Léxico
continuidade lingüística, empréstimo vocabular
formação vernácula

Nícia De Andrade Verdini Clare (UERJ)

Falar do léxico significa penetrar na história da linguagem e em seus processos de criação. Segundo Charles Bally, “as línguas mudam sem cessar e não podem funcionar senão não mudando” (Apud Coseriu, 1979: 15) Com essa afirmação, o famoso lingüista nos coloca diante do paradoxo da linguagem: a língua vive em equilíbrio instável.

A cada momento, termos são considerados obsoletos, caem em desuso. É o caso, por exemplo, de mata-borrão, completamente desconhecido das gerações mais novas. Paralelamente, com o avanço da tecnologia, novos termos são incorporados à língua: homepage, Ipod, deletar. São chamados de “empréstimos denotativos” por Louis Guilbert (Apud FREITAS, 1991: 126).

Essas incorporações são previstas, uma vez que, segundo Coseriu, “a língua é um fazimento” (COSERIU, 1979: 15), ou seja, um processo e cumpre uma função: a da comunicação.

Vários são os processos de formação lexical: a continuidade lingüística, os empréstimos vocabulares e a formação vernácula.

Em se tratando do léxico português, sabemos que é fundamentalmente de origem latina. Formou-se de termos eruditos, empréstimos ao latim clássico, de cunho literário (caso dos superlativos, como macérrimo, frigidíssimo, nigérrimo) e de termos populares, oriundos do romanço lusitânico, através do processo de continuidade lingüística.

Os termos populares são primordiais, pois sua estrutura fonológica e morfológica é responsável pelos padrões lexicais portugueses, ao passo que termos eruditos, presentes, principalmente, em vocábulos técnicos, são formas primitivas, de uso isolado, dissociados da realidade lingüística, desconhecidos do povo, em geral. Citemos, por exemplo, hidrófobo, palavra que não sofre a neutralização média-alta que ocorre em palavras como pérola . Tais palavras são consideradas por Said Ali (Apud MELO, 1981: 150) “injeções de latim no português” porque mantêm a estrutura fonológica latina.

Temos, ainda, termos semi-eruditos que, entrando tardiamente no romanço lusitânico, não sofreram determinadas mudanças. É o caso de populu, em que não houve a síncope da postônica comum nos esdrúxulos: populu> poboo> povo.

Vale a pena mencionar as palavras representativas de tabus lingüísticos que mantêm a estrutura fonológica por serem pouco faladas pelos usuários da língua. Trata-se de nomes relativos a doenças, morte, defeitos físicos. À medida que os preconceitos vão sendo derrubados, essas palavras deixam de ser tabus e passam a sofrer os mesmos processos das demais. Em diabo, palavra cuja pronúncia dizem atrair azar, não houve a palatalização do grupo –di, como ocorreu em hodie >hoje e diurnale> jornal.

É justamente a diferença no tratamento fonológico que vai gerar as formas divergentes: um étimo latino gerando um termo erudito e outro vernáculo. Pode-se observar esse fato em planu que deu plano (erudito) e chão (popular). Também matéria deu matéria (erudito) e madeira (popular); macula deu mácula (erudito) e malha (pop. ); cathedra deu cátedra (erudito) e cadeira (pop. ); solitariu deu solitário (erudito) e solteiro (pop.).

Na Renascença, a partir dos séculos XV e XVI, houve uma renovação do léxico português com abandono das formas populares e entrada maciça de termos eruditos. Foi o fenômeno da reconstituição erudita. Este fato ocorreu, por exemplo, com formosu, cuja forma vernácula era fremoso e, por reconstituição erudita, formoso.

Nossos termos de origem vernácula incluem palavras comuns ao Latim Clássico e ao Latim Vulgar que sofreram fenômenos como síncope da postônica dos esdrúxulos (oculu>oclu>olho); síncope da consoante sonora intervocálica (malu>mau); sonorização das surdas intervocálicas (lupu>lobo); apócope da vogal átona (sapore>sabor); passagem do i breve a e fechado e do u breve a o fechado (citu> cedo; turre>torre); dissimilação anima>*anma>alma); assimilação (verecundia> *verecunnia> vergonha) e uma série de outros fenômenos.

