JOÃO ANTÔNIO: O GUARDIÃO DE UMA CULTURA

Ana Maria Esteves (FFSD)

No artigo “Corpo-a-Corpo com a Vida”, publicado em Malhação do Judas Carioca, pela Civilização Brasileira, em 1975, João Antônio explicita seu compromisso com a realidade do país e apresenta-nos o que, na sua opinião, é a principal missão da literatura: “ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma” (ANTONIO, 1975). Esse seu propósito será levado às últimas conseqüências. Através de um olhar de dentro, assume a posição de quem faz parte dos acontecimentos, de quem está no mundo, na arena, no espaço da vivência, “jamais como um observador”. Tudo isso por acreditar que uma atitude realista tenha vocação de análise crítica, de valor político, e não apenas de cópia da realidade. E as crônicas serão utilizadas pelo escritor como instrumento para a concretização de seus anseios.

Em “O frívolo cronista”, Drummond define a crônica como a representação daquilo que não caberia em certos espaços do jornal, tidos como “nobres”, como aqueles reservados à “informação apurada” às “altas missões”. Nela caberia o “inútil” em sua utilidade particular; “gavetas de miudezas” – espaço descompromissado, “canto de página”, lugar ideal para que “os nadas de uma existência” ganhem voz. (ANDRADE, 1998).

É justamente aí que se inserem as crônicas de João Antônio. Este toma posse desse “canto de página”, que, para ele, não seria descompromissado, para dar continuidade a um projeto de vida – “a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão”, como nos ensina Antônio Cândido. (CANDIDO, 1979-80: 5).

A partir de um recorte de crônicas publicadas nO Pasquim, entre agosto de 74 e todo o ano de 75, selecionei duas: “Última Memória da Lapa” (ANTÔNIO, 1974: nº 271, p. 6-7) e “O Mangue é um mafuá” (ANTÔNIO, 1974: nº 278, p. 21), publicadas em 1974. Pretendo refletir sobre o posicionamento crítico do cronista diante das conseqüências provocadas pelos planos de urbanização da época.

A primeira é dedicada à Lapa. O autor vai lamentar o fato de já ter enterrado esse bairro antigo por, pelo menos, sete vezes, em jornal, revista e livro. E conclui:

“Não tenho raiz cultural nenhuma, assumo a nostalgia de uma Lapa que nem conheci, em nome das noitadas e dos amores cronometrados no bairro já melancólico e decadente, tentando como um desesperado, imitar a glória antiga.” (Idem, ibidem.)

Este será o tom mantido durante todo o texto – duas longas páginas. É a melancolia de quem se vê impotente diante dos destroços do progresso e constata: “A Lapa, como os seus saudosos e suas viúvas, não tem salvação.” Só resta, agora, a lembrança – idéia que já vinha anunciada no título. Dessa sua memória, puxa um elenco de nomes que a freqüentavam: Nélson Naval, Meia-Noite, Camisa Preta, Miguelzinho da Lapa, não podendo faltar Madame Satã. Todos, segundo ele, assíduos aos cabarés, cafés-concertos, restaurantes, leiterias e bares. E lamenta:

A Lapa mal comportada, boêmia, devassa e amante que resistiu aos primeiros impactos da notícia de despejo e demolições para a Avenida Norte-Sul passar, não existe mais. Não há mais Lapa, orai por ela.

Em nome do progresso viário, os planos de urbanização passaram por cima de seus cabarés, restaurantes, cafés e casas da noite. A Lapa fez o que pôde, insistiu acordada até acabar de morrer a morte que começou definitiva, ruça, carrancuda (...). (Idem, ibidem.)

Junto com ela, teriam morrido também seus heróis, alguns sem glória. Dentre eles, “Boi, dono da porta e da ordem do cabaré Novo México, na Avenida Mem de Sá, fechou os olhos há cinco anos, fora de função, no subúrbio esquecido”. E outros, “que nunca chegaram a ser folclore da Lapa”, teriam desaparecido sem deixar qualquer rastro.

Neste clima de desencanto diante de uma cultura que não teria salvação, o autor nos apresentará imagens em ruínas, destroços de um passado que insiste em permanecer em meio à violência de uma urbanização que teria, ironicamente, como lema o progresso:

Prédios encardidos, barulhos de motores e máquinas, portas fechadas, demolição, poeiras, maus cheiros de coisas queimadas – colchões, tarecos, panos, restos – tipos molambentos, pedintes, esmoleiros e aleijados misturando-se aos passantes, estacionamentos de carros nas áreas demolidas, três pontos de bicho, um comércio que agoniza – esta, a Lapa de agora. Orai, senhores, pela outra, a que já morreu. (Idem, ibidem.)

