INFLUÊNCIA DO PORTUGUÊS DE PORTUGAL AINDA HOJE NO BRASIL
estudo de caso de colônias lusas
na cidade do Rio de Janeiro e adjacências,
em relação à Temporalidade no Discurso

Carmen Lucia de Castro Sampaio
André Crim Valente

 

A partir das incursões sobre o tempo, procuramos discutir a temporalidade no discurso e a influência do português de Portugal ainda hoje no Brasil. Diante desse raciocínio, indagamos se o pensamento pode ser determinado pela cultura em que se vive e que sentido toma o tempo, quando o SER está distante da sua pátria.

Buscamos no conteúdo dos textos produzidos pelos portugueses e seus descendentes uma descrição discursivo-funcional dos valores espácio-temporais e a significação das estruturas sintáticas por eles produzidas. Nessa relação entre pensamento e cultura, interessou-nos, em primeiro lugar, distinguir a simultaneidade na diferença intercultural dos portugueses que vivem no Rio de Janeiro; se assumem comportamentos e vivências brasileiros; e como um filho de europeu, nascido e crescido entre os brasileiros, pensa e se comporta diante da relação Brasil – Portugal. Tomamos por base o texto como uma unidade de função. Do ponto de vista semântico, buscamos considerar os diferentes âmbitos em que os itens atuam. Na avaliação das unidades da língua em relação ao texto estas foram consideradas como unidades organizadas dentro de um enunciado para promoverem a interação.

Uma das alternativas para entendermos um pouco dessa convivência entre países tão distantes, mas que têm por suas raízes igualdades que lhes são atribuídas por interferência da língua, é a relação entre tempo/ espaço/ aspecto, proferida no discurso dos nossos entrevistados, de cuja relação surgem novas significações, a partir dos argumentos que envolvem a imagem Brasil – Portugal.

 

O CORPUS

Constituímos o corpus por meio de gravações em diálogos semi-estruturados em presença, segundo a “Teoria Modular da Língua” (MORRIS, 1938, FRANCHI, 1977, 1991, apud  CASTILHO, 2001), que se compõe de três módulos: o discursivo, observadas as negociações no momento da enunciação; o semântico, os sentidos criados; e o gramatical, as relações entre as classes e funções que desempenham no enunciado. Caracterizamos a LF por meio do diálogo em presença, para documentar momentos fundamentais da linguagem: o do planejamento, com entrevistas semi-estruturadas; o da execução verbal, com intercâmbio de informações.

O Corpus foi composto por 100 entrevistas, observando-se as variáveis sociais: sexo, idade e escolaridade. Fixamos amostras de fala nas faixas etárias até 19 anos, de 20 a 40 anos, de 41 a 60 anos e acima de 60 anos, de ambos os sexos. Mediantes essas variáveis, identificamos os referenciadores de tempo, computados em 2237 ocorrências, sendo 1107 masculinas, e 1130 femininas.

Para a discussão dos aspectos teóricos e metodológicos, distinguimos a contribuição de Mattoso Câmara (1975; 2004), Bechara (1985; 1999; 2002), Cunha e Cintra (1995), Abreu (2004) e outros, mostrando que, principalmente estes, já ressaltavam a noção de focalização e possibilidades de mudança na estruturação das cláusulas. Visto isto, buscamos novos subsídios, fundamentando esta pesquisa em outros trabalhos específicos da Língua Portuguesa e da Inglesa e Teses de Doutoramento em Língua Portuguesa. Ainda, seguimos a orientação de Rodolfo Ilari (1985; 1992; 1997), reconhecendo as expressões e construções que indicam tempo, desenvolvendo as metalinguagens adequadas e definindo procedimentos que nos permitissem a distinção das referências temporais nas estruturas sintáticas.

 

INFORMAÇÕES SOBRE OS ENTREVISTADOS

Os enunciados representam a experiência no mundo, promovida pelo intercâmbio e a negociação de papéis entre os interlocutores, controladores do fluxo de informações. Dos entrevistados prevaleceram: Faixa etária: acima de 60, homens; e entre 41-60, mulheres; Escolaridade: o Fundamental completo, homens; e superior completo, mulheres.

A decisão da vinda para o Brasil foi dos pais, embora homens também tenham vindo por conta própria. Quanto ao motivo da vinda, foram apontadas as dificuldades econômicas e o desejo de encontrar familiares que residiam no Brasil.

