Flexão de gênero no nome substantivo
um vislumbro por Mattoso Câmara

Ana Paula Fernandes (UERJ)

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo apresentar as descrições da Gramática Tradicional no que tange a problemática do gênero, assim como compará-las à visão de Mattoso Câmara. A principal obra em que apoiei minhas teorias foi “Estrutura da Língua Portuguesa”. Buscando simplificar algumas questões sobre o gênero, Mattoso fez um vislumbro do que, hoje, deveria ser baseado todo o estudo envolvendo tal questão. Contudo, como o próprio nome diz, o autor fez apenas um vislumbro, ou seja, não desenvolveu, de fato, uma teoria sólida e consistente, mas deu o ponto de partida. Fosse ele vivo, talvez se pudesse aprofundar seus estudos e se chegar a uma proposta bem mais vantajosa da que nossas gramáticas propõem em seus ensinamentos, principalmente nos primeiros anos de escolarização.

Assim, a primeira desmistificação que se tem que tirar das gramáticas é que gênero e sexo têm uma relação intrínseca entre si. Na verdade, esta associação não tem qualquer razão de ser, pelo menos se vista de um ângulo onde ela seja a iniciação de tudo. Esta relação pode até existir, porém nunca como aspecto primordial, como é feito tradicionalmente. Se fizermos uma pesquisa estatística sobre os substantivos que trazem em si uma noção sexual, veremos que a porcentagem é muito mínima e, que portanto, deveriam ser considerados como exceção e não como regra.

É possível considerar, no entanto, que apenas uma parte insignificante dos substantivos (aqueles que se referem a seres sexuados), pode receber uma marca morfológica distintiva de gênero (gato/ gata, abade/ abadessa etc.). Segundo pesquisas já realizadas (ROCHA, 1981), 95, 5% dos substantivos referem-se a seres não-sexuados e 4, 5% a seres sexuados. Mesmo assim, desses 4, 5%, nem todos recebem uma marca morfológica de gênero... (ROCHA, 1998).

Outro aspecto a ser considerado, no entanto, é o tratamento diferenciado com que devem ser tratados os nomes substantivos e adjetivos, pois não se vê aqui, nenhuma similaridade. Ou seja, o gênero não é visto da mesma forma em ambas classes gramaticais. É preciso, portanto, que essa diferença fique clarividente, visto que a Gramática Tradicional não delega um tratamento diferenciado a tais classes gramaticais. Aí está mais uma discrepância cultuada irreflexivamente pela tradição. O que se deve ter em mente, a priori, é que ambos os nomes, substantivos e adjetivos, têm comportamentos distintos: estes últimos sofrem, de fato, um processo flexional; enquanto os primeiros sofrem um processo de atualização do léxico. Estes dois processos serão mais bem explicitados posteriormente ao longo do texto.

Cabe, para tanto, uma explicitação bastante contundente do que vem a ser processo flexional e processo de atualização do léxico, a fim de unir os argumentos para o desenvolvimento de uma assertiva coerente no que se refere à questão do gênero. O processo flexional está no âmbito da flexão, assim como o processo de atualização do léxico está no âmbito da derivação. Então, é necessário definir o que deve ser considerado flexão e o que deve ser considerado derivação, e ainda delimitar bem os limites de cada um desses processos.

A distinção entre os processos de flexão e derivação dentro do sistema da língua portuguesa tem como respaldo a distinção que fez o gramático latino Varrão, no passado, entre Derivatio Voluntaria e Derivatio Naturallis . (Ver CÂMARA Jr., 1985: 81-2 e 1991: 47-52; FREITAS, 1991: 85-7 e SANDMANN, 1991: 23-31).

A derivatio voluntaria é o processo pelo qual uma nova palavra se forma mediante acréscimo de um elemento no final de palavras com alteração ou não de elementos terminais – uma relação aberta. Logo, a formação sufixal (atualização do léxico) pertence a derivatio voluntaria. (...)

A derivatio naturallis é o processo pelo qual uma palavra é adaptada a um contexto, com o acréscimo de uma desinência de caso e de número correspondente à função que exerça na frase, de acordo com a natureza desta, numa relação fechada, indicando uma modalidade específica. Logo, a flexão pertence a derivatio naturallis (BOTELHO, 2005).

Dado estes esclarecimentos, começarei então a apontar os principais problemas da gramática tradicional e a proposta de Mattoso. Como ponto de partida, temos a citação de uma gramática que distingue gênero gramatical e gênero biológico (sexo):

O gênero gramatical é um critério puramente lingüístico, convencional, que divide os substantivos em duas classes: aqueles que exigem nos adjetivos seus dependentes a concordância em –a e/ aqueles que não exigem essa concordância. (...) O gênero biológico é o sexo, categoria lingüisticamente facultativa, dependente do interesse ou necessidade no ato da comunicação (LUFT, 1987).

Partindo dessa definição, e ainda levando em consideração o pequeno número de substantivos sexuados, é dada a incoerência da tradição: primeiro pela incompreensão semântica da natureza desses nomes no que se refere ao sexo e, segundo, pela absurda relação íntima que se faz com o sexo dos seres.

