LIGANDO CONHECIMENTOS

Marcos Candido (UERJ)

O ensino vem sendo discutido pelos profissionais envolvidos com Educação visando a erradicar dificuldades de aprendizagem, reprovações, evasão escolar. Essas discussões, ainda que ocupem bastante espaço, apenas minimizam um problema que não se resolve somente com boa vontade: precisa capacitação e atualização permanente para transmissão de conteúdo.

Cremos que a aula de morfologia é mal encaminhada pela falta de objetividade com que o conteúdo em questão é abordado; pois as palavras, ainda que sejam permanentes instrumentos para formarmos enunciados, têm sido trabalhadas fora de uma contextualização: o que torna bastante subjetiva a contemplação do assunto. Não é habitual, na aula de morfologia, verificar qual o propósito de formação da palavra que esteja sendo classificada quanto a seus elementos mórficos, em qual variedade lingüística se insere tal formação... Procedimentos dessa natureza deixam o aluno hodierno desmotivado para o aprendizado. As práticas escolares não se afinam com o cotidiano do falante.

A formação das palavras, específicas de uma comunidade lingüística ou do léxico global dos falantes, vem atender às necessidades comunicativas. Recorrendo à formação de palavras institucionalizadas ou neológicas poderemos entender variedades, registros, marcas discursivas.

Discordamos do procedimento de ensino que vê a morfologia dissociada dos outros estudos lingüísticos, desaconselhamos a prática docente que entende sentido de palavras por seus elementos mórficos, julgamos improcedente iniciar uma discussão sobre formação de palavras desconhecidas dos alunos e fora de um contexto.

Cremos que a utilização das criações de palavras deixa o estudante mais a par do processo por que passa a língua: ele está acompanhando, portanto ele as conhece. Não entendemos por que o ensino de morfologia tem de partir das palavras cristalizadas na gramática, sem nenhuma referência utilitária, sem qualquer demonstração contextual de como se processa no discurso: trabalha-se classificando elementos mórficos com que finalidade?

Durante muito tempo a tradição gramatical não tem explicitado sob qual perspectiva o estudo morfológico se encaminha – o que dificulta a delimitação de critério e compromete o entendimento do conteúdo (Monteiro, 2002). As palavras abordadas, nas aulas de morfologia não levam em consideração que o léxico é um inventário aberto (os paradigmas estão cristalizados), mas também não são contextualizadas para que os alunos entendam de que discurso elas fazem parte.

Acreditamos que o significado de uma palavra, talvez por seu caráter polissêmico, fica comprometido quando verificado fora do enunciado, não se podendo aproveitar o sentido completo e específico da palavra. Dificilmente poderíamos depreender a significação total de uma palavra que o produtor ou divulgador quis transmitir olhando a palavra apenas, fora do (con)texto.

Acreditamos que a verificação do significado dentro de um contexto seja apropriado a todas as palavras; mas, em se tratando de aula de morfologia, este critério não é adotado nas escolas que seguem manuais de gramática recomendados pelo Programa Nacional do Livro Recomendado Para Ensino Médio. A verificação do sentido da palavra de maneira contextual é bastante metodológica para que percebamos sua relação com a construção textual.

O estudo morfossemântico da palavra, tal qual o entendimento de um objeto como pertencente a um estrato específico da população, liga-se à necessidade social de um grupo em nomear suas ações lingüísticas e os objetos ligados a essas ações. A cada situação social pode surgir uma nova palavra ou um novo sentido para a ‘mesma palavra’: o significante é o mesmo, mas com outro significado.

A formação de cada palavra deve ser vista de acordo com a intencionalidade enunciativa de seu propagador, assim o estudo de cada formação evoca intenção comunicativa de seu emissor, da comunidade lingüística de que faz parte.

A evolução da sociedade tem sido tão acelerada em variados setores que é um grande desafio para alguns acompanhar esse ritmo, porém ficar com práticas de ensino desatualizadas implica desconhecer novas metodologias. Com o intuito de atrair o aluno para o referido componente curricular com que lida o docente, querer estar atualizado produz uma frenética busca de conhecimentos a respeito de todos os assuntos que circulam nos veículos de informação. A língua representa, pela formação das palavras, o ritmo acelerado como as coisas mudam. Mostrar-se atualizado lingüisticamente, pode atrair a atenção dos discentes com quem trabalhamos: somos pessoas que utilizamos uma linguagem diferente da sua.

Se pensamos em iniciar uma prática docente começando com textos que despertem o interesse dos alunos, se começamos nossas aulas com assuntos que eles conhecem para depois oferecer outras leituras, proporcionaremos ao educando uma ampliação do seu universo lingüístico. Temos a possibilidade, por exemplo, de trabalhando com a leitura de jornais, encontrar diversificados textos: crônica, editorial, cartas... É possível encontrar novas formações de palavras a cada dia nos jornais.

FORMAÇÃO DAS PALAVRAS

A necessidade de formar palavras para nomear ações, intenções, inventos traz renovação e poder ser um instrumental eficaz para as aulas de língua vernácula. Esse recurso pode trazer ao estudante uma visão mais ampla do processo da língua: todos os setores estão passíveis a formação das palavras. A peculiaridade humana de comunicar seus pensamentos nomeando traz formações interessantes, as quais podem ser analisadas a partir da leitura dos jornais.

