A ORALIDADE EM FERNANDO SABINO

Juliana Rabelo Mariani Passos (UGB/FERP)

O objetivo deste trabalho é demonstrar a existência de marcas de fala no gênero literário crônica. Para isso, será analisada uma crônica de Fernando Sabino, intitulada Se não me falha a memória. A crônica foi o gênero textual escolhido por se tratar de uma narrativa que descreve acontecimentos rápidos e, por isso, possui uma sintaxe simples, mais próxima de uma conversa fiada. Sendo assim, oralidade e escrita aproximam-se nesse gênero, conforme afirma Assis (2002).

Primeiramente, é preciso saber que, na análise de um texto literário, o estilo do escritor e sua época são fatores de grande importância. Uma narrativa de um autor contemporâneo, como Fernando Sabino, não apresenta as mesmas características da narrativa de um pré-moderno como Lima Barreto, por exemplo. Segundo Jorge de Sá (2001), Fernando Sabino procura no relato do cotidiano, dos pequenos acontecimentos explorar o lado engraçado das coisas, despertando no interlocutor uma visão da essência humana. Para tal apresenta pessoas comuns com atitudes próximas do conhecimento do leitor.É o que se pode observar na crônica que será analisada.

Se não me falha a memória é uma narrativa que relata um acontecimento simples sem muita importância: um escrivão, em sua rotina diária de trabalho no cartório, atende um senhor que busca informações sobre um inventário. Este senhor, por ter sofrido uma comoção cerebral, retorna mais vezes, para pedir a mesma informação. O escrivão vê-se obrigado a explicar a mesma coisa várias vezes. O diálogo que se estabelece na crônica entre os dois personagens foi elaborado de tal forma que nos remete à idéia de uma conversa real, embora não seja. E é através deste diálogo que se procederá a análise.

A conversa, como simulação da fala real, realiza-se de forma assimétrica, ou seja, o senhor tem o poder da palavra, sendo o responsável por desenvolver o tópico, enquanto o escrivão faz pequenas intervenções para dar informações solicitadas ou pedir esclarecimentos, o que constitui um exemplo de assimetria. Pode-se observar, ainda, que todo o texto é organizado em torno de pares adjacentes. Já no início encontramos o par adjacente saudação-saudação, o qual, de acordo com Marcuschi (1986), é o mais comum na abertura de conversações. Em seguida, observa-se o efetivo início do tópico discursivo:

L1: __ Sr. Escrivão, meus respeitos __ fez um salamaque: __Queria que o senhor me desse informações sobre um inventário.

L2: __ Às suas ordens __ e retribuí o cumprimento: __ Inventário de quem?

Na próxima fala de L1, observa-se à ocorrência de um fenômeno comum na conversação: a digressão, que é uma fuga temporária do assunto.

L1: __ Já lhe digo o nome do falecido. Minha memória ainda é das melhores__ apesar de ter sofrido uma comoção cerebral há poucos dias, ainda não estou inteiramente bom. Espera aí, deixa eu ver... Sou advogado há mais de quarenta anos, não esqueço o nome de um constituinte, vivo ou morto. Hoje em dia... Benvindo!

Como se pode comprovar em Fávero (1995), esta digressão é baseada no enunciado, ou seja, L1 fala de um assunto (a questão da memória) que está relacionado com o assunto principal (dizer o nome do falecido). Nota-se que o locutor não utiliza marcadores para introduzir sua digressão, e, nem por isso, a sua fala deixa de ser coerente, apesar da estranheza demonstrada por L1.

L2: __ Como?

Esta pergunta, primeira parte de um par adjacente do tipo pergunta-resposta, é seguida de um esclarecimento dado por L1.

O nome do falecido era Benvindo. Isto! Benvindo Lopes. Marido da minha cozinheira. Faleceu há pouco tempo. E ela já não está boa da cabeça e se eu não me lembrasse o nome do marido dela, quem é que haveria de lembrar?

A pergunta constante no final desse fragmento é classificada como pergunta retórica, pois não exige resposta. Ocorrências desse tipo são muito comuns na conversação natural. Ainda neste fragmento, L1 faz confusão com o nome do falecido e é corrigido explicitamente por L2. Trata-se de uma correção heterocondicionada, também comum na fala.

L1: __ (...) Levindo Lopes.

L2: __ O senhor disse Benvindo.

Depois de o escrivão explicar todo o procedimento necessário e o senhor se despedir, este retorna ao lugar para, pela segunda vez, pedir a mesma informação. Diante desta situação, L2 assalta o turno de L1. Esta invasão é marcada pela presença das reticências no trecho que segue:

L1: __ Sr. Escrivão, já que o senhor há pouco foi tão amável, e sem querer abusar, posso lhe pedir uma informação? É sobre um inventário, esqueci de lhe dizer. Minha memória é muito boa, mas sofri há dias uma comoção cerebral...

