BERNARDO ÉLIS: O UNIVERSO DISCURSIVO DE “A ENXADA”

Anete Mariza Torres Di Gregorio (UERJ e UNIG)

 

Penetrar nos meandros do discurso narrativo de A Enxada implica escolher um percurso de leitura, dentre outros possíveis.

Para tal, propomos uma leitura à luz da teoria Semiolingüística de Patrick Charaudeau, utilizando alguns pressupostos teóricos de sua análise semiolingüística do discurso, com ênfase ao conceito de contrato de comunicação.

O discurso literário de A Enxada enquadra-se no gênero ficção conto e, poderíamos dizer, no subgênero conto regionalista, filiando-se à corrente pós-moderna da prosa brasileira (dos anos 60 aos nossos dias).

Cada esfera discursiva (tipo de texto, conforme denomina Patrick Charaudeau) possui um contrato de comunicação. Por conseguinte, cada esfera discursiva, gênero ou subgênero tem suas peculiaridades contratuais.

Charaudeau (1983: 54) assim define contrato de comunicação: “É um ritual sociodiscursivo [socio-langagier] constituído pelo conjunto das restrições que codificam as práticas sociodiscursivas [socio-langagières] e que resultam das condições de produção e de interpretação (circunstâncias de discurso) do ato de linguagem.”

O contrato de comunicação – como depreendemos pelo conceito exposto anteriormente – estipula os limites das ações de produção e de interpretação dos sujeitos da comunicação. Neste caso, do Eu-comunicante (falante ou escritor) e do Tu-interpretante (ouvinte ou leitor – e interpretador de texto oral ou escrito).

O escritor, portanto, necessita saber quais as “concessões” e as “interdições” que regulam o contrato de comunicação do gênero textual em que sua obra se enquadra. O leitor, por sua vez, ao escolher o livro e iniciar a sua leitura, demonstra que está disposto a aceitar o contrato de comunicação daquele gênero de texto.

Sendo A Enxada um conto regionalista, Bernardo Élis tem de observar o contrato de comunicação subjacente ao seu projeto de escritura, para que este possa ser executado com sucesso. “Um ato de linguagem participa sempre de um projeto global de comunicação”, como declara Charaudeau (1983: 50).

Na preparação de seu projeto de escritura, o autor de uma prosa regionalista enfrenta o desafio de criar um ambiente verbal revestido, sempre que possível, de roupagens locais. Depara-se, pois, com o problema da linguagem, que deve ser elaborada cuidadosamente pelo escritor, visando ao alcance de seu objetivo.

Essa é a expectativa da crítica e do leitor do gênero textual em questão, apreciadores do sabor regional.

Em se tratando de o discurso literário, a linguagem não pode ser vista como representação fidedigna dos falares da região, mas sim como a “estilização culta” desse linguajar.

No tocante ao aprimoramento da linguagem, Bernardo Élis cumpre, com rigor, o contrato de comunicação que subjaz ao conto A Enxada. De tal maneira, que seu texto vem acompanhado de sessenta e nove notas (107-110)* de Evanildo Bechara que, como leitor proficiente, orienta o leitor que se aventura na descoberta do prazer da prosa regionalista.

Pretendemos demonstrar, neste estudo, as especificidades do processo de construção lingüístico-literário de A Enxada, revelando a sensibilidade e a competência de o autor no manuseio do sistema da Língua Portuguesa, em seus planos fônico, morfológico, sintático, léxico-semântico e estilístico.

Quanto aos aspectos fônicos, o escritor seleciona vocábulos que, com suas alterações fonéticas, caracterizam o falar regional. As mudanças mais freqüentes operam-se por meio de metaplasmos por subtração, metaplasmos por aumento, metaplasmos por transformação e metaplasmos por transposição.

A título de ilustração, destacamos alguns vocábulos:

1. Metaplasmos por subtração: a) aférese: ojeriza > jeriza (85); ainda > inda (97); arranjou > ranjou (97); horror > ror (104); afasta > fasta (105); alosna > losna (107); b) apócope: bênção > bença (89).

 

2. Metaplasmo por aumento: prótese: prevenido > aprevenido (85); pois > apois (87); niagem > aniagem (98); suceder > assuceder (99).

