EMPRÉSTIMO QUE DISPENSA LEGISLAÇÃO

Lázaro Manhães Simões (UENF)

A propósito da intenção de alguns legisladores brasileiros em estabelecer regras para o uso de palavras estrangeiras, este estudo trabalha com a hipótese de que a língua falada por uma nação ou povo recebe amparo a partir do aumento da extensão de suas próprias bases e, ao mesmo tempo, da importação prudente.

A presença de palavras e expressões estrangeiras no dia a dia da sociedade brasileira passou a ser tema rotineiro das discussões políticas a partir do ano de 1999, com o projeto de lei 1.676, de autoria do deputado federal Aldo Rebelo. O projeto dispõe sobre a atualização, baseada em parecer da Academia Brasileira de Letras, das normas do Formulário Ortográfico, objetivando o aportuguesamento e a inclusão de vocábulos de origem estrangeira no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

A tramitação do projeto de lei supracitado no Senado brasileiro ocasionou, no ano de 2002, a aprovação pela Comissão de Educação de um substitutivo ao projeto original. O novo projeto de lei, oriundo do substitutivo, ordena a tradução de toda palavra grafada em língua estrangeira e dirigida a conhecimento público.

A maioria das palavras e expressões estrangeiras presentes no cotidiano brasileiro possui, notadamente, origem inglesa. O inglês, no seu transcurso histórico, recebeu milhares de palavras de procedência estrangeira; porém igualmente é o idioma que mais coopera com expressões técnicas e vocábulos para outras línguas. É útil procurar entender a expansão do inglês na atualidade mundial, para tanto, levamos em consideração as análises dos sociólogos Renato Ortiz e Octávio Ianni.

Tratando da participação das línguas em uma “situação de globalização marcada por relações de poder” (ORTIZ, 2004), o autor destaca o fato de que desde a constituição do Estado-nação, onde o monopólio da língua tornou-se uma das características primordiais da dinâmica de integração nacional, o pedido importuno de uma referência generalizada a todos possuiria o objetivo de se opor às outras falas existentes. O embate acerca da autoridade, no que tange a língua inglesa como língua internacional, teria, segundo Ortiz, a característica de extrapolação das fronteiras nacionais. A disputa comportaria países possuidores de histórias e culturas distintas, porém o referencial postulado seria a justificativa da proteção e direção do idioma originário. A proposta de regulamentação do uso de palavras estrangeiras reabre a discussão sobre a ocorrência ou não de um referencial como um período mais antigo, livre de impurezas, que seria poluído pela grande utilização, por exemplo, da língua inglesa.

Renato Ortiz assevera que os indivíduos procuram aprender inglês não por conseqüência da idéia de diversidade lingüística, mas sim, devido a procura de uma melhor comunicação e à disponibilidade do aprendizado. Destarte, a autoridade da língua inglesa seria potencializada a partir do momento que as pessoas utilizam-na em suas práticas cotidianas, como, por exemplo, no caso da música pop, onde o inglês é muito utilizado, não obstante de ser compreendido ou não. A legitimidade do inglês seria tamanha que não necessitaria da compreensão daqueles que não o conhecem.

A língua inglesa atravessa fronteiras também por meio de aparelhos como o computador, televisão, fax, telefone móvel e outros. Estes aparelhos estariam, segundo Octávio Ianni, “articulados em si e entre si, seguindo a mesma sistemática, em geral a mesma língua” (IANNI, 2000: 219). A informática e as telecomunicações, ao possibilitarem uma comunicação assincrônica, estimulam o retorno a uma escrita fonética muito bem representada pelo ambiente majoritariamente inglês da Internet, onde cada vez mais não se utiliza na escrita eletrônica a pontuação, a acentuação e a correção gramatical. Tal fato não deve camuflar a mutilação tanto de muitas línguas, quanto das características lingüísticas, porém, também não deve deixar de reconhecer que a alteração da linguagem promovida pelas novas tecnologias, pode, com o passar do tempo, fomentar uma melhor performance da prática social da fala e da escrita, no sentido de filtrar os usos ilegítimos que são aprovados e os que não são. O preceito culto da língua pode não falecer porque internautas cultivadores da hiper-literatura escrevem num dialeto incomum.