Os portugueses não tiveram dificuldade de emprego, já que recebiam a “Carta de Chamada”. Até hoje não se sentem discriminados. Os homens, em sua maioria, são comerciantes e as mulheres, do lar.

Apreciam o conjunto natural do Brasil e não tiveram dificuldades de adaptação à língua portuguesa falada neste País. Não ligam às piadas. Eles também as dizem. A constituição da família, o custo de vida são motivos para aqui permanecerem. Vão a Portugal e aqui recebem familiares como visitantes. Praticam a religião católica, repassada por seus antepassados.

 

A PESQUISA

Interessou-nos pesquisar as formas marcadas por um conectivo explícito, a temporalidade inferida da forma nominal do verbo, marcada por um adjunto e a cláusula estruturalmente coordenada e subordinada. Buscamos identificar os aspectos discursivos que controlam as distribuições distintas da temporalidade, catalogando as ocorrências de cláusulas adverbiais temporais, introduzidas ou não por uma conjunção adverbial; cláusulas coordenadas por articuladores que denotem tempo na frase, ou funcionem como um elemento seqüencial no discurso.

Sob o aspecto textual-discursivo, Halliday e Hasan, Koch e Teum Van Dijk propõem a discussão do papel das estruturas de coordenação no discurso “além dos limites da sentença” (FÁVERO & KOCH, 1983: 17).

Os participantes insinuam como e quando o turno pode ser transferido, baseando-se em unidades gramaticais como as palavras, as frases e as cláusulas, com as quais os participantes demonstrarão interação mútua quanto ao entendimento da fala anterior ou para adicionarem um outro turno à seqüência. Muitas vezes, quando o ouvinte supõe que o falante está encerrando o turno, este dá prosseguimento ao discurso, isto é, estende o seu turno, prolongando-o através de uma cláusula adverbial inicial (01):

(01) E: E houve alguma dificuldade quando o senhor chegou no Brasil pra procurar emprego?

        I: Não, eu não fui procurar emprego não. Como disse meus irmãos, o mais velho me comprou uma casa quando eu cheguei aqui em novembro...

        E: Mas continua falando seu Avelino, então...

        I: Então como tinha aqui os meus irmãos, o mais velho me comprou uma casa p’ra eu trabalhar.

        E: Uma casa de quê?

        I: Uma quitanda. Mercearia e quitanda. Depois vendi aquela, comprei a segunda, depois da segunda eu... depois da segunda eu abri... fui trabalhar, mas aí foi por minha conta, num mercado que tinha na Central do Brasil, chamado Mercado Produtor, e estive lá algum tempo, depois aquele mercado botaram embaixo numa sexta-feira às duas horas da tarde mais ou menos, um mercado cheio, éramos uns vinte, vinte e seis firmas, vinte, vinte e seis dentro do mercado. (Avelino)

Nessas falas, observamos a interferência do entrevistador para provocar a extensão do turno do entrevistado e o uso de DEPOIS como um encadeador discursivo, isto é, este marcador serve tão somente para encadear o fluxo das informações, sem interferência temporal marcada. A colocação inicial poderia favorecer a retomada de uma informação anterior, permitindo ao falante a extensão de fundo, que ocorre depois da operação de tomada – de –turno. No sistema de turnos, segundo Sacks[1], a pressão para dar continuidade ou transferir um turno, pelos falantes, leva a crer que eles pretendem produzir mais do que a frase expressa anteriormente. Se observarmos (01), há o controle do fluxo das informações tanto por parte do entrevistador quanto por parte do falante entrevistado. A estruturação do discurso se dá por meio dos elementos que promovem o fluxo discursivo.

Corroborando com os lingüistas funcionais, defendemos a idéia de que “a estrutura da língua reflete de algum modo, a estrutura da experiência” (MARTELOTTA, 2003, p. 30). Interessou-nos, também, verificar se os marcadores coocorrem com a conjunção temporal em posição inicial ou final e se eles interferem na elaboração da mensagem.

Por detectarmos no corpus, além das realizações em subordinação as ocorrências coordenadas, julgamos necessário fixar a posição dos elementos que constituem a comunicação e, em conseqüência, o discurso, a partir da posição que ocupam na frase.