É interessante a forma como nos são apresentados os aspectos físicos e humanos dessas ruínas – entrelaçados, confundindo-se. Nessas imagens, em que nossos sentidos também se misturam – “prédios encardidos”; “barulhos de motores”; “poeiras, maus cheiros”; “coisas queimadas” –, temos a representação da resistência: “tipos molambentos, pedintes, esmoleiros e aleijados misturam-se aos passantes”. É o caos na pretensa ordem estabelecida: “estacionamentos de carros nas áreas demolidas”. Diante disso, levanta-se uma voz, misto de ironia e desespero: “Orai, senhores, pela outra, a que já morreu”.

Tem-se, aí, a dicotomia “destruir/construir” citada por Renato Cordeiro Gomes. Segundo ele, “ (...) demolir é índice do apagamento do passado, da memória, da cidade compartilhada, da cartografia afetiva. Aqui, construir o novo é apagar o velho, não deixar marcas: tudo vai sendo sucessivamente substituído.” (GOMES, 1994: 17). Este seria o preço do moderno. É o que constata João Antônio, impotente, “frente à perversão da demolição e do apagamento do passado” (Ibidem, p. 146): a violência dos planos de urbanização “passa por cima” do passado e, além de apagar toda a memória de uma cultura, deixa também como resquício uma cidade desprovida de afeto, em que os restos humanos “misturam-se aos passantes” indiferentes, todos imersos na “poeira” do que restou. E, para finalizar esse quadro contundente, vamos a mais um trecho, redundância necessária para reforçar toda a indignação de quem escreve:

Enquanto os mendigos, vagabundos e indigentes vão juntando seus trapos e se ajeitando, transformando pedaços de jornal em cama e fazendo suas moradias nos restos das demolições da Visconde Maranguape e Mem de Sá, a Boite Casanova tenta melancolicamente reviver, através de seus travestis, uma Lapa que não existe e se sustenta como um fantasma de si mesma. (...) (ANTÔNIO, 1974: nº 271, p. 6-7)

Na segunda crônica citada, um outro lugar aparece em destaque: o Mangue, que também estaria sendo submetido à dicotomia “destruir/construir”. Isso é anunciado logo no início do texto:

Há uma miniguerra no Mangue, entre as obras do Metrô e os velhos moradores dos cortiços que estão indo abaixo. (...). Quando o Mangue estiver limpo e o governo do Estado lá plantar o seu Centro Administrativo, o local das confusões e do pecado será outra vez aprazível e rentável do ponto de vista imobiliário. (...).

Mas isso será no futuro. No momento, os maus escribas e bons fariseus estão satisfeitos em repetir os relatórios oficiais que rezam na cabeça: o Mangue precisa cair, é uma área em total decadência, representa um permanente foco de doenças, com os mais variados tipos de germes e há, principalmente, urgente necessidade de se obter maior rendimento social daquela micro-região. (Talvez por isso, os velhos moradores apanhados pelas demolições do Metrô, estejam sendo despejados para lugar nenhum) (ANTÔNIO, 1974: 278, p. 21).

O autor denuncia, ironicamente, a situação dos moradores do Mangue, apresenta as justificativas oficiais usadas para o despejo “para lugar nenhum”: “o Mangue precisa cair, é uma área em total decadência, representa um permanente foco de doenças”. É interessante como nos é apresentada a voz do poder, a fala das autoridades, que teriam o hábito de resolver problemas profundos de uma forma simplista e imediata, sem considerar as conseqüências sociais que tais atos poderiam acarretar. Construir o novo, neste caso, seria a partir do bota-abaixo do que estaria incomodando, e tudo estaria resolvido para o “bem-estar da sociedade”.

Aqui, diferente da crônica anterior, não cabe nostalgia em relação ao passado, mas uma outra constatação move o escritor:

O Mangue continua um daqueles capítulos cariocas que ninguém sabe e nem viu. A vaga notícia chega, quando em quando, dando conta que além da prostituição, há quadrilhas de pivetes funcionando a dar com pau, furtos, brigas, fugas, prisões, nos arredores do mais baixo bordel da cidade. (Idem, ibidem.)

Mazelas que serão expostas por este que assume o compromisso de dizer por aqueles que foram impedidos de fazê-lo. Já que “ninguém sabe e nem viu”, é ele quem as vai revelar. E o “bordel” receberá um tratamento de destaque por ser “o trecho do Mangue que continua desafiando tudo o que se disse, escreveu, pintou ou cantou sobre ele”; descrito como um “casario imundo, descascado, capenga das duas pernas”.

