DIFERENÇA ENTRE FLEXÃO E DERIVAÇÃO

Cristiane de Almeida Pacheco (UERJ)

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo diferenciar flexão e derivação, com a finalidade de mostrar a razão pela qual não se deve ensinar que o substantivo se flexiona em gênero.

Apresentarei o trabalho com uma breve explicação do surgimento do masculino e do feminino no português. Falando sobre as declinações do latim, os casos do latim que permaneceram no português.

Tentarei estabelecer a distinção entre flexão e derivação de acordo com a definição de Câmara Jr., em seu Estrutura da Língua Portuguesa. A seguir descrevei cada um dos processos, derivação e flexão, separadamente.

Ao término do trabalho responderei a questão: “Por que o substantivo não se flexiona em gênero?”

O surgimento do masculino e do feminino no português

Sabemos que língua portuguesa tem origem no latim vulgar. Esse, por sua vez teve a sua no clássico. O latim clássico possuía cinco declinações, mas no latim vulgar se reduziram a três. E após a supressão do neutro, os gêneros se reduziram a dois. Essa redução proveniente da confusão da quinta com a primeira e da quarta com a segunda. Uma das causas dessa redução é que o neutro singular se confundiu com o masculino.

No latim vulgar ocorreu também a redução dos casos. O vocativo conformou-se com o nominativo; e o genitivo, o dativo e o ablativo com o acusativo.

Segundo o professor Ismael de Lima Coutinho, o caso nominativo prevaleceu no romeno, no italiano, no provençal e no francês antigos, e também no rético.

No português e no espanhol o acusativo foi o que permaneceu sendo estas as línguas românicas em que não se verificava a queda do s final.

Surge então uma difícil questão: temos dois gêneros para o substantivo na língua portuguesa, o masculino e o feminino. Porém, grande número de gramáticas de ensino fundamental e médio e também de professores deste segmento insiste em afirmar que esta variação masculino e feminino se dá por meio de flexão.

Dado o que acabei de expor, parto para uma pequena reflexão do que vem a ser FLEXÃO e do que vem a ser DERIVAÇÃO.

A diferença entre derivação e flexão

Para estabelecer a distinção entre derivação e flexão faço uso da definição dada por Câmara Jr. em seu Estrutura da Língua Portuguesa:

“... o gramático latino Varrão (116 a.C. – 26 a.C.) distinguia entre o processo de derivatio voluntaria, que cria novas palavras, e a derivatio naturalis, para indicar modalidades específicas de uma dada palavra.” (CÂMARA JR., 1970: 81)

Pode-se depreender que a derivatio voluntária representa bem a derivação e a derivatio naturalis, a flexão.

Segundo o prof. José Mário Botelho, a derivação é assistemática, aberta e não obrigatória; enquanto que a flexão é sistemática, fechada, obrigatória e possui congruência.

A derivação é o surgimento de uma nova palavra que nos remete a uma dada realidade. A flexão é a formação de novos modos de dizer a mesma palavra.

No vocábulo ferreiro podemos observar claramente a formação de uma nova palavra a partir de ferro através do processo de derivação. O mesmo ocorre em garota em que temos uma nova palavra a partir de garoto através da derivação.

Para Evanildo Bechara a flexão consiste fundamentalmente no morfema aditivo sufixal acrescido de radical, enquanto a derivação consiste no acréscimo ao radical de um sufixo lexical ou derivacional: casa+ s: casas (flexão de plural); casa+ inha: casinha (derivação)

A derivação

Como já foi dito anteriormente a derivação é um processo de formação de novas palavras através do acréscimo de afixos a uma base. E esta nova palavra tem um significado novo e nos remete a um outro ser diferente daquele que a ela deu origem

Por que a derivação é um processo assistemático? Porque não há regras para o surgimento de novas palavras. Há palavras que sofrem a derivação e outras não. Isto dependerá da necessidade que o falante tem em nomear seres, ações, estados, etc.

Mattoso Câmara em sua Estrutura da Língua Portuguesa, 1970, deu-nos um ótimo exemplo:

“Uma derivação pode aparecer par um dado vocábulo e faltar para um vocábulo congênere. De cantar, por exemplo, deriva-se cantarolar, mas não derivações análogas para falar e gritar, outros dois tipos de atividade da voz humana.” (CÂMARA, JR., 1970: 81)

Nesse trabalho não pretendo me ater à derivação prefixal.

Por que é a derivação um processo aberto? Porque existe a possibilidade de fazer ou não a derivação de um dado vocábulo. Razão pela qual denominamos também de não obrigatório.

Eis aqui alguns exemplos de derivação sufixal:

Café – cafezal Oliva– oliveira

Mesa– mesário Sal– salário

Elefante– elefanta Profeta– profetisa

Aluno– aluna

Mais adiante explicarei o porquê desses três pares destacados figurarem entre as derivações.