70, 97% das ocorrências têm a utilização de JÁ (420 ocorrências), ENTÃO (288), QUANDO (204), NUNCA (145), AGORA (143), HOJE (130), DEPOIS (106), SEMPRE (96) e Verbo HAVER (56). Outros operadores como NOS IDOS, NAQUELA ÉPOCA, DE VEZ EM QUANDO, por indicarem freqüência e duração, foram discutidos em aspecto e espaço (29.03%). Identificamos se eles funcionam no discurso como indicadores de tempo ou encadeadores discursivos. Ainda, a posição que esses elementos ocupam na estrutura da frase: inicial, sem antecedente; medial, antecedido de outro adjunto ou S / V; final, sem procedente.

·    JÁ (62, 26%), encadeador discursivo, embora também funcione como referencial de tempo; tem a preferência na posição inicial e medial; pode ser seguido de quantificador, comentário, tempo marcado.

·    ENTÃO (77, 22%), encadeador discursivo; desde então-referencial de tempo; posição inicial (92, 31% homens e 90, 51%, mulheres);

Para a análise do articulador ENTÃO recorremos a Risso (2002), em cuja análise considera-o pertencente ao conjunto de “marcadores conversacionais”. A sua atuação no discurso ocorre com maior ênfase “no processamento da informação e na tessitura dos tópicos que se lhe associam”. Segundo a autora:

A busca de traços semânticos identificadores do advérbio então remete-nos, em princípio, a uma indicação tipicamente temporal por ele estabelecida. Essa indicação muitas vezes transcende os limites da frase, em que o advérbio atua sintaticamente como determinante de verbo ou substantivo, e se caracteriza por solicitar sempre um percurso para trás, no discurso, em que se deve ser buscada a configuração nacional de um tempo mais precisamente dado, geralmente anterior ao da instância enunciativa em que se situa o locutor (RISSO, 2002: 420).

Sobre este articulador, encontramos também referência em Santos (2003, p. 62). Nesta pesquisa, a autora sinaliza o intercâmbio entre AÍ e ENTÃO, ratificando a importância coesiva destes articuladores. Identifica-os presentes em narrativas orais e escritas, sendo aquele mais utilizado na fala infantil e juvenil, e esse em textos orais mais formais. No corpus por nós constituído, o uso de aí foi irrelevante.

·    QUANDO, indicador de tempo, mas propõe o encadeamento entre tópicos e porções do texto e podem se relacionar sintaticamente com mais de uma principal. Tem, assim, função encadeadora discursiva; preferência da posição inicial.

Marcuschi (1989: 229) se referiu à bidirecionalidade de alguns marcadores conversacionais, considerando-os “como um tipo especial de dêiticos não muito estudados sob este ponto de vista”.

·    NUNCA e SEMPRE: como força expressiva, SEMPRE é usado em posição medial e NUNCA, em posição inicial, mas ambos são contextuais e em qualquer posição não apresentam determinação cronológica;

·    AGORA: referencial temporal; inicial e medial (ligado ao enunciado). Inicial encaminha um novo tópico; medial estabelece relação coesiva no mesmo tópico;

·    HOJE (73.07%), encadeador discursivo; ligado a um período maior/ menor de tempo, considerado próximo do momento da enunciação, ou na oposição antigamente X agora; inicial, refere-se à enunciação e ao falante, em tempo marcado; marca também um tempo não cronológico;

·    DEPOIS: encadeador discursivo, organizador do fluxo de informação (56, 36%) e tempo no curso do evento (43, 64%); posição medial e são operadores discursivos;

·    HAVER: inicial, pode vir determinado por datas ou indeterminado por quantificadores indefinidos.

Azeredo (1999: 116) observa que “a coordenação estabelece relações discursivas, por isso que desconhece os limites da oração: coordenam-se vocábulos, sintagmas, orações e até parágrafos”. Os operadores discursivos “estabelecem e explicitam as “relações semânticas” no “próprio discurso ou em discursos de distintos locutores” (idem, p. 134)”. Em 2000, o mesmo estudioso afirma a justificação, a coordenação e a subordinação como “conexões sintáticas” dentro do período. No texto, como um todo, são “conexões textuais”.

Mediante a análise do corpus, podemos distinguir algumas características dos marcadores discursivos e dos referenciadores de tempo:

Marcadores Discursivos:

·     fixam uma ordem no discurso;

·     estabelecem uma relação de dependência argumentativa;

·     relacionam fatos / acontecimentos, ações e sucessivos;

·     direcionam a atuação do ouvinte para a informação;

·     podem indicar ponto de vista;

·     são organizadores tópicos;

·     com eles podem existir coocorrências;

·     pertencem à instância pragmática da enunciação.

