Argumentação e discurso
um reencontro com algumas estratégias utilizadas
em Sermão da Sexagésima, de Padre Antonio Vieira

Wagner Luiz Ferreira Lima

 

Considerações preliminares & n bsp & n bsp

O relacionamento dos seres humanos, do mais simples ao mais complexo, do mais pobre ao mais rico, do menos instruído ao bem informado, é basicamente mediatizado por meio de símbolos. No que concerne à interação social, se observado o comportamento lingüístico dos seres humanos, verificaremos, segundo Koch (2000: 12), que “a interação social por intermédio da língua caracteriza-se, fundamentalmente, pela argumentatividade”.

Essa concepção não nos coloca com a incumbência de nos ocuparmos da clássica distinção entre dissertação expositiva e dissertação argumentativa, por não estarmos interessados em discutir o maior ou o menor comprometimento do autor em relação ao que diz, e sim o grau de argumentatividade que existe nos textos em geral, ainda que eles se estruturem como narrativos, descritivos, enunciativos ou injuntivos.

Acrescentamos que, com o advento da Pragmática e de outras ciências que consideram os constituintes da língua a partir de sua abordagem transfrástica, ganhou ênfase o estudo do discurso, o que ocasionou, segundo Koch (2000), o aumento considerável de pesquisas versando em argumentação e retórica. De acordo com Angelim e Pauliukonis (1996), surgiram investimentos direcionados para o entendimento da relação lógica que permeia o texto argumentativo, quer pelo conjunto de mecanismos lingüísticos inseridos no âmbito da frase, ou pelos elementos que constituem a macroestrutura do discurso.

Em face tal constatação, os conectivos, principalmente conjunções e/ou locuções afins, podem ser exemplos de mecanismos que instauram no texto um ambiente semântico propício à coerência textual. Fica claro, dessa forma, que o fato de selecionar alguns elementos já implica a importância e a pertinência deles no discurso. Por conseguinte, o ato de interpretar passa a ter estreita correspondência com a escolha, consciente ou inconsciente, dos modos de significação por meio desses articuladores textuais.

Oliveira (1996: 187), inclusive, defende a tese de que existe uma correlação entre os conectores e as categorias da argumentação, na macroestrutura do texto argumentativo, que pode ocorrer da seguinte maneira: “os conectores conclusivos são introdutores de tese; os explicativos, introdutores de argumentos; os concessivos, [introdutores de] concessões, e os adversativos, [introdutores de] de restrições”.

Outro aspecto a ser destacado, de acordo com Isócrates (Apud PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1999, p. 50), diz respeito ao fato de “o objetivo de toda argumentação provocar ou aumentar adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento”. Entendemos que, para isso, o argumentador precisa despertar no outro a ação pretendida (ação positiva ou negativa), bem como criar em seu interlocutor a disposição para atar os elos coesivos deixados no texto durante a captura da coerência.

O exercício de argumentar torna-se, então, façanha que requer estratégias discursivas, que permitam ao argumentador obter o chamado acordo com o auditório universal, o que significa, em termos práticos, ser capaz de alternar, no texto, lugares-comuns e lugares-específicos. O primeiro refere-se ao conjunto de argumentos de conhecimento público; e o segundo diz respeito aos argumentos relativos à área do conhecimento. Portanto, a combinação e a seleção de alguns elementos em detrimento de outros é diretamente proporcional à sua indispensabilidade na argumentação.

Complementando o exposto, Perelman (Apud KOCH, 2000),

[...] ressalta que a argumentação visa a provocar ou incrementar a “adesão dos espíritos” às teses apresentadas ao seu assentimento, caracterizando-se, portanto, como um ato de persuasão. Enquanto o ato de convencer se dirige unicamente à razão, através de um raciocínio estritamente lógico e por meio de provas objetivas, sendo, assim, capaz de atingir um “auditório universal”, possuindo caráter puramente demonstrativo e atemporal (as conclusões decorrem naturalmente das premissas, como ocorre no raciocínio matemático), o ato de persuadir, por sua vez, procura atingir a vontade e o sentimento do (s) interlocutor (es), por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis e tem caráter ideológico, subjetivo, temporal, dirigindo-se, pois, a um “auditório particular”: o primeiro conduz a certezas, ao passo que o segundo leva a inferências que podem levar esse auditório – ou parte dele – à adesão dos argumentos apresentados.

Ainda trazendo à baila tal questão, Angelim e Pauliukonis (1996, p. 7), no artigo “Repensando a argumentação textual”, asseveram outro aspecto que deve ser repensado quanto ao texto argumentativo:

Na estruturação do discurso persuasivo usam-se relações lógicas. Cumpre distinguir inicialmente o que caracteriza as relações lógicas do ponto de vista lingüístico, e, a seguir, a distinção tema e objetivo, e, em especial, a conseqüente caracterização do segundo nos será útil na condução às estratégias básicas do discurso argumentativo persuasivo.

