Ideologia e cultura
em expressões lingüísticas do brasileiro

Arilda Riani

As estratégias do nomear e do dizer, quando o que se diz não é aquilo que se fala, mas aquilo em que se pensa, ensinam que o brasileiro não fala apenas com a língua, mas com o que ele sabe sobre as coisas. A sua prática social discursiva não pode ser reduzida ao exame gramatical e vocabular da expressão lingüística fora de seu uso efetivo.

Os implícitos culturais

Ao contrário do português que é direto e cartesiano ao comunicar-se, o brasileiro mostra enorme flexibilidade e imprecisão no uso que faz da língua. Muitas vezes recorre à interdição lingüística para explicar fatos e fenômenos que não aceita ou não entende, dificultando sobremaneira a sua comunicação. Em outras ocasiões, inventa construções, formula torneios lingüísticos e busca nas entrelinhas um modo de expressão dúbia, de difícil entendimento pelo seu interlocutor, mas perfeitamente compreensível ao que interessa aos seus propósitos.

Na análise de BUARQUE (1975: 112) o brasileiro é um cidadão cuja vida íntima “nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada para envolver e dominar a sua personalidade, integrando-a como peça consciente, no conjunto social”, e que “é livre para se abandonar a todo o repertório de idéias, gestos e formas que encontra em seu caminho, assimilando-os freqüentemente sem maiores dificuldades”. Essa liberdade permite-lhe armar e municiar o discurso no meandro do difuso, valendo-se de expressões e sentenças que carregam no seu bojo conceitos muito pertinentes à dominação social para sustentar desejos ocultos. Alguns axiomas como “cada macaco no seu galho”, “querer é poder”, “filho de peixe, peixinho é” transportam “verdades” inquestionáveis e sedimentadas, guiadas por aspectos morais, culturais e ideológicos que ele exercita com habilidade, valendo-se das estratégias do nomear e do dizer.

Estes recursos, quando o que se diz não é aquilo que se fala, mas aquilo em que se pensa, ensinam que o brasileiro não fala apenas com a língua, mas com o que ele sabe sobre as coisas e sobre a sua cultura.. Essa face oculta do que se diz, aquilo que está na mente mas não é expresso por uma questão de “cordialidade” é uma prática de que se vale para não se expor socialmente e serve como artifício para ocultar-se e evitar conflitos. Ele entende que “atenuar a expressão é não dar uma bofetada com língua áspera e injuriosa” (VIEIRA, 1957: 446), daí valer-se das mais estranhas desculpas e sentenças para se preservar, para não mostrar o seu lado oculto. Estes artifícios fazem parte hoje dos estudos da Análise Crítica do Discurso (SILVEIRA, 2004), vertente sociocognitiva da Lingüística que trata do uso de noções complexas de implícito, ou seja, expressões guiadas por aspectos culturais e ideológicos e que encontra em Teum A. van Dijk o seu maior expoente.

Para tratar do uso efetivo da língua, a Análise Crítica do Discurso procedeu a uma nova diretriz no objeto da Lingüística deixando a de base saussuriana, voltada para o signo, e evoluiu para a textual, para examinar o uso efetivo da língua sob um prisma pragmático no texto e no discurso, com a contribuição de outras categorias analíticas como Cognição, Discurso e Sociedade. O lingüista holandês van Dijk vê no discurso uma prática sociointeracional cujo sucesso decorre da relação dialética entre o individual e o social, entre um evento discursivo particular e as situações discursivas institucionais/ estruturais e sociais. Essa particularidade pode obstruir o que está por trás da mensagem, mas não impede que de uma ou de outra forma ela seja revelada. Assim o vemos na sutileza da pena de Machado de Assis (1965: 534) ao escrever “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis, nada menos”. Esse dizer sutil antecipa um conteúdo sem que o emissor assuma a responsabilidade do dito e permite que a mesma expressão libere subentendidos diferentes que reforçam a possibilidade de novas leituras e novos sentidos. Esta prática cultural e ideológica compartilhada por grupos sociais atua como um auto-esquema representativo dos seus interesses mais profundos e age coercitivamente, podendo definir o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, e controlar, inclusive, o que ele acredita sobre o mundo, retratando uma visão preconceituosa e que não aceita a diversidade (HENRIQUES, 2003).

A Identidade Cultural do Brasileiro

A extensão territorial de proporções continentais do Brasil propiciou herdar a seus filhos uma identidade complexa e uma diversidade cultural tipificada por múltiplas etnias que contribuíram para sua consolidação como nação. Fortalecida por essa pluralidade, a formação histórica do brasileiro encontrou uma unidade para guiar as suas atitudes e contribuir para que o português falado por ele se distanciasse dos usos lingüísticos dos países lusófonos, particularmente de Portugal, a que está historicamente ligado.