Referenciais Temporais

·     estabelecem a ligação de um fato ou acontecimento cronológico contemporâneo, precedente ou procedente na instância enunciativa;

·     são a contraparte dêitica de uma referência temporal, em relação aos desencadeadores discursivos.

O texto é constituído de seqüências marcadas no tempo e no espaço pelo falante. No discurso, as ações, os processos captados ou realizados pelo homem se consubstanciam na enunciação, através de imagens reconstruídas na memória, marcadas por um tempo ou por interstícios de tempo.

Projetado sobre a linha do tempo de não-presente, o ponto do presente separa o não-presente em passado e futuro e assinala o caminho para ulteriores distribuições e frações do conceito do sistema dêitico (WEINRICH, 1968).

O falante organiza no tempo e no espaço os fatos e os objetos de que fala, tomando como ponto de partida o momento e o local em que ele se encontra. Por isso, AGORA E AQUI são pontos dêiticos da enunciação, porém nem todas as expressões lingüísticas que se referem ao tempo e ao espaço são dêiticas: surgem, então, mecanismos na estrutura do texto que interagem na constituição do discurso (sobre o assunto, vale consultar também PONTES, 1992).

Repensando os processos da dêixis e da anáfora, percebemos que uma parte dos adjuntos de tempo pode ser empregada como anafóricos ou dêiticos; outra, apenas dêiticos; ainda outros, anafóricos. A ancoragem é apenas uma das características para a distinção dos adjuntos capazes de localizar eventos. Há, ainda, a relação cronológica, estabelecida com o momento da fala: simultaneidade, anterioridade ou posterioridade. Combinadas com medidas de tempo, podem ser obtidas também funções descritivas que indicam localizações de eventos.

Entretanto, algumas formas verbais, por serem polissêmicas, estabelecem, junto aos adjuntos, os vários “sentidos”. Estabelecem a comparação entre os espaços “aqui” e “lá” e distinguem uma situação de posteridade, no passado (“até a década de 70”). Quanto às construções perifrásticas, caracterizam-se pela aproximação sintagmática de um verbo auxiliar, em uma das formas flexionadas, e de uma forma nominal do verbo “significativo”. Em (02) e (03):

(02)   E: A senhora já visitou algum Estado brasileiro?

         I: Opa! Não tem conta. Fui ao Nordeste, já fui ao Sul, já fui à... como é, Caldas Novas, que é perto de Brasília. Já fui a Brasília, logo que Brasília foi inaugurada eu fui lá, já passeei muito... continuo passeando. Passeei muito. (Maria Emília)

(03) E: Senhor Manuel, como o senhor se sente diante das piadas e críticas?

        I: É natural, já estou acostumado, há muitos anos aqui, quarenta e oito anos aqui no Brasil, já está acostumado, já. (Manuel Vieira)

A análise da temporalidade nas formas nominais – o Gerúndio e o Particípio – leva-nos a distinguir a categoria de tempo da categoria de aspecto. O Gerúndio expressa o decorrer do tempo; o Particípio expressa, de certa forma, a permanência no tempo, como decorrente de um processo anterior, portanto, o resultado do escoar do tempo. Estas são formas não-dêiticas, visto que passeando ou acostumado não informam se o processo e o estado resultante ocorrem no momento da fala ou em momento anterior ou poderá ocorrer em momento posterior.

Para esclarecer o papel de certos auxiliares da conjugação progressiva, é indispensável a expressão da duração, sem perder de vista a localização de processos no tempo.

A noção de espaço se correlaciona com o falante no momento da enunciação, isto é, o local onde ele se encontra e a referência ao fato que ele enuncia. É ele quem organiza os fatos no tempo, localizando-os em deslocamentos espaciais. Por raciocínio, cria as antecedências, as simultaneidades e os fatos preteridos, constituídos em textos. E a noção de tempo se correlaciona com os acontecimentos, os processos, os estados, e outras ocorrências. Assim, os discursos se constróem sob organizações espaciais, temporais ou ordenação de proposições argumentativas. Isto significa que na linha de organização no discurso do falante há a necessidade de orientação para si e a interação no diálogo com o interlocutor. As proposições não se localizam no tempo, nem no espaço.