O Mangue já teria inspirado outros com quem o cronista estabelece um diálogo:

Pintado por Lasar Segal (...), cantado em versos por Vinicius de Moraes (“Balada do Mangue”), citado por Manuel Bandeira, personagem quase central de um romance, “Desabrigo”, de Antônio Fraga e personagem realmente de centro de um conto de Dalton Trevisan (“A Velha Querida”, em Novelas Nada Exemplares). (Idem, ibidem.)

A esse elenco acrescento um outro nome: Oswald de Andrade, com o longo poema “O Santeiro do Mangue”. A relação intertextual reforça a tese de que este é um lugar de destaque em nossa cultura e, portanto, inadmissível o tipo de tratamento que vem recebendo.

Ao descrever as diversas situações, um olhar naturalista servirá de instrumento para que o propósito de “corpo-a-corpo com a vida” seja levado às suas últimas conseqüências: “O número de botequins, três, imundos e fedendo, todos de esquina. Praticamente não há água encanada, o serviço de esgotos funciona mal, a água escura se empossa no meio-fio e o calor multiplica moscas.” (Idem, ibidem.) E a descrição não se esgota aí. O autor nos afirma que, além das mazelas, aquele lugar seria uma espécie de “feira dos pobres”, em que mercadorias estariam expostas ao longo das calçadas e até no meio das ruas:

(...) há caixas de engraxates e há barracas dia e noite, vendendo quase tudo. E é um mafuá, e uma feira. Frutas, quitutes, camarões, pastéis, sucos, vitaminas, café, discos, angus, roupas, cachorros quentes, sapatos, embelecos, quinquilharias e penduricalhos, artigos de beleza, revistas novas e velhas, perfumaria barata, churrascos e espetados em barracas iluminadas a gás de bujão lembrando ocasiões de festa da cidade. Na ponta da rua, duas caçambas de lixo velho fedem e atiçam o mosqueiro. (Idem, ibidem)

Eis aí o “mafuá” de que nos fala o título. São-nos apresentados elementos pertencentes aos gêneros alimentícios misturados a outros diversos, tendo, como resultado, a imagem do caos, do desespero de quem precisa sobreviver a qualquer custo. Vendedores ambulantes disputam um espaço que lhes assegure um sustento. Para finalizar:

(...) e apesar dos meninos e esmoleiros que dormem sobre caixotes, enquanto as mulheres se viram e chamam os fregueses, os discos dos Waldics Sorianos, dos Robertos Carlos, dos Wanderleis Cardosos, dos Jerrys Adrianis e dos Paulos Sérgios vão jogando alegria e dores (...). Dentro das casas, os toca-discos atacam de sambas-enredo e as mulheres, expondo-se nas portas, rebolam, requebram, convidam. (Idem, ibidem.)

É estratégica a forma como as imagens se contrapõem: “meninos e esmoleiros que dormem sobre caixotes”, “mulheres se viram e chamam fregueses”, a música e o requebro – tudo misturado, conluiado, argamassado, uma coisa na outra, bem ao gosto do autor. As composições musicais, além de expressarem o gosto popular, revelam também os sentimentos de toda essa gente, mais de dor que alegria.

Estes são apenas alguns exemplos num amplo painel em que o escritor assume o compromisso firmado: ser porta-voz de uma coletividade, o guardião de uma cultura que estaria ameaçada por diversos fatores. A proposta de colocar-se como mediador de uma coletividade torna-se uma espécie de fio condutor, que perpassa toda a obra do escritor e, em particular, suas crônicas, usadas como um eficaz instrumento de combate. Esse “canto de página” é um espaço propício para a continuidade de seu projeto de vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. “O frívolo cronista”. In: Boca de Luar. 9a ed.Rio de Janeiro: Record, 1998.

ANTÔNIO, João. “Corpo-a-Corpo com a Vida”. In: Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

––––––. “O Mangue é um mafuá”. In: O Pasquim. Ano VI, nº 278, Rio, 29/10 a 04/11/74, p. 21.

––––––. “Última Memória da Lapa”. In: O Pasquim. Ano VI, nº 271, Rio, 10 a 16/10/74, p 6-7.

CANDIDO, Antônio. “A Vida ao Rés-do-chão” (Prefácio). In: Para gostar de ler: crônicas / Carlos Drummond de Andrade ... [et al.]. – Ed. Didática. – São Paulo: Ática, 1979-80.

GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

 

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