Dentre os inúmeros intelectuais brasileiros que discutiram as questões levantadas pelo projeto de lei 1.676, destacamos as proposições do filósofo Sérgio Paulo Rouanet e do lingüista Carlos Alberto Faraco.

Compreendendo que uma legislação que impeça o uso de palavras estrangeiras seria desprovida de sentido no Brasil, onde a questão principal localizaria-se no desconhecimento da língua portuguesa por parte da maioria da população, Rouanet, em artigo publicado na revista “Veja” de 05/01/2005, exemplifica um termo comum na informática, o “deletar”, o filósofo considera

“O neologismo já aceito pelo Aurélio e que, apesar da opinião de alguns puristas, [...] parece muito bem formado, construído a partir de uma raiz impecavelmente latina (delere, destruir, que subsiste no adjetivo indelével)” (ROUANET, 2005: 79).

Em artigo publicado no jornal “Folha de São Paulo” de 13/05/2001, Faraco defende a postergação do enfrentamento da questão da presença de expressões estrangeiras no cotidiano brasileiro para priorizarmos a construção de uma nova política lingüística:

Essa nova política deverá, entre outros aspectos, reconhecer o caráter multilingüe do país (o fato de o português ser hegemônico não deve nos cegar para as muitas línguas indígenas, européias e asiáticas que aqui se falam, multiplicidade que constitui parte significativa do patrimônio cultural brasileiro). Ao mesmo tempo, deverá reconhecer a grande e rica diversidade do português falado e escrito aqui, vencendo de vez o mito da língua única e homogênea.

Será preciso incluir, nessa nova política, um combate sistemático a todos os preconceitos linguísticos que afetam nossas relações sociais e que constituem pesado fator de exclusão social. E incluir, ainda, um incentivo permanente à pesquisa científica da complexa realidade linguística nacional e à ampla divulgação de seus resultados, estimulando com isso, por exemplo, um registro mais adequado, em gramáticas e dicionários, da norma padrão real, bem como das demais variedades do português, viabilizando uma comparação sistemática de todas elas, como forma de subsidiar o acesso escolar (hoje tão precarizado) ao padrão oral e escrito. (FARACO, 2001: 23)

No seguimento de sua argumentação, Faraco deixa claro que a questão linguística não seria até o momento uma problemática discutida pela sociedade. Destarte, temos o reflexo do relato do início do presente texto, quando foi demonstrado como o projeto de lei avançou plenamente pelos trâmites do Congresso – espaço privilegiado para verificarmos a repercussão social.

Ao estabelecer a substituição das palavras estrangeiras contidas nas documentações públicas e a criação de comitês para elaboração de léxicos tanto no campo científico, quanto na imprensa, o projeto de lei estimula uma burocracia que provavelmente não dará em nada e não retirará a praticidade de palavras como “radar”, “laser”, “motel”, dentre outras. Mas, deve-se ressaltar que também é real e, destituído de bom senso, a importação de termos estrangeiros sem prudência, como ocorre sobejamente nas agências de propaganda e no setor imobiliário. O comércio de apartamentos, por exemplo, parece que só avança se as edificações possuírem nomes como “comfort suites”, “palace”, “residential” e “parking”.

A língua falada por uma nação ou povo recebe amparo a partir do aumento da extensão de suas próprias bases e, ao mesmo tempo, da importação prudente e do desenvolvimento da capacidade de compreender situações. Antes de tratar-se de uma questão de legislação, trata-se de um tema notadamente cultural. O regime democrático reclama a conservação no meio privado das modalidades de língua e cultura, além do respeito aos fundamentos básicos fixados na Constituição. A democracia real não impõe a cessação das peculiaridades de língua e de cultura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FARACO, C. A. O maiúsculo e o minúsculo. In: Folha de São Paulo. [Mais!]. São Paulo. p. 23, 13 mai. 2001.

IANNI, O. Globalização e nova ordem internacional. In: REIS FILHO, D.; FERREIRA, J.; ZENHA, C. (Org.). O século XX – o tempo das dúvidas: do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 207-223.

ORTIZ, R. As ciências sociais e o inglês. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: v.19, n.54: p. 05-22.

ROUANET, S. P. O nacional-burrismo. In: Veja. São Paulo. n.1886: p. 78-79, 05 jan. 2005.

 

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