Notam-se, ainda, palavras que sofreram modificação semântica (tripaliu– instrumento de três paus, usado para sujeitar cavalos que não se queriam deixar ferrar – passa a trabalho, ato de trabalhar, pela idéia de suplício estendida ao fato de executar uma tarefa com desagrado); palavras que, diacronicamente, foram derivadas e passam ao português como primitivas (apicula – de apis – > abelha), monossílabos substituídos por formas mais expressivas (cor>*coratione> coraçon> coração); variantes mórficas (nurus> nura> nora, antes pertencente à quarta declinação, passa à primeira); aproveitamento de metáforas do Latim Vulgar (rostru – bico de aves – passou a rosto humano); aproveitamento de palavras populares rejeitadas na língua clássica (bucca> boca, rejeitado o termo erudito os, oris).

Metáforas e metonímias são processos de ampliação léxica. Mas nem todas as metáforas que surgem como inovação são adotadas e passam a fazer parte do sistema lexical. É o que acontece, por exemplo, com a gíria, que tem vida efêmera. Por outro lado, quando são adotadas, passam por um processo de desmetaforização. Quem, hoje, associa trabalho a um instrumento de suplício?

A analogia é outra forma de criação lexical. A palavra agosto, usada na linguagem política para anunciar uma desgraça, surge por analogia com as crises do governo Vargas, que culminaram com o suicídio do então presidente da república, em 24 de agosto de 1954. O adjetivo babilônico é usado para referir-se aos jardins da Casa da Dinda, que sofreram gastos vultosos em sua reforma durante o governo Collor. O termo é usado por associação analógica com os jardins da antiga Babilônia, famosos pelo deslumbramento. No governo de Fernando Henrique Cardoso, foi criado o termo sucessomania, em associação analógica com fracassomania, inovação criada pelo próprio presidente da República.

Outra forma de ampliação lexical se dá através de empréstimos lingüísticos. Empréstimo é, segundo Leonard Bloomfield, a adoção de traços lingüísticos diversos dos do sistema tradicional (Apud CÂMARA JR., 1985: 196) O empréstimo é responsável pela permanente renovação do vocabulário.

Bloomfield dividiu os empréstimos entre culturais e íntimos. São empréstimos culturais todas as aquisições estrangeiras feitas em virtude de relações políticas, comerciais ou culturais com povos de outros países. Na Língua Portuguesa, os empréstimos culturais provêm de contatos com o francês, com o espanhol, com o italiano, com o inglês, principalmente, além dos contatos orientais pela expansão colonial portuguesa nos séculos XV e XVI. Alguns empréstimos são tão expressivos que não encontramos correspondentes em nossa língua. Querer aportuguesá-los, adaptando-os ao nosso sistema fonológico, ficaria artificial. É o caso, por exemplo, de pizza, com plena aceitação na língua portuguesa.

Para chegar a ser adotado, um empréstimo atravessa diferentes fases: fase de instalação e adaptação, quando o termo pode ser aceito – caso de futebol, gol, pênalti – ou rejeitado– caso de back, center-forward – ou pode, ainda, ser aceito inicialmente e depois rejeitado – caso de corner, muito usado nas décadas de 40 e 50, hoje substituído por escanteio; fase de aceitação com manutenção da forma gráfica, caso de cool (na linguagem da política, estilo neutro de governo), light (usado tanto na linguagem da política – estilo leve de governo – quanto na nutrição, com referência a alimentos light – lobby, teen, corbeille, show etc; fase de aceitação com adaptação à fonologia portuguesa, – caso de futebol, pudim, nhoque, bife, abajur. Em fase final, o empréstimo é de tal forma incorporado à língua, que pode ser considerado lexema vernáculo, servindo de origem a novos vocábulos, através de processos geralmente de derivação: caso de lobby, que deu lobista.

Em relação a empréstimos, é comum a hesitação de grafia. Não raro, duas grafias convivem. Escreve-se xampu, como também se escreve shampoo, com tal aceitação, que esquece-se de que na língua portuguesa não existe o dígrafo –sh.

No entanto, até hoje, notam-se correntes contrárias ao empréstimo. Os empréstimos franceses iniciaram-se no século XVIII e logo surgiu uma reação purista. Os movimentos de imigração, no início do século XIX, foram responsáveis por empréstimos do italiano, do espanhol, do alemão. Os empréstimos do inglês aumentaram após a Segunda Guerra Mundial, graças à hegemonia conquistada pelos Estados Unidos. A partir da década de 40, a influência americana no léxico tem sido muito grande, principalmente pelo avanço tecnológico.

