A questão neológica na guerra do Iraque
Pesquisa no noticiário Internacional

Nelly Carvalho (UFPE)

Introdução

Os usos da linguagem são marcadores sociais e também marcadores geográficos. A cobertura jornalística da Guerra do Iraque, em 2003, trouxe à tona expressões e palavras diversas daquelas pertencentes ao do nosso vocabulário ocidental, revelando-nos outras realidades e complexidades. Mas até que ponto esse novo léxico facilitou ou dificultou nossa compreensão das informações relacionadas à guerra? Tal uso da linguagem gerou um retrato fiel daquela sociedade/realidade? Obviamente esse caráter de análise mais amplo não convém ser exposto aqui, nem constitui nosso objeto de análise; nos deteremos, portanto, unicamente à questão neológica no texto jornalístico da cobertura da guerra, verificando se tal poderia constituir um ruído de comunicação. Este trabalho tem dois objetivos:

– Estudar os neologismos por empréstimo que surgem no contexto

– Observar o funcionamento dos mesmos na compreensão dos textos

Há palavras que surgem da necessidade de se nomear o surgimento de novas situações, novos produtos, novas convenções, ou seja, sua função está diretamente relacionada ao uso. A essa “nova palavra”, ou ao novo uso de uma palavra já existente, a Lingüística dá o nome de neologismo.

O valor da criação de uma palavra numa sociedade não é apenas o valor de uma nova forma que se impõe, fônica ou gráfica, mas um signo, com um sentido, um referente e pressuposições; a partir daí, um novo conceito é introduzido na sociedade. O neologismo é ao mesmo tempo uso do código e subversão, reconhecimento e transgressão da norma. (Carvalho, 1983)

Há basicamente dois tipos de neologismos: os lexicais e os semânticos. Entende-se por neologismo lexical (ou formal) aquele ligado à forma e semântico, a mudança do significado. No momento, o que nos interessa são os empréstimos lingüísticos, estrangeirismos que podem incorporar-se à outra língua sem traduzir-se (caso dos xenismos) ou podem se adaptar via processos de formação próprios da segunda língua (adaptação e tradução)

Metodologia e Bases teóricas

É através do jornalismo que discursos e nomenclaturas dos mais diversos contextos são “vulgarizados”, repassados, de modo acessível, para a sociedade. É na imprensa que se percebe mais facilmente as conseqüências das inovações lingüísticas, “pela quantidade de novos itens lexicais que entram na língua comum”. Tais inovações e renovações provêm das transformações da sociedade e do “resultado da crescente influência da ciência e da tecnologia na vida das pessoas”. Ressaltamos, aliás, a importância da imprensa escrita na incorporação primária desses neologismos no repertório da sociedade: é a partir do registro escrito que a palavra, antes restrita a determinados campos do saber, passa a existir formalmente para um universo mais amplo e mais democrático, o dos leitores de jornais.

Os cadernos de Noticiário Internacional, nos quais a presença e o uso de estrangeirismos muitas vezes dificultam a assimilação da informação por parte do leitor não-familiarizado com essas áreas, causam problemas (ruídos) na comunicação pretendida.

No contexto da Guerra do Iraque, o neologismo– nas várias formas de empréstimos lingüísticos surge da necessidade de nomear e especificar realidades restritas, divergentes dos usados em outros contextos de guerra. São, em geral, além de termos pertencentes a um vocabulário bélico, estrangeirismos árabes e anglo-americanos ou nomenclaturas referentes a religiões da região do Golfo Pérsico, sobretudo o islamismo.

A pesquisa foi feita em ornais de Pernambuco (DP, JC, FP) mas teria o mesmo resultado se fosse feita em qualquer parte do Brasil, porque o noticiário e os comentários internacionais vêm através de agência de notícias, uniformizados para todo o país.

Os neologismos encontrados são resultantes de empréstimos do inglês americano ou empréstimos indiretos, adaptações fonéticas e transliteradas de termos árabes, pela divergência entre os códigos escrito: são representantes da cultura globalizada, não apresentando variações como nas demais secções dos jornais. A variação que apresentam é na grafia do nome árabe, pois muitas vezes, cada agência faz a sua.

Para observar a compreensão do noticiário, foi feito teste de compreensão com diferentes leitores, o que não vamos relatar aqui.

Análise do corpus

Foram selecionados alguns exemplos de neologismo por adoção ou empréstimo referentes à Guerra do Iraque encontrados durante o período de coleta de dados. Certos termos, apesar de constituírem criações neológicas, são entendidos mesmo alijados do contexto e não geram maiores problemáticas na compreensão. É o caso de neologismos como pró-Israel, pró-Saddam Hussein, pós-Saddam), não-árabe. Formações com alto índice de ocorrência nos jornais são homens-bomba, mulheres-bomba, carro –bomba, bicicleta-bomba, caminhão bomba, todos tradução do inglês. Nesses exemplos, a mensagem é bem-assimilada por parte do leitor.