L2: __ O senhor me disse __ sorri-lhe solícito: __ Qual é o inventário desta vez?

Nota-se que esse assalto pelo fato de L2 querer dominar a conversão, mas para impedir que o seu interlocutor fale sobre o mesmo assunto. Prova disso é a pergunta feita por ele, a qual possibilita que L1 tenha novamente o direito ao uso da palavra, já que exige uma resposta. Tem-se aqui novamente o emprego do par adjacente pergunta-resposta. Eis a resposta do primeiro locutor:

L1: __ Inventário de... de... Não vê o senhor? A minha cozinheira... O marido dela...

Nesta fala de L1, pode –se observar a ocorrência de dois fenômenos bastante comuns na conversação. O primeiro é a hesitação que, segundo Pretti (2001: 231) “corresponde a um recurso lingüístico que garante ao locutor o tempo necessário para organização e planejamento do turno em andamento, decorrendo, entre outras causas, de falhas de memória, desconhecimento do assunto (...), etc.” Este recurso manifesta-se na fala acima através da repetição da preposição de e das pausas, marcadas pelas reticências; O segundo fenômeno é a correção, que, neste caso, foi realizada por L1 com o intuito de formular melhor o seu texto, visando a boa compreensão de L2.

A partir do ponto em que o senhor começa a repetir o mesmo assunto, ocorrem mais assaltos ao turno, pois L2 já tem conhecimento do que será falado e, por isso, não permite que ele conclua sua fala. Esses assaltos vêm seguidos de pares adjacentes do tipo perguntas – respostas utilizados por L1 para comprovar que se trata realmente do mesmo tópico. Neste caso, as respostas dadas por L1 são iniciadas por um marcador conversacional indicador de concordância. É o que se observa a seguir:

L1: __ (...) A minha cozinheira... O marido dela ...

L2: __ Benvindo Lopes?

L3: __ Isso! Benvindo Lopes (...)

Quando o senhor volta pela terceira vez, o escrivão mostra-se descontraído e finge não ter conhecimento do assunto sobre o qual o desmemoriado está falando. Então, novamente, faz-se presente o mesmo discurso.

Encerrando a análise, nota-se que o primeiro locutor fala três vezes sobre o mesmo assunto. Contudo, de forma distinta. Neste caso tem-se a paráfrase.

L1: __ Sr Escrivão, meus respeitos _ fez um salameleque: __ Queria que o senhor me desse informações sobre o inventário (primeira vez)

L1: __ Sr. Escrivão, já que o senhor ainda há pouco foi tão amável, e sem querer abusar, posso lhe pedir uma informação? É sobre um inventário, esqueci de lhe dizer. Minha memória é muito boa, mas sofri há dias uma comoção cerebral... (segunda vez)

L1: __ Veja o senhor! Já ia me esquecendo é do motivo principal que me trouxe aqui: a minha cozinheira, que está mais velha do que eu, perdeu o marido há pouco tempo e estou cuidando do inventário dele... (terceira vez)

Como se pôde observar, há na crônica, inúmeras características que a aproximam do fenômeno da oralidade. Aqui a presença do diálogo explicito, isto é, de personagens dialogando entre si, facilita a percepção das marcas de fala presentes, pois estas se tornam mais visíveis aos olhos do leitor. Até mesmo porque ao estabelecer este diálogo, o cronista procura elaborar a fala dos personagens de forma a se mostrar o mais natural possível.

No entanto, mesmo com toda elaboração, o autor depara-se com certas restrições. Isto porque se trata de um texto escrito, e a língua escrita é limitada perante a dinamicidade da língua falada. Pretti (2001) afirma que: “A literatura pode incorporar esses traços da língua falada, mas dificilmente o escritor, ainda que adote um ritmo ágil, poderá levar para a escrita toda a variedade dinâmica da conversação”.

Diante desse estudo conclui se que, ao simular a conversação, seja implícita ou explicitamente, o cronista dá mais veracidade à sua narrativa e a aproxima da realidade do leitor. Levando o mesmo a refletir sobre acontecimentos presentes em sua vida.

Referências Bibliográficas

ASSIS, Lúcia Maria de. Crônica: um caso de dialogismo fala/escrita. Taubaté: 2002. (Dissertação de Mestrado).

FÁVERO, Leonor Lopes. O Tópico Discursivo. In: PRETI, Dino. 2ª ed. Análise de textos orais. São Paulo: Humanitas, 1995.

MARCUSCHI, Luís Antônio. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986.

PRETI, Dino. 7a. ed. Análise de textos orais. São Paulo: Humanitas, 2001.

SÁ. Jorge de. A crônica. 8a. ed. São Paulo: Ática, 2000.

 

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