Para os nativos portugueses, o espaço é representado através da memória. Se a memória tem ligações com o real factual, reproduz o mundo concreto. Embora de ações já passadas, são elas relembradas num halo de fantasia e projeções mentais em espaços e tempos diferentes. O espaço da realidade (aqui) acentua o significado do signo, a denotação. É ele que fornece as coordenadas da ação. O espaço das projeções mentais acentua a conotação, em cuja imagem mimética se organizam os signos representados. Nele o português tenta recompor a identidade pela análise e apreensão do passado. Ao invés de ser a cópia de um espaço histórico-social, é a transposição retórico-metonímica, por meio da ligação tempo/ espaço, e metafórica, já que cada um dos nossos entrevistados tem um significado próprio.

Quando o falante enuncia um fato como anterior, posterior ou simultâneo ao ponto agora, atualiza o tempo físico (cronológico). Assim sendo, expressamos o que ocorre no momento da fala, o que ocorreu em momento anterior ou ocorrerá posterior à fala, como também outros pontos em que se subdividem o passado e o futuro (Tempo Relativo) (COSTA, 1997, p. 17). O TR se caracteriza por recorrer ao ponto de enunciação e a outro ponto que precede (anterioridade) ou é posterior (posterioridade) à enunciação.

Ressaltamos Campos, já que ela distingue o aspecto pela oposição de determinados tempos verbais e engloba as perífrases verbais e os “operadores suplementares de tempo” que contribuem para a determinação do valor aspectual.

“A aspectualidade se manifesta na própria relação predicativa, pelo modo de processo, e na relação entre tempos gramaticais, marcadores de localização da relação predicativa em relação ao momento da enunciação origem.” (CAMPOS, 1997: 26)

O enunciado e a enunciação são a origem da estruturação da temporalidade discursiva. A categoria de tempo classifica e distribui, de maneira geral, as formas verbais. Quanto ao aspecto, mediante o sistema gramatical, distingue os tempos imperfeito / perfeito, em relação ao léxico, engloba as formas verbais e perífrases, além de operadores de tempo.

Comparemos, por exemplo, (04) e (05), abaixo:

(04) E: Quando o senhor chegou o senhor começou a trabalhar como pescador?

I: Não, é como pescador. Aí depois eu andei embarcado num navio inglês, sete anos num navio inglês. Aí fui pra pesca novamente. Aí da pesca eu vim pro comércio. (Manuel Vieira)

(05)  I: Claro, exatamente eu vim pra qui pra ver se melhorava, né, pra fugir da tropa, do exército, pra não ir pra Angola. Que naquela época que eu vim pra cá estava aquela revolução, de Angola, de Salazar, aí eu peguei e vim pra cá pro Brasil, fugir da guerra. (Manuel Vieira)

Em (04), a perífrase verbal – andei embarcado – indica intervalo de tempo, antecedido do marcador discursivo – depois e reforçado por um prolongamento de tempo– sete anos-. O falante estabeleceu uma cumplicidade (convite ao entrevistador) para compreender os limites de início e fim da ação. Chama a atenção para o tempo interno (aspecto) da ação. O tempo se escoa e se concretiza no espaço. Por isso, em relação ao aspecto, o fato é passível de conter frações de tempo em seus limites. Já em (05), a ação (“vim”) ocorreu antes do momento em que ele está situado temporalmente – marca de categoria de tempo em progressão na relação hoje; a ação ocorreu em relação ao momento da fala – no passado – e expressa o desenvolvimento da ação.

Segundo Comrie (1976: 03), a constituição temporal interna da situação é observada sob diferentes aspectos:

·     Constitui a temporalidade interna da situação;

·     veicula a categoria a situações, processos e estados;

·     representa o espaço compreendido no processo;

·     restabelece sentido mais específico (não-dêitico) que o elemento lingüístico que lhe corresponde (tempo: categoria dêitica);

·     contém frações dos limites do tempo, no enunciado do falante;

·     refere-se à instância da situação de enunciação.

A oposição entre o perfectivo e o imperfectivo é baseada na decisão ora de descrever a situação como “a single unanalysable whole” ou para fazer referência explícita da constituição temporal interna da situação (CAMPOS, 1997: 13).

Por meio da linguagem, o homem se inscreve na sociedade e fundamenta as suas práticas no discurso para significar a sua história e o seu posicionamento diante dos fatos. Locutor e interlocutor desenvolvem estratégias interpretativas próprias, que não precisam necessariamente coincidir. O importante é que a argumentação tenha fundamento.

No jogo narrativo, aquele que fala busca persuadir aquele que ouve e interpreta o que é falado. Conquista a adesão do outro e encontra um parceiro (em comunhão), cuja natureza da relação é mutável. Revertem-se os papéis. Não isola o homem do seu dizer, do fazer interpretativo, estabelecendo relações no contexto em que se movimenta.