O processo de comunicação, de transmissão de uma mensagem, pressupõe a existência de um repertório e de um código comum entre receptor e transmissor, para que a decodificação da mensagem ocorra sem transtornos. Entretanto, durante todo o percurso percorrido pela mensagem, desde a saída da fonte até o destino, há possibilidade de ocorrer ruídos de comunicação, ou seja, perturbações na compreensão da informação. Cabe observar que quanto menor o ruído, melhor será a qualidade de recepção da mensagem.

Todo signo novo, no entanto, constitui, num primeiro momento, um ruído, visto seu caráter de “inesperado” e “raro”, de estranho à língua ou ao contexto. A teoria da comunicação, portanto, enxerga o neologismo (signo novo) como ruído: por ainda não fazer parte do “repertório coletivo”, interfere na transmissão da mensagem.

O receptor/leitor só irá assimilar/interpretar a mensagem se a mesma de alguma forma já fizer parte de seu repertório.

Em relação aos estrangeirismos, Jakobson afirma que “a relação entre a informação morfológica e a informação sintática em inglês deverá ser comparada com a relação equivalente em outras línguas”. Pode-se deduzir que o mesmo pode ser aplicado no tocante a outras línguas, mas, como proceder no caso de não haver palavra ou relação equivalente na outra língua?

Alguns termos árabes são reveladores de uma vivência social muito diversa da nossa ou pertinentes a etnias muito específicas, causando prejuízos de compreensão para o leitor e, conseqüentemente, de dificuldades de classificação para o pesquisador.

As dificuldades com os termos vindos do inglês foram nulas, porque além de ser uma ocorrência comum, inglês e português são línguas ocidentais, do ramo indo-europeu e com o mesmo alfabeto.

No caso dos arabismos temos uma língua semítica, com um código escrito diferenciado (alfabeto), representando uma forte cultura do Oriente Médio. Mas, ajudando a superar as dificuldades, podemos ver na história do Português, fase em que foram freqüentes esses empréstimos pelo adstrato árabe na invasão Moura, na Idade Média A forma de adoção, na época, foi pelo ouvido, criando adaptações e transliterações como:

Cuscuz, haxixe (assassino), café, moka, oxalá, (In sha Alá/ se Deus quiser), até (fasta), talismã, arroz (al ruz), almirante (emir al bahhr) Arraes (Al raez).e muitos outros.

Mas, foi nas ciências exatas reside a grande contribuição árabe. Com a adoção dos números arábicos, entrou a noção do zero que revolucionou a ciência:

Sifr. Zéfiro/ Zero/Cifra/Algarismo.

Os algarismos arábicos influenciaram a nomeação dos dias da semana em português, divergindo das demais línguas européias, sendo apontados por numeração, igual aos árabes:

Domingo / yaum al-abad Segunda-feira / yaum al-ithmain
Terça-feira : / yaum ath-thlatba Quarta-feira / yaum al-arbi a
Quinta feira / yaum al-khamis Sexta-feira / yaum al-djum a
Sábado / yaum as-sabi

Na presente pesquisa, certos termos encontrados constituem verdadeiro ruído por seu caráter de especificidade, gerando dificuldades de equivalência do termo em língua portuguesa. A inserção de termos como, por exemplo, mujahedines ou shahid, em meio ao texto jornalístico, mesmo que referente ao contexto muito particular de guerra do Iraque, certamente causa estranhamento ao leitor comum, não-familiarizado com a terminologia de religiões islâmicas ou etnias orientais. O leitor–médio não é interessado em noticiário internacional, talvez por não entender as referências nem admitir que os efeitos daquelas ações o afetem na vida diária.

No caso de mujahedines (cujo plural nos parece ser uma tentativa de aportuguesamento da palavra de origem árabe), recorreu-se à tradução inglesa, através do dicionário Oxford, para captar o real sentido do termo. Pelo contexto que nos foi fornecido pelo jornal, só pudemos interpretar que o mesmo se referia a pessoas envolvidas em atentados suicidas. Já o dicionário Oxford traz mujahedin exatamente como combatente, guerrilheiro da milícia islâmica.