No que se reporta ao conceito mais simples do termo tema, refere-se a tudo aquilo que nós falamos; ao passo que objetivo, sob o prisma da argumentação, é a apresentação de um ponto de vista, como se fosse uma espécie de tese que o sujeito argumentador defende como ideal para seu discurso, sempre acompanhado de uma razão persuasiva.

Perelman & Olbrechts-Tyteca (1999) salientam que a questão em tela possui estreita ligação com as características gerais da argumentação, tais como:

...contradição e (In) compatibilidade; o ridículo e seu papel; identidade e definição; analiticidade: análise e tautologias; reciprocidade e transitividade; modelo e antimodelo; parte-todo e todo-parte; argumentos de comparação; argumentação pelo sacrifício; probabilidade e vínculos de sucessão (causal, pragmática e por finalidade); relação ato-pessoa; ligações de coexistência etc.

Ressaltamos que não basta ao produtor ter somente leituras e vasta experiência de vida, pois terá também saber utilizar os elementos lingüísticos para expressar seus pensamentos e levar o outro a crer em seu ponto de vista. Nesse sentido, Angelim e Pauliukonis (1996, p. 39) fazem uma ponderação de grande relevância: “[...] os elementos lingüísticos não apenas transmitem informações sobre a realidade, mas funcionam sobretudo como instrumentos de pressão persuasiva do sujeito/comunicante sobre o receptor/sujeito interpretante [...]”.

Assim, buscamos o ponto de equilíbrio entre conhecimento lingüístico e conhecimento de mundo, considerando que é da fusão dessas duas facetas que poderemos retratar as situações comunicativas presentes na mente do emissor para um suposto receptor. Nessa linha de raciocínio, o texto argumentativo vai passar pelo que Charaudeau (1992: 638) denomina papéis dos sujeitos na comunicação, em cuja teoria tais elementos aparecem distribuídos na seguinte disposição: circuito externo (seres de existência real: eu – comunicante e tu – interpretante) e circuito interno (entidades do discurso: eu – enunciador e tu – destinatário).

A utilidade da terminologia está no fato de compreendermos que a partir dela há duas pessoas (fundidas num mesmo emissor) que enviam a mensagem – uma do mundo real (sujeito comunicante) e outra que encena um discurso em função da imagem que construiu do outro (sujeito enunciador) – e encontramos duas que recebem a mensagem – a primeira (sujeito destinatário) corresponde a um perfil traçado mentalmente por quem envia o texto, e a segunda (sujeito interpretante) encarrega-se de ser o receptor final, podendo aceitar, ou não, o que lhe foi enviado.

No caso de um texto literário como o Sermão da Sexagésima (que vamos analisar mais adiante): o sujeito comunicante é padre Antônio Vieira; o sujeito enunciador (ou “eu lírico”) é um autor sensível aos problemas existentes na sociedade da época e que se ampara em sua vasta erudição para formular um texto conceptista e eloqüente, capaz de convencer e persuadir os ouvintes de seu sermão. Quando ocorre total aceitação por parte do sujeito interpretante e/ou do auditório (na época, os ouvintes; hoje, os leitores do sermão), significa que o projeto de comunicação (plano mentalmente traçado por quem transmitiu a mensagem) foi bem sucedido.

 

Um reencontro com algumas est ratégias argumentativas
de Padre Antônio Vieira, em Sermão da Sexagésima

Nesta seção, pretendemos discutir um fragmento do célebre Sermão da Sexagésima, baseado na parábola do semeador (Mateus XIII, 4-23), conforme pode ser observado a seguir:

O Sermão há de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exist, qui seminat, seminare sêmen. Semeou uma só semente, e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher cousa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para o leste, outro para o oeste, como poderia ser a viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto, e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro vai para outro vento, que se há de colher senão vento? O Batista converteria muitos em Judéia, mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini; a preparação para o reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas, mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, ei Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto, e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora: Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser de uma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.

Há de tomar o pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há que dividi-la para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de ampliá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de impugnar e refutar com toda força da eloq6uência os argumentos contrários, e depois há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar demais alto. Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da mesma matéria, e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos?

Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem troncos, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim, há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só matéria. Deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria, e continuados nela. Estes ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios, há de ter flores, que são as sentenças, e por remate de tudo há de ter frutos, que o fruto e o fim a que se há de ordenar o sermão. De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos, mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são tro9ncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são troncos, não é sermão, são verças. Se tudo são varas, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos não pode ser; porque não há frutos sem árvores. Assim que nesta árvore, a que podemos chamar árvore da vida, há de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos, mas tudo isto nascido e formado de um só tronco, e esse não levantado do ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. (VIEIRA Apud PLATÃO; FIORIN,  p. 294-5).