Esses metaplasmos, tanto a aférese (queda de fonema no início da palavra) quanto a prótese (aumento de som no começo do vocábulo) eram muito comuns no português arcaico – cf. Coutinho (1976: 146/147).

 

3. Metaplasmos por transformação:

a) sonorização: cuspe > guspe (85);

Bechara diz que essa alteração fonética (permuta de um fonema surdo por um sonoro homorgânico) ocorre em alguns falares brasileiros. Registra a escolha de Bernardo Élis, neste conto, pela forma com g-: “guspinhou”, “guspiu”, “gusparada” (cf. nota 5 da pág. 107).

b)   monotongação: besouro > besoro (104);

c)   assimilação parcial: mourão > moirão (89); açularado > açulerado (89);

d)   dissimilação: rastro > rasto (86).


 

4. Metaplasmo por transposição: metátese: pergunte > pregunte (90/99).

Em relação ao vocábulo “pregunte”, há o registro de pergunta em vez de “pregunta”. Isso ocorre em uma situação comunicativa tensa (o protagonista da história dirige-se a um desconhecido), o que, provavelmente, faz com que ele use a forma diferente da habitualmente empregada em sua comunidade lingüística, como se quisesse mostrar que também tem acesso ao diassistema da língua, embora timidamente:

“– Seu moço, num vê que tou aqui com uma roça de arroz no ponto de planta e num tem enxada? Com perdão da pergunta, mas será que mecê não tem por lá alguma enxada assim meia velha pra ceder para a gente?” (88)

Encontramos outras evidências pertinentes a esse fato: quer, colher (manutenção do “r” final), palavras utilizadas em circunstâncias interativas formais:

“– A gente não quer de graça. É só colher a roça, a gente paga...” (84)

O conto A Enxada situa-se na década de 60 (1966), momento em que surge a sociolingüística e seus procedimentos de pesquisa. De modo que o escritor tira proveito dos conhecimentos advindos dessa área e procura “captar a imagem da fala nos seus diferentes registros” – cf. Pinto, 1988: 11.

É isso que se espera dos grandes autores da época. Podemos dizer, pois, que esta é uma “regra” prevista no contrato de comunicação da literatura brasileira pós-moderna, desde os anos 60.

No que tange aos aspectos morfológicos, o autor explora as classes de palavras mais adequadas para pôr em prática o seu projeto de escritura: dar ao texto feições de cor local. Dentre as classes marcantes em A Enxada, detectamos: pronomes pessoais (e formas de tratamento), verbo, advérbio de negação, preposição e conjunção.

1-  Pronomes pessoais (e formas de tratamento): ocê (94); mecê (84/88); a gente (84/88).

O pronome pessoal “você”, como sabemos, origina-se de vosmecê < vossemecê < Vossa Mercê. No texto, aparece em duas formas reduzidas: ocê (você) e mecê (vosmecê), caracterizadoras de um falar de regiões interioranas do nosso país.

O segundo fragmento do conto, citado anteriormente, mostra o protagonista em um diálogo cerimonioso, usando a gente (nós) com a concordância verbal de acordo com as regras da gramática normativa.

O exemplo a seguir evidencia uma situação comunicativa intimidante. Para intensificar a coação que o locutor quer exercer sobre o interlocutor, vemos o recurso pleonástico do pronome pessoal. É preciso não deixar dúvidas acerca de o destinatário:

“[...] Vão te trazer ocê debaixo de facão, vão te meter ocê na cadeia que é pra não sair nunca mais. Põe bem sentido nisso e pensa sua vida direito, olha lá! [...]” (94)

Bernardo Élis explora as formas de tratamento nhô (redução de sinhô/senhor) e Nossinhô (Nosso Sinhô/ Nosso Senhor), empregadas pelos escravos africanos – cf. Pinto, 1992: 22.

– E a enxada, adonde que ela está, nhô? (85)

[...] As restantes eram de santos de negro e de pobres e não podiam ter a imponência, a intimação das outras, que isso até era mesmo uma determinação de Deus Nossinhô. [...] (105)


 

2-  Verbo: deve de tratar (84); devia de ter (92).