Mais do que uma exigência do sistema lingüístico, a formação das palavras é uma atitude social – tentativa de se impor como cidadão, imprimir sua visão do mundo que o cerca, demarcar a comunidade lingüística de que faz parte. A formação das palavras representa o desenvolvimento do ser humano, aceleração do mundo, avanço cultural, evolução: palavras deixam de ser utilizadas, surgindo outras que correspondam ao momento em que se vive.

A morfologia trabalha indistintamente com seus sistemas de classificação, desconsiderando a variedade lingüística, mas percebemos, por exemplo, que o campo destinado ao estudo das reduções pode ser mote para estudarmos o nível informal da linguagem.

Muitas construções orais ou escritas nos chegam por esse meio.

BOTECO (BOTEQUIM). Exemplo: Vamos beber uma gelada naquele boteco.

COPA (COPACABANA). Exemplo: –Você que mora em Copa, pega onda sempre?

DEPRÊ (DEPRESSÃO). Exemplo: Quero me distrair para sair desta deprê.

FLA (FLAMENGO).

FLU (FLUMINENSE). Exemplo: Hoje tem fla x flu no maraca.

FOTO (FOTOGRAFIA). Exemplo: Achei irada a foto dessa moto.

GÁS (GASOLINA). Exemplo: Põe gás na moto que a gente dá um role!

JAPA (JAPONÊS). Exemplo: Aí japa, libera um pastel de carne!

MARACA (MARACANÃ). Exemplo: Hoje tem jogo no Maraca.

MOTO (MOTOCICLETA). Exemplo: Vou dar um role de moto.

NIVER (ANIVERSÁRIO). Exemplo: Vou tocar um rebu com os parceiros no meu niver.

NÓIA (PARANÓIA). Exemplo: Pára de nóia, a noite é tão perigosa quanto o dia.

PORNÔ (PORNOGRÁFICO / PORNOGRAFIA). Exemplo: Esse moleque se amarra num filme pornô.

PORTUGA (PORTUGUÊS). Exemplo: Deixa de ser mane portuga!

PROF (PROFESSOR). Exemplo: Qual é prof, libera a turma aí!

REBU (REBULIÇO). Exemplo: Toquei o maior rebu ontem naquela festa.

RIR (SORRIR). Exemplo: Me amarro nessa galera, eles me fazem rir.

SANDUBA (SANDUÍCHE). Exemplo: Descola um sanduba que eu estou cheio de rango!

TRANSA (TRANSAÇÃO). Exemplo: Já tive uma transa com aquela gata ali.

Ainda podemos verificar uma escolha lexical com palavras indicativas de grandeza aumentativa (umas por similaridade ou contigüidade, outras por escolhas sufixais).

AMARRADÃO (NÃO POR OBRIGAÇÃO, MAS POR VONTADE). Exemplo: Estou amarradão para ver o filme de hoje na HBO.

BONDE (NÃO VEÍCULO COLETIVO QUE AGREGA GRUPO DE PESSOAS, MAS UM GRUPO DE PESSOAS). Exemplo: O bonde lá da rua brigou no baile.

CABEÇA (NÃO A PARTE DO CORPO, MAS UM CONTINGENTE QUE POSSA SER VERIFICADO POR ESSA QUANTIDADE). Exemplo: Vão quantas cabeças viajar contigo no carnaval? Cabeçada é forma variante para cabeça.

GALERA (NÃO O LOCAL ONDE FICAM PESSOAS, MAS A QUANTIDADE DE PESSOAS). Exemplo: A galera vai tomar uma gelada lá em casa domingo.

GERAL (NÃO O LOCAL DO MARACANÃ QUE CONCENTRA MAIOR NÚMERO DE PESSOAS, MAS UM GRUPO DE PESSOAS). Exemplo: Geral foi ao Maraca de moto. Foi irado!

GOLAÇO (NÃO QUE SE POSSA MEDIR POR TAMANHO, MAS PELA HABILIDADE COM QUE SE CHEGOU AO FEITO). Exemplo: Ontem o canal de esporte só mostrou golaço.

MULÃO (NÃO UM ANIMAL DE PORTE QUE POSSA TRANSPORTAR MAIS DE UMA PESSOA, MAS UM GRUPO DE PESSOAS). Exemplo: Vai o maior mulão para praia domingo.

MULHERAÇO (NÃO PELO TAMANHO NECESSARIAMENTE, MAS PELA ATENÇÃO ACIMA DO NORMAL QUE DESPERTA NAS PESSOAS). Exemplo: Meu amigo, que mulheraço que está passando aqui!

PANCADÃO (NÃO PELA FORÇA QUE SE IMPRIME, MAS PELA FORÇA QUE PROVOCA). Exemplo: Se liga, esse cd só toca pancadão.

SARADÃO (NÃO CURADO DE ALGUM MAL, MAS COM O CORPO DEFINIDO: O QUE IMPLICA BOA APARÊNCIA PARA OS CONCEITOS DE HOJE). Exemplo: –Você está malhando muito? Ficou saradão.

Outro afixo, não relacionado à indicação de grandeza, que parece atender a variedade informal perfeitamente, é o sufixo –ada (tanto para sentido coletivo quanto para prolongamento da ação).

CRIANÇADA (SENTIDO COLETIVO). Exemplo: Sou eu que vou levar essa criançada ao shopping.

HOMARADA (SENTIDO COLETIVO). Exemplo: Juntou uma homarada no boteco para ver futebol.

LIXARADA (SENTIDO COLETIVO). Exemplo: A mulherada juntou a lixarada que a homarada deixou.

MIX (MISTURA). Exemplo: Me amarro nesse pancadão, é um