Apesar de correntes que se opõem aos empréstimos estrangeiros, não nos podemos esquecer dos ensinamentos do saudoso Gladstone Chaves de Melo (1981: 150): o empréstimo é fenômeno normal em toda língua viva. Querer substituí-lo é um absurdo. Como empregarmos convescote por piquenique, ou ludopédio por futebol?

Os empréstimos íntimos resultam da coexistência de dois idiomas no mesmo território nacional, ou, mesmo, de dois dialetos ou dois falares, caracterizando empréstimos locais ou internos. A palavra quenga, significando prostituta, como foi usada na novela Renascer, da Rede Globo de televisão, é um exemplo de empréstimos entre falares.

No português do Brasil, entre contatos íntimos, acrescentam-se africanismos e indianismos.

Os empréstimos surgiram, inicialmente, influindo no latim vulgar e não diretamente na língua portuguesa, uma vez que, durante a romanização, houve contato íntimo entre o latim e as línguas das regiões conquistadas. Desse contato, temos os substratos, vestígios da língua de um povo vencido na língua do povo vencedor. Os exemplos de substratos são poucos e fragmentados, uma vez que é pequeno o conhecimento que se tem dessas línguas dos povos nativos do Mediterrâneo.

A partir do século V, com as invasões bárbaras, tiveram origem os superstratos, que também exerceram influência direta sobre o latim. São vestígios da língua do povo vencedor, sem tradição lingüística, na língua do povo vencido, de forte tradição lingüística. Assim, a língua portuguesa absorveu, via latim vulgar, muitos vocábulos de origem germânica, como guerra, ganso, roubar, marechal etc.

Da convivência de oito séculos na Península Ibérica, resultaram os adstratos árabes na língua que começava a formar-se. Grande, portanto, foi a contribuição árabe em nosso léxico, principalmente, no que toca às palavras resultantes de aglutinação do artigo árabe al: alface, almofada, alfinete, alfândega etc.

Mas nosso estudo sobre a formação do léxico português nos levou à conclusão de que a grande ampliação lexical se dá pela formação vernácula, através de mecanismos de derivação e de composição. Entendendo-se composição como associação significativa e formal entre duas palavras, resultando numa palavra nova, em nossa pesquisa sobre a linguagem da Política, observamos vários casos de composição, como por exemplo: anão-mor, bancossauro, Collorgate, fracassomania, pecelândia, sem-terra, sem-teto, tucano-pefelista (CLARE, 2004: 53-148), etc. Temos, ainda, casos de composição híbrida, como factóide, fumódromo, showmício etc. (Idem, ibidem.). E, acima de tudo, destaca-se a derivação como o mais produtivo processo de enriquecimento lexical. Em nossa pesquisa mencionada (CLARE, 2204: 53-147.), destacamos, entre outros: aberturismo, africanização, alavancagem, anti-FH, anti-real, antiquercista, arapongagem, babelização, banespização, brizolismo, cacicada, caminhonaço, catastrofista, collorato, collorido, collorizar, cutista, descriminalizar, desempregódromo, desfusão, engessamento, fazejamento, fernandista, fernandohenriquismo, fujimorização, fulanizar, fusionamento, infritável, lobístico, lulista, malufista, marajaísmo, marcellista, marketeiro, mexicanização, municipalite, pacoteiro, palanquista, paradeira, pefelagem, pepebista, pessedebista, pilântrico, rorizista, sarneyzismo, sobrevalorização, supercomissão, supermarajá, tucanada, urverização, vazável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÂMARA JR., J. Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1985.

CLARE, Nícia de Andrade Verdini. A linguagem da política: inovações lingüísticas no português contemporâneo. Rio de Janeiro: Do Autor, 2004.

COSERIU, Eugenio. Sincronia, diacronia e história. Rio de Janeiro: Presença, 1979.

FREITAS, Horácio Rolim de. Princípios de morfologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Presença, 1991.

GUILBERT, Louis. La créativité lexicale. Paris: Librairie Larousse, 1975.

MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação à filologia e à lingüística portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

PIEL, Joseph. Sobre alguns aspectos da renovação e inovação lexicais no português do Brasil. In: Revista Portuguesa de Filologia, vol. XIII, Coimbra, 1964.

 

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