Segundo BUARQUE (1975: 106), a marca da identidade cultural do brasileiro é a “cordialidade”, e é ledo engano supor que essa virtude possa conduzir boas maneiras e civilidade; ao contrário, é uma expressão legítima de fundo emotivo extremamente rico. Essa “cordialidade” revela uma identidade lingüística que tanto pode ser encontrada na discutida questão pronominal; na tendência de omitir o nome da família, estratégia psicológica para possibilitar um convívio mais social e envolvimento emotivo com o interlocutor; na atenuação das formas imperativas, empregadas pelo brasileiro quase como um pedido de desculpas, muito diferente do categórico “schifazifavoire”do português; no horror ao ritualismo religioso, traduzido por uma linguagem irreverente, sem lhe parecer desrespeitosa, como o que se ouviu de uma devota: “Peguei o bicho (Santo Antonio), botei de cabeça pra baixo e só vou desvirar quando ele me arranjar um marido!”); na distinção semântica que faz das palavras “cão” e “cachorro”, conseqüência talvez de um tabu lingüístico surgido no ambiente familiar pelo emprego da forma “cão” para designar forças demoníacas, enquanto “cachorro” soa guiado por tonalidade emotiva. O mesmo se explica em relação aos termos “cachorra” e “cadela”, este depreciativo, insultuoso. Refugiam-se em expressões para não mostrar preconceitos ou grosseria, como “fofo” (gordo), “marrom bombom” (mulato), moreninho (negro), feliz idade! (velhice) e tantas outras que atenuam o seu falar deixando-o em paz com o interlocutor. Para traduzir essa “cordialidade” de fachada, o brasileiro inventa termos como “isto é f.!”, “que m.!”, “p.q.p!”, “nerda”, “lherda”; levados pela proximidade fônica, migram nomes para interjeições (“cacilda!”, “caraca!”); escondem-se ardilosamente sob as formas de “não dizer não”, amplamente estudadas por Silveira (2004).

A grande devoção dos brasileiros, entretanto, se concentra nos diminutivos, um particularismo herdado da afetividade da fala rural, que pode facilitar a comunicação em variadas circunstâncias, seja na aproximação (– “Vamos tomar um cafezinho?”), lembrando que o convite para uma cerveja geladinha pode surpreender aos mais incautos pelo inusitado da temperatura da “lourinha”. O diminutivo serve para tirar o sentido ameaçador de certas palavras, e é certo que ao chamar o brasileiro para uma “conversa” ele ficará muito preocupado e arredio, porque sabe perfeitamente a diferença semântica entre “conversa”/ “papinho”, que rola mole, agradável, e “conversa”/”conversinha”, que não é para homem sério, mas coisa de comadres. A função precípua do sufixo –inho que é a afetividade, para o brasileiro contribui ainda por indicar repulsa ou repreensão (“que mãozinha suja!”), valor superlativo (“bananas amarelinhas!”), depreciação (“vou quebrar a cara daquela amarelinha!”) e tantas outras que ele emprega com refinamento para forjar uma personalidade simpática, receptiva.

Conclusão

Cada nação tem seus usos e costumes transmitidos pela linguagem, que interage social e culturalmente sobre os seus indivíduos. Cada língua representa também as peculiaridades do seu povo, a internalização da sua cultura e a maneira original da representação do mundo que ele conhece. Se prestarmos atenção a textos sagrados, podemos deduzir que Cristo, ao recorrer a parábolas, o fazia para evitar situações de difícil conciliação; Labão, ao negar a Jacó o prêmio de Raquel por sete anos de serviços, escusa-se com o expediente de que não era costume da sua terra casarem em primeiro lugar as filhas mais novas, e lhe concede Lia, para atalhar a oportunidade de dizer “não”; um Anjo enviado por Deus, com a função de ouvir Abraão e atender seis dos seus pedidos, ouve pacientemente e os concede, mas, percebendo que este insiste em fazer um sétimo pedido, desaparece súbita e improvisadamente. Embora nesta passagem a linguagem não tenha sido empregada, percebe-se a intenção de fugir à ocasião do desconforto de um “não”.

Estes fatos revelam o conjunto de conhecimentos sociais e comportamentais de um povo, que os assume acolhendo uma tradição e modelos tomados à fala popular e familiar, com o objetivo de preservar a sua face. Não acontece diferente com os brasileiros, que desenvolveram habilidades discursivas sutilíssimas, talvez para “ajardinar” o estilo, como queria José de Alencar, talvez para marcar a identidade brasileira, sim senhor, como defendia Mário de Andrade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Joaquim Maria Machado.Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965.

BANDEIRA, Manuel. (Org.) Mario de Andrade – cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: EDIOURO, 1998.

DIJK, Teum A.. van. Discurso, conhecimento e ideologia: reformulando velhas questões, In: HENRIQUES, Claudio Cezar. (Org.) Linguagem, conhecimento e aplicação. Estudos de Língua e Lingüística. Rio de Janeiro: Europa, 2003.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 15a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

LEITE, Yonne e Callou. Como falam os brasileiros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

SANTOS, Leonor Werneck (Org.). Discurso, Coesão, Argumentação. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.

SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi. Implícitos culturais: ideologia e cultura em expressões lingüísticas do Português brasileiro. In: BASTOS, Neusa Barbosa (ORG.). Língua Portuguesa em Calidoscópio. São Paulo: KDUC/FAPESP, 2004.

VIEIRA, Pe. Antonio. Sermões. São Paulo: Editora das Américas, 1957.

 

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