O gênero, quando analisado sob uma perspectiva semântica, apresentará o masculino como forma não-marcada; o feminino, como uma especialização. Isto porque, segundo Mattoso Câmara, o gênero do substantivo é imanente, ou seja, todo o substantivo é privativamente masculino ou privativamente feminino. Isto incorre dizer que para cada substantivo privativamente masculino poderá haverá um, a ele semanticamente associado, privativamente feminino: é o caso, por exemplo, do substantivo mulher – sempre feminino; ou do substantivo homem – sempre masculino. Mattoso abre um parêntese ainda para aqueles substantivos que terão seu gênero a ser determinado pelo contexto, o que chama de nomes a serem determinados pela estrutura frasal. Para tanto, apresenta uma plausível distribuição de gênero que consiste em:

1. Nomes substantivos de gênero único: o carro, a casa, o algoz, a testemunha, o jacaré, a cobra;

2. Nomes de dois gêneros sem flexão: o/a estudante, o/a artista, o/a mártir;

3. Nomes substantivos de dois gêneros com flexão redundante: o lobo/ a loba, o mestre/ a mestra, o autor/ a autora.

Dado a complexidade do tema, essa oposição masculino X feminino deveria ser tratada a partir de uma distinção entre certas qualidades semânticas dos seres:

* jarro (s.m.): vaso alto e bojudo com asa e bico, próprio para conter água.

* Jarra (s.f.): vaso para conter flores ou água.

* Animais e pessoas – distinção de sexo (urso, ursa/ menino, menina)

Observe que, se o gênero pode ser pensado como o masculino sendo uma forma não-marcada e o feminino a forma-marcada, há de se comprovar, a partir de uma descrição dicionarizada, a confirmação dessa assertiva. Levando em consideração, principalmente, a similaridade que as coisas possuem em sua definição: no par jarro/ jarra vimos que ambos são uma forma de vaso, porém a jarra é mais específica que o jarro.

É importante ressaltar, nesse sentido, a importância do dicionário e dos estudos da lexicologia dos fatos especiais. O primeiro tem a função de informar sobre a chamada heteronímia no gênero, que não é mais do que a restrição a um gênero único de determinado membro de um par semanticamente opositivo. Enquanto que esta última é tratada pela gramática com o objetivo de estudar as palavras, sua origem e significação. Portanto, quando a palavra é registrada no dicionário, é dada como uma nova palavra, ou seja, há a formação do léxico – derivação. E, quando a palavra apenas sofre modificações, não é registrada no dicionário – nessas novas formas há flexão.

Nesse contexto, são válidos os estudos teóricos de Mattoso nessa questão envolvendo a problemática do gênero. Porém, apesar de seguir um raciocínio lógico onde tinha todos os argumentos para negar a flexão de gênero no substantivo, afirma que tal fenômeno é, sim, flexão. Tivesse ele vivido mais, talvez seus pressupostos teóricos pudessem ser revistos e reanalisados, já que ele começou bem sua descrição.

Por uma questão que parece óbvia, Mattoso, em hipótese alguma associou a idéia de sexo à noção gramatical. Mas afirmou que a formação do feminino, aproveitando inclusive a nomenclatura da gramática tradicional – vogal temática, desinência-nominal de feminino e tema, é um processo flexional, de forma que pareceu paradoxal a idéia segundo o conceito de flexão. Em sua proposta, admite que os nomes substantivos são determinados pelo determinante que os acompanham.

Como, por outro lado, todos os substantivos em português têm um gênero determinado, dependente ou independente do contexto, há que concluir que não é a flexão do substantivo, em princípio, a marca básica do seu gênero. Com efeito, quer apareça, quer não apareça a flexão, todo nome, em cada contexto, será imperativamente masculino ou feminino.

Em outros termos: o gênero de um substantivo está na flexão do artigo que o determina ou pode determinar (Câmara Jr., 1972: 121-122).

Observe onde se encontra a inconsistência de Mattoso e da tradição. A flexão se distingue da derivação por apresentar:

1) Regularidade – os morfemas flexionais apresentam-se de maneira regular e sistemática;

2) Concordância – os morfemas flexionais são exigidos pela natureza da frase;

3) Não-opcionalidade – os morfemas flexionais não dependem da vontade do falante para serem usados.

Assim, levando em consideração os mais diversos aspectos, o autor acima citado dividiu os nomes substantivos em categorias, onde registra os nomes que podem se flexionar, considerando apenas aqueles animados e aqueles formados por processos distintos como: heteronímia, derivação sufixal, termos designativos e por flexão redundante (o menino/ a menina) – marca de gênero no determinante e no próprio substantivo.

Conclui-se então que, a imanência do gênero nos nomes substantivos é característica geral dessa classe de palavras, enquanto a flexão é particular a alguns. Há, todavia, que se repensar em uma nova descrição sobre essa questão nos compêndios gramaticais: ensinar gênero nos nomes substantivos na base da forma masculino ou feminino do artigo, que eles implicitamente exigem.

E, como é de conhecimento dos gramáticos como bem sinalizou Vendryes, é sabido que a partícula chamada artigo sempre pode ser anteposta implicitamente a um substantivo:

1. partícula pronominal adjetiva: função significativa bem definida;

2. função de marcar, explícita ou implicitamente, o gênero dos nomes substantivos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOTELHO, José Mário. O Gênero Imanente do Substantivo no Português. Rio de Janeiro: JMBotelho, 2004. (Série Acadêmica).

CÂMARA Jr., J. Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

––––––. Dispersos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972.

––––––. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1991.

FREITAS, Horácio Rolim de. Princípios de Morfologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Presença, 1991.

LUFT, Celso Pedro. Moderna Gramática Brasileira. 8ª ed. Rio de Janeiro: [s/ed.?], 1987.

ROCHA, Luiz Carlos de Assis. Estruturas Morfológicas do português. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

SANDMANN, Antônio José. Morgologia geral. São Paulo: Contexto, 1991.

 

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