Um discurso, para ser elaborado satisfatoriamente, precisa harmonizar estruturas próprias da língua com elementos extralingüísticos. Em Sermão da Sexagésima, Vieira realizou os movimentos de retroação e avanço, sem deixar que o leitor se perdesse, ao fazer os movimentos cognitivo-discursivos necessários à construção dos efeitos de sentido que foram engendrados na tessitura.

O autor, apesar de ter pregado para um público específico, soube exercitar com sucesso uma das técnicas da argumentação, que consiste em direcionar a pregação para um auditório universal, a fim de transmitir a mensagem desejada para um público específico. Para isso, fez com que os argumentos fossem construídos a partir de analogias, de modo a gerarem uma eloqüência sagrada que tanto persuadiu quanto convenceu seu auditório.

No que tange ao sucesso ou insucesso da prédica, embora estejamos diante de um texto produzido em plena efervescência do barroquismo (GARCIA, 1998), devido a seu caráter conceptista, a obra é concebida a partir da organização lógica dos argumentos (algumas vezes introduzidos por conjunções explicativas: “porque” e “por isso”, no fragmento analisado) que, sempre pospostos a assertivas classificadas como tese, juntamente com as inúmeras frases interrogativas como sendo paráfrases das assertivas mencionadas, facilitaram sobremaneira o entendimento da macroestrutura do texto, possibilitando uma relação dialógica entre o texto, o escritor e seu hipotético leitor.

No segundo parágrafo, emerge a confirmação das idéias supracitadas, quando, no âmago do Sermão da Sexagésima, ensina os procedimentos necessários a uma constituição adequada de um sermão, a saber: argumento de autoridade; raciocínio baseado em relações lógicas, exposição de causas, efeitos, circunstâncias, exemplos, ilustrações e outros; busca de unidade na variedade de discursos. Trata-se, pois, de mais que uma espécie de metalinguagem, visto que é a própria linguagem que desdobra sobre si e para si mesma nas tramas enigmáticas do “verbo”.

No parágrafo conclusivo, pelo veio da analogia, formula a comparação entre o sermão e a árvore, fazendo com que o leitor compreenda que a essência da vida está na conversão e nos exemplos. Em outras palavras, é possível estabelecermos as seguintes correlações: Evangelho – raiz de uma árvore; matéria – ramos; palavras – folhas; vícios – varas; flores – organização discursiva; fruto – finalidade. Pa ra isso, não faz economia de paralelismos sintáticos, estratégia argumentativa que ainda torna seu modo de dizer mais enfático e expressivo.

 

Considerações finais

À guisa de conclusão, tomaremos de empréstimo os dizeres de Abreu (2004: 99) acerca do poder das palavras em textos do modo argumentativo:

As palavras são como fios, com os quais vamos tecendo nossas idéias, em forma de texto. Quando falamos ou escrevemos, vamos retirando de nossa memória as palavras que vamos utilizar. [...] As palavras não são etiquetas que colocamos sobre os objetos, as pessoas, as idéias, os sentimentos, mas maneiras de representar tudo isso. [...] As palavras têm enorme influência em nossa argumentação.

Enfim, procuramos mostrar que o Sermão da Sexagésima, apesar de escrito há cerca de quatro séculos, não nos impressiona apenas pela riqueza de estilo, inclusive com citações em latim, mas, principalmente, por se tratar de uma obra que, pelo abundante quantitativo de estratégias argumentativas, consegue atrair a atenção do leitor para as questões abordadas, com um vigor tal, que a linguagem retratada no texto vence as dobras do tempo e oportuniza o reencontro do leitor com temas do passado que permanecem atuais na contemporaneidade. A leitura de o Sermão da Sexagésima, portanto, instiga-nos: seminare semen!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Antônio Soárez. A arte de argumentar. 7ª ed. São Paulo: Ateliê, 2004.

ANGELIM, Regina Célia Cabral. Repensando a argumentação textual. In: SANTOS, Leonor Werneck (org.). Discurso, coesão, argumentação. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.

PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino. Comparação e argumentação: duas noções complementares. In: SANTOS, Leonor Werneck (org.). Discurso, coesão, argumentação. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.

MATEUS, XIII, 4-23.In: Bíblia Sagrada. 16ª ed. São Paulo: Paulinas, 1987.

CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachett, 1992.

GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação em prosa moderna. 18ª ed. São Paulo: contexto, 1998.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2000.

OLIVEIRA, Helênio Fonseca. Categorias do modo argumentativo de organização do discurso e relatores. In: GÄRTNER, Eberhard et alii. Estudos de lingüística textual do português. Frankfurt: TFM, 2000.

PERELMAN, Chaim & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

PLATÃO, Francisco Savioli; FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1999. [Sermão da Sexagésima, de padre Antônio Vieira].

 

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