Mário de Andrade, no capítulo “Psicologia da Ação”, de sua Gramatiquinha, aponta o verbo dever regido pela preposição de como um falar típico de certas regiões do Brasil. Mário justifica esse uso, projetando a seguinte regra: “Nos verbos seguidos de outro infinito e que incorrem na significação de estar obrigado a. Deve ter havido contaminação: Dever por estar na obrigação de; Inventar por lembrar-se de; Prometer por?...” (Pinto, 1990: 392):

“[...] A bem que devia de ter uma lei, devia de ter um delegado só para não deixar que gente de tanto talento que nem o Homero se perdesse na bebedeira.” (92)

 

3– Advérbio de negação: num/não (84); não... não (92).

Interessa-nos chamar atenção para a negação dupla, fato que Mário de Andrade anota como fala do povo, esclarecendo o que ele denomina “povo”: “é o desprovido de qualquer preconceito ou influência literária”. (In: Pinto, 1990: 396).

Bernardo Élis, pós-modernista, inclui o uso em seu discurso literário:

O conhecido não tinha, pois agora não mexia mais com fazenda não. (92)

 

4– Preposições: pra (84), para; procê (84), para você; praquele (84), para aquele; presse (94), para esse; chega (87), até.

Quanto à forma reduzida pra e as contratas procê, praquele, presse e outras, lembremo-nos que foram formas utilizadas e defendidas veementemente por Mário de Andrade, no movimento modernista – cf. Pinto, 1990: 179.

Se no modernismo o emprego das formas contratas era visto como exagero, levando o próprio Mário a reconhecer que era “forçar a tinta” para imprimir brasilidade ao falar, no pós-modernismo é considerado natural, ou seja, já está devidamente incorporado ao discurso literário:

“[...] – Quero mostrar presse delegadinho de bobagem que nele você passou a perna, mas que eu, ...” (94)

 

5 – Conjunções: mais (83), e; mode (90), a fim de.

A substituição da conjunção coordenativa aditiva e pela expressão mais é típica da linguagem popular:

“[...] chegou no sítio de Seu Joaquim Faleiro [...], no momento em que a mulher mais os filhos estavam sapecando um capado matado indagorinha.” (83)

Já a troca da conjunção subordinativa final a fim de e equivalentes pelo vocábulo mode caracteriza o falar do interior do país:

“Seu vigário, que já vinha viajeirando desde cedo, aceitou o convite e lá se foram os três rumo ao rancho: [...] e, mais atrás de tudo, o vigário, mode preservar-se dos carrapatos e rodoleiros que por ali davam demais.” (90)

Na linguagem de A Enxada, ressaltamos o emprego do prefixo negativo des-, de caráter regionalista. Segundo Bechara (nota 9, 107), a utilização desse prefixo “onde preferimos o advérbio “não” é grato a Bernardo Élis”:

“[...] Essa tenda é que desdeixava Seu Joaquim emprestar a enxada a Piano,” (85)

Dignos de realce, são os seguintes vocábulos onomatopéicos encontrados em Bernardo Élis, nenhum deles dicionarizado: trilili/cricricri, sapear/coaxar e grogolé/chuá (?).

“[...] O ermo como que alargado com o trilili dos grilos, com o sapear da saparia e o grogolé da enxurrada crescida na grota, onde indagorinha as saracuras apitavam.” (98)

A respeito de os aspectos sintáticos, é no campo da concordância nominal que Bernardo Élis marca a estilização de seu texto:

“[...] Seu Joaquim mais um cunhado se afastavam pelo trilheiro tortuoso da frente da casa, [...]” (95)

O dicionário registra trilheira, palavra feminina. O uso de trilheiro ocorre por analogia à palavra masculina trilho.

No próximo exemplo, verificamos a flexão da palavra invariável exceto:

“[...] A bem dizer, chegaram hóspedes em todas as casas, excetas as casas dos graúdos, [...]” (104)

Com referência aos aspectos léxico-semânticos, há pouco a acrescentar, após o primoroso trabalho de Evanildo Bechara, em notas complementares ao texto. Entretanto, gostaríamos de citar: capado (83): carneiro ou bode castrado. No Brasil, porco castrado que se destina a engorda; caititu (86): porco-do-mato; jataí (87): abelha; jaó (93): designação comum a várias espécies de aves; nhambu (93): variante de inhambu: ave; sezão (85): malária; dieta de quinino (100): popular sulfato de “quinina”: alcalóide da quina usado como antimalárico e antipirético; chouto (96): trote miúdo e incômodo; peia (103): prisão de corda ou de ferro que segura os pés das bestas.