Segundo Charaudeau (2004), são quatro os princípios que fundam o ato de linguagem: de influência, de regulação, de relevância e de alteridade. Todos interagem no processo comunicativo, através das estratégias orientadas para o outro, do jogo de influências na continuidade do discurso, bem como as manifestações entre os parceiros.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos considerar a linguagem e o pensamento de que se valeram as ciências físicas como um suporte histórico (empírico) de informações para o deslocamento de pesquisa sobre a temporalidade e o tempo.

O discurso é o uso efetivo da língua no contexto. Segundo Bakhtine, é a arena da luta de classe, marcado pela ideologia do conflito. Por ser o significado mutável, a atividade interpretativa não se esgotará no significado do texto de uma só pessoa, ou seja, o ato cooperativo levará o outro a inferir sobre o texto, recriando-o. Nesta relação dialética, ambos co-participam do processo de construção do discurso.

Nesta pesquisa, verificamos quais as correlações entre a posição que a cláusula de tempo ocupa e os efeitos de sentido que se obtém no texto. Tomamos aqui o termo cláusula, considerando a noção de interdependência entre as partes de um período que se estrutura com a indicação de tempo. Assim, propusemo-nos a um exame textual, feito através do uso das cláusulas temporais, no corpus em questão. Não é possível dissociar o emprego da noção de tempo do aspecto verbal: durativo, freqüentativo, cronológico, de simultaneidade, do emprego da estrutura de correlação. Quanto à narrativa, entendida como uma seqüência de fatos, em cujos livros referem-se os autores ao tempo passado (de pretérito), não podemos esquecer que mesmo o emprego do verbo no presente, dá maior emoção ao narrado.

O povo português, por assumir o tempo no Brasil, entende-o como um espaço seu, interessando-se pelo vocabulário aqui existente, trilhando uma leitura das enunciações em que a integração entre a sociedade luso-brasileira tenha uma só ideologia. Interessarmo-nos, o brasileiro, pelos sentimentos deles, recria e suscita novos sentidos que essa interação possa trazer à unidade da Língua Portuguesa.

Por isso, a noção de tempo deve levar em consideração o contexto em que as estruturas aparecem, bem como a inter-relação entre as categorias gramaticais, já que não só a conjunção marca a temporalidade, mas também o verbo, o aspecto verbal e o emprego da preposição.

O tempo cronológico (passado, presente, futuro) é somente um marcador dos interstícios do tempo em sua longevidade. Ele é apenas uma referência que reporta os instantes, a duração dos processos, das instantaneidade ou dos términos dos estados e ações em procedimento ou procedência da vida humana. Pensemos à frente. Nada é eterno. Estamos em “eterna” progressividade, processo contínuo de desenrolar das ações e atitudes. O olhar subjetivo é inerente ao tempo.

Se no retrocesso o processo vier a partir da hora exata, daí em diante, o fluxo do tempo será questionado de modo a procurar um momento de continuidade. O ponto referencial leva à argumentação necessária a que haja uma reação capaz de transmudar os instrumentos da argumentação. Quanto à sintaxe, vale a escolha, no momento da enunciação. Esta será capaz de influir na mudança do pensamento do outro, e o falar trará novos significados que levarão um e outro a reconstituírem os seus discursos. Novas estruturas serão criadas, outros discursos e referências outras serão tomados, como verdades irrefutáveis. Tudo parece verdade, até que outro ponto-de-vista seja qualificado. É a instantaneidade, a continuidade de ação, que leva o questionamento do outro, porém tem como o perfectivo uma ação concluída. A duração do processo pode se dar por ações no passado, mas o fator mudança pode redimensionar o rumo da interação.

Parece visionário, mas o estado de coisas leva à argumentação necessária a que o tempo se construa. Decorrem daí novas argumentações. O futuro é marcado pelo agora. Tudo recomeça – imperfectivo naquilo que é reconstruído; perfectivo, o que ficou no passado distante no tempo cronológico e progressivo no que há de ser feito.

 

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WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madrid: Gredos, 1968.


 


 


[1] SACKS, 1972, 1974; SACKS, SCHEGLOFF & JEFFERSON, 1974; SCHEGLOFF, 1968, 1972, 1976;JEFFERSON, 1973, 1974, 1098; apud In FORD, 3 “Conversation Analysis”.

 

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