Shahid, estrangeirismo de origem árabe, pode ser relacionado, pelos contextos em que foi encontrado, a ataque suicida. Seria uma expressão significando o martírio a que os islâmicos se submetem em defesa da religião e para alcançar o paraíso, conforme se observa no contexto acima referenciado: ‘Não vou me casar porque decidi ser um shahid (mártir) (...)’ Issa gravara a mensagem (...) antes de partir (...) para se apresentar para o ‘martírio’, que em termos práticos se traduz em ações suicidas de ataque às tropas de coalizão no Iraque.” O contexto apresentado pelo discurso adotado aí deixa claro para o leitor as possíveis significações do termo, não prejudicando a compreensão geral da mensagem.

A ocorrência do termo coalizão é freqüente, usado nesse contexto de guerra para referir-se às tropas americanas e aliadas, tendo como oposição Iraque também o sintagma neológico eixo do mal. Expressão utilizada, a princípio, pelo governo norte-americano por ocasião dos atentados terroristas de 11 de setembro, para referir-se a países terroristas da região do Golfo, é retomada aqui ainda significando grupo de países orientais considerados terroristas, como podemos perceber, em grifo, no contexto selecionado, acima referenciado: “Ontem, o porta-voz da Casa Branca Ari Fleischer anunciou que EUA e Coréia do Sul devem realizar um encontro de cúpula no dia 14 de maio para discutir o problema da Coréia do Norte que, como o Irã e o Iraque, foi incluída no chamado eixo do mal

Listagem dos termos

Empréstimos

1– Anglicismos (Tradução): Eixo do Mal, Eixo-do-mal, coalizão, pró-Sadam, anti-Sadam, Pró-Israel, radical islâmico, Exército de libertação, Homem-bomba, Mulher-bomba, Carro-bomba, Bicicleta-bomba, Caminhão–bomba, dissidente, antiterror, pré-guerra;

2– Arabismos: Empréstimos indiretos do Inglês (adaptação fonética e transliteração) Shaid, mujahedin, taleban (várias grafias), hojastelã, mulá, mulã, aiatolá, xiita (Irã x Iraque), sunita, curdo, muaedin, jihad, caid, intifada guerra com Israel) burka (Afeganistão), muezzin, xeque, ulema.

A nomenclatura dos chefes religiosos islâmicos passou a freqüentar o noticiário internacional, a partir da década de 80, com o crescente poderio dos povos árabes, através do advento da era do petróleo.

Conclusões

Fica claro para o leitor como a mensagem deve ser interpretada: a partir do maniqueísmo de guerra “bem x mal”, presente em outras criações neológicas observadas nessa pesquisa, como antiterror.

Com a análise, podemos concluir que muitas vezes apenas a referência a um contexto não é suficiente para a decodificação completa da mensagem. Assim, faz-se necessário recorrer a outras fontes de informação e a outros materiais de consulta para apreender o real valor semântico da mensagem ou do termo. Entretanto, é preciso considerar que o leitor de jornal médio não tem acesso a essas outras ferramentas de auxílio na compreensão do texto e, principalmente, pelo próprio caráter pontual e simplificado característico do texto jornalístico, tais alternativas deveriam ser desconsideradas.

O caderno dedicado ao noticiário de Política Internacional, evidentemente, traz um grande número de termos e expressões incompreensíveis a princípio, numa primeira leitura, pela quantidade de estrangeirismos e nomenclaturas específicas utilizadas. Assim, o noticiário internacional seria um campo mais “predisposto” ao ruído, pelo alto índice de signos novos ali observados.

O contexto de guerra também apresenta um bom número de contribuições e peculiaridades para a ampliação do léxico. Às vezes, tais contribuições são passageiras, marcadoras daquele contexto específico, único; outras vezes, esses neologismos se incorporam a outros contextos de guerras futuras, ou a outros campos sociais. A recorrência a agências internacionais para reproduzir notícias também revela uma tendência a ambigüidades e dificuldades na compreensão da mensagem. Muitas vezes a simples tradução não é suficiente e, em muitos casos, não há equivalência em língua portuguesa, nem na cultura ocidental Tendo acesso a outras realidades lingüísticas e sócio-políticas, amplia-se não só seu léxico, mas a visão de mundo. Como dizia Wittgstein “Os limites da minha linguagem são o limite do meu mundo”

Referências BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Ieda Maria. Neologismo: criação lexical. São Paulo: Ática, 1990.

BARBOSA, Maria Aparecida. Léxico, produção e criatividade. São Paulo. Plêiade, 1996.

CARVALHO, Nelly M. Neologismo na linguagem jornalística recifense. Recife, Dissertação de Mestrado, UFPE, 1982.

––––––. Linguagem jornalística. Aspectos inovadores. Recife, Secretaria de Educação de Pernambuco –Associação da Imprensa de Pernambuco, 1983.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1999.

PIGNATARI, Décio. Informação, linguagem, comunicação. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

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