mundo desarmônico. Guiados por Tethys para vislumbrar a Máquina do Mundo, guiado, enfim, pela força do amor, que “os Deuses faz descer ao vil terreno / e os humanos subir ao céu sereno”, o “peito ilustre lusitano / a quem Netuno e Marte obedeceram” foi celebrado. Um peito humano que, pela força do heroísmo e pela força do amor, tornara-se divino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Fernando Pinto do. “Nas asas do desejo”. In: Luís de Camões: poesia lírica. Lisboa: Dom Quixote, 2003.

BENEDITO, Silvério. Para uma leitura de Os Lusíadas de Luís de Camões. 2ª ed. Lisboa: Presença, 2002.

CAMÕES, Luís Vaz de. “Os Lusíadas”. In: Obra completa de Luís de Camões. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

CIDADE, Hernani. Luís de Camões: a obra e o homem. 3ª ed. Lisboa: Arcádia, 1979.

SARAIVA, António José. Estudos sobre a arte d’Os Lusíadas. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 1995.

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17ª ed. Porto: Porto Editora, 2001.

SENA, Jorge de. A estrutura de Os Lusíadas e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI. Lisboa: Edições 70, 1980.

 

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