Há também casos de derivação cuja palavra léxica é a mesma, porém como podemos perceber os significados são distintos:

Veja os exemplos:

O cabeça– líder

A cabeça– uma das grandes divisões do corpo humano constituída por crânio e pela face.

O grama– unidade de peso

A grama– gramínea

O capital– todo bem econômico aplicável a produção

A capital – principal cidade de um país ou estado.

A flexão

Pesquisei em algumas gramáticas escolares acerca da definição para flexão e para minha surpresa não encontrei. Todas elas, no mínimo quatro, trazem o seguinte, ao iniciar o capítulo sobre flexão: “O substantivo flexiona-se em gênero e número.” Mas, porque será que não explicam o que é uma flexão? Tentarei responder a essa indagação mais adiante.

Segundo o prof. José Pereira da Silva, flexão é a modificação que a palavra sofre para concordar com outras. A flexão é formar modos de dizer a mesma palavra.

Por que a flexão é um processo sistemático, fechado, obrigatório, e de congruência (ou concordância)? “No plano sintagmático, a flexão provoca o fenômeno da concordância: móvel novo > móveis novos em oposição a a casa nova > a casinha nova.” (BECHARA, 1999: 341)

Quando pensamos em construir um sintagma, primeiro nos vêm à mente o gênero do substantivo que é o determinado e os outros componentes da frase, os adjuntos adnominais, que são os determinantes sofrem uma sistematização, uma obrigatoriedade em concordar como determinado.

Sendo assim, começamos a entender que o que se flexiona é o artigo, o pronome, o adjetivo e não o substantivo, uma vez que o gênero no substantivo é algo que é definido pela própria realidade por ele representada.

Vamos analisar o seguinte exemplo: A linda menina está feliz. A palavra menina traz em si a marca de gênero feminino a que se denomina sufixo derivacional.

Por que o substantivo não se flexiona em gênero?

Conforme foi definido anteriormente, a derivação é o processo pelo qual formamos uma nova palavra, ou seja, se o acréscimo de um morfema traz nova significação é derivação.

As gramáticas escolares, de um modo geral, trazem a questão da variação de gênero no substantivo como flexão.

Agora vamos pensar: Se ao acrescentar o sufixo derivacional a à base do vocábulo menino, tem-se não só uma nova palavra como também um novo significado bem diferente do anterior. Desta forma, não há flexão de menino para menina, e sim derivação.

O prof. Evanildo Bechara em sua Gramática Escolar da Língua Portuguesa na página 91, define bem essa questão: “... esta determinação genérica não se manifesta no substantivo da mesma maneira que está representada no adjetivo ou pronome, isto é, pelo processo da flexão, mas por derivação.”

O nobre lingüista Câmara Jr. já nos alertava: “A flexão de gênero é exposta de maneira incoerente e confusa nas gramáticas tradicionais do português.” (CÂMARA JR.; 1970: 88). Isto deveras se confirma na leitura que fiz de algumas gramáticas, excetuando-se, é claro, as de autoria do prof. Evanildo Bechara.

A título de exemplificar tal confusão cometida pelos autores de gramática, destaco o seguinte trecho de uma obra bastante comentada e utilizada, a Nova Gramática do Português Contemporâneo, dos autores Celso Cunha e Lindley Cintra:

“Os substantivos que designam pessoas e animais costumam flexionar-se em gênero, isto é, têm geralmente uma forma para indicar os seres do sexo masculino e outra para indicar os do sexo feminino.” (CUNHA eCINTRA, 2001: 190)

Após essa definição que afirma ser a designação de gênero no substantivo uma flexão, há uma contradição, pois o autor afirma: “A forma do feminino pode ser derivada do radical do masculino, mediante a substituição ou o acréscimo de desinências: aluno/ aluna; cantor/cantora”.

CONCLUSÃO

De acordo com o já posto, concluo este trabalho feliz porque pude compreender a importância do aprofundamento dos estudos gramaticais para o professor que deseja o melhor aproveitamento do ensino ao alunado.

Que esta lição permaneça: O substantivo não se flexiona em gênero, mas sim sofre uma sufixação que gera uma derivação, o surgimento de uma palavra semanticamente diferente da anterior

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003

––––––. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna. 2002

CÂMARA Jr., Joaquim Matoso. Estrutura da Língua Portuguesa. 37ª ed. Petrópolis: Vozes 2005.

BOTELHO, José Mário. O gênero imanente do substantivo no português. Rio de Janeiro: JMBotelho, 2005.

COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 2005.

CUNHA, Celso e CINTRA, Luís F. Lindley. Nova Gramática do português contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001

MESQUITA, Roberto Melo. Gramática da língua portuguesa. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

INFANTE, Ulisses. Curso de gramática: aplicada aos textos. São Paulo: Scipione, 2001.

TUFANO, Douglas. Estudos de língua portuguesa: gramática. 2ª ed. ampl. São Paulo: Moderna, 1990.

 

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