Um olhar atento às notas de Bechara e uma espiada nas palavras aqui citadas, permite-nos confirmar que é através do aperfeiçoamento do léxico que, estrategicamente, o autor regionalista põe em curso o seu projeto de escritura.

Os elementos lexicais reconstituem o cenário da região (fauna, flora, aspectos geográficos específicos, costumes, cultura local), conferindo ao texto um matiz típico. Essa “ambientação” é, sem dúvida, uma exigência do contrato de comunicação da prosa regionalista.

Ao construir a “ambientação”, Bernardo Élis tira proveito de um dos traços culturais mais acentuados do povo interiorano: o sentimento de religiosidade.

Para isso, elabora um campo semântico com uma gama de referentes ligados à Igreja Católica que, na década de 60, tinha o monopólio dos fiéis. Encontramos uma série de nomes de santos: Santa Bárbara (96), Santa Luzia (99), Nossa Senhora da Guia (103), Divino Espírito Santo (103), São Benedito (105), Santa Ifigênia (105) e do Supremo Deus Nossinhô (105); além de palavras e expressões desse universo, tais quais: pelo-sinal (89), bentinho (102), mordomos (105), verônicas (105):

A todo baque da porteira, Olaia se benzia: “Se for o Cão, tesconjuro. Se for viajante, Senhora da Guia que te guie, filho de Deus!” Hábito velho. (89)

No fluxo da trama, o autor faz alusão à religiosidade introduzida no dia-a-dia do povo, de tal forma que a passagem do tempo cronológico é marcada por analogia à duração de práticas religiosas:

“[...] Seu Joaquim permaneceu silencioso e de cara fechada o tanto de se rezar uma ave-maria, [...]” (84)

Quanto às escolhas lexicais, focalizamos as relativas à caracterização de Elpídio (patrão/“dono” de Supriano) e à de sua família (Olaia/mulher e bobo/filho).

Há palavras reveladoras de autoritarismo, portanto, de intransigência referidas ao personagem Elpídio: comandou (86), exigia (86), decretou (87), rei (87), chefão (87), tenência (94):

“[...] Já indo de ida, o Elpídio muito rei na sua homência decretou pro riba dos ombros: [...]” (87)

O léxico tipificador das personagens Olaia e bobo é fortemente depreciativo, como demonstram os fragmentos a seguir:

[...] continuava Olaia espasmodicamente a falar e, com o beiço inferior esticado, [...] (97)

[...] foi onde estava o bobo e pegou [Piano] a chamá-lo. O mentecapto roncava, [...] O bicho levantou-se zonzo, [...] Piano lhe fez acenos até que o animal se dispôs a sair [...] amarrou [Piano] nos rins um dos baixeiros que serviam de cama ao doente [...] (98)

O fragmento acima pertence a um só parágrafo. Como observamos, a depreciação ocorre por um processo de gradação semântica “circular”: bobo, mentecapto, bicho, animal, doente, não há saída para a personagem. A primeira palavra é bobo e a última, doente. Sabemos que ambas são vistas como equivalentes em um repertório popular.

A respeito de os aspectos estilísticos, cabe-nos um esclarecimento. Tratá-los, agora, em separado e em uma perspectiva geral é simples questão de realce, de ativar a sensibilidade do leitor para melhor apreciação da capacidade de o escritor em “artistificar” (expressão usada por Mário de Andrade, que, aqui, tomo de empréstimo) a linguagem, matéria-prima de seu ofício.

Como pode ser verificado, já aludimos a alguns deles, à medida que explanamos os diferentes planos do sistema lingüístico. Daremos relevo, então, aos seguintes recursos expressivos: aliteração, pleonasmo intensivo, personificação, enlace inusitado, comparação, trazendo à baila alguns fragmentos para ilustrá-los.

1– Aliteração:

“[...] Num xixixi chiava a chuva fina na saroba que afogava o rancho. [...]” (97)

 

2– Pleonasmo intensivo:

“[...] E tiraram para fora o fuzilão preto, muito grande demais. [...]” (101/102)

 

3– Personificação:

“Os periquitos que roíam o olho dos buritis da vargem esparramaram seu vôo verdolengo numa algazarra de menino, porque o baque de um tiro sacudiu o frio da manhã. Nalgum ponto, umas araras ralharam severas.” (103)

Esse exemplo requer um breve comentário. Parece-nos que a personificação incorpora a função de um “on”, definido por Charaudeau como sujeito coletivo que manifesta sua indignação com as injustiças sociais veiculadas pela obra, colaborando com o autor em seu projeto de comunicação. Assim, o leitor é envolvido e torna-se, nesse sentimento de revolta, um cúmplice.

Para conseguir a aprovação do leitor à sua visão de mundo, o Eu-comunicante tem o auxílio do “on”, habitualmente empregado com a finalidade estratégica de impossibilitar o questionamento do que é dito – cf. Oliveira (2003: 32).

 

4– Enlace inusitado:

“Gotas gordas debulhavam do céu, esborrachavam nos galhos do jatobazeiro e nas suas folhas duras, molhando as costas de Piano, sua cabeça, o mato ao redor. [...]” (97)

 

5– Comparação:

Mesmo de noite o camarada ficava de orelha em pé, que nem coelho. (88)

[...] Diziam que fuçava na lama tal e qual um porco dos mais atentados. [...] (89)

[...] e lhe veio desta certeza um grande descanso, tamanho que deu um assopro igual ao de um cavalo no espojo, e os músculos relaxaram de vez. [...] (97)

[...] Os ouvidos de Piano tiniam como se ele estivesse com dieta de quinino, mas eram as bigornas malhando. [...] (99/100)

A comparação é o recurso expressivo mais explorado em A Enxada, manifestando-se, como vimos, através de diversos elementos comparativos: que nem, tal e qual, igual ao, como. Funciona, em nosso entender, como estratégia discursiva empregada pelo autor para demonstrar conhecimento não só sobre a linguagem do homem do campo, mas também acerca de seu mundo circundante. Afinal, não nos esqueçamos de que ao projeto de escritura de Bernardo Élis subjaz o contrato de comunicação da prosa regionalista.

Em A Enxada, Élis deixa entrever um certo cuidado com o Eu-enunciador, que é a imagem de si mesmo que o Eu-comunicante deseja transmitir para o Tu-interpretante.

Com receio de que o leitor (o Tu-interpretante) rejeite o Eu-enunciador, Bernardo (o Eu-comunicante) sinaliza ao leitor os obstáculos encontrados para efetuar o seu projeto de escritura. Se ler uma prosa regionalista requer esforço para a compreensão de sua linguagem, produzi-la também é uma tarefa árdua, que exige do escritor a realização de uma pesquisa minuciosa sobre os usos lingüísticos regionais. Bernardo Élis coloca, estrategicamente, as explicações condizentes a esse fato, na boca do narrador:

“[...] As palavras eram comidas quase que completamente, restando apenas o miolo. Para alguém que não fosse roceiro os vocábulos seriam ininteligíveis.” (97)

A narrativa de A Enxada permite o deleite ao leitor aficionado pela prosa regionalista. Sua análise não se esgota aqui, neste trabalhinho. Há muito o que investigar, como o “ça” que ecoa do texto, os rituais de abordagem, o jogo intertextual com os ditos populares etc.

O conto A Enxada ultrapassa os limites do regional, alcança a esfera universal. Supriano é o homem – do campo, da cidade, de Goiás, do Brasil, do mundo – desprovido de forças, produto de uma sociedade desigual.

Bernardo Élis cumpre, como esperamos ter demonstrado, o contrato de comunicação da prosa regionalista. Não há inovações, mas a linguagem literária de seu texto é, sem dúvida, de alta categoria.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHARAUDEAU, Patrick. Langage et Discours: éléments de sémiolinguistique (théorie et pratique). Paris: Hachette, 1983.

COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 7ª ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.

OLIVEIRA, Ieda de. O contrato de comunicação da literatura infantil e juvenil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

PINTO, Edith Pimentel. História da Língua Portuguesa. VI. Século XX. São Paulo: Ática, 1988.

––––––. A Gramatiquinha de Mário de Andrade: Texto e Contexto. São Paulo: Duas Cidades: Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

––––––. A Língua Escrita no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1992.

TELES, Gilberto Mendonça (org.). Estudo e notas do Prof. Evanildo Bechara. Seleta de Bernardo Élis. Rio de Janeiro: José Olympio / INL, 1974.


 


 

* Os números entre parênteses remetem às páginas do texto de A Enxada, edição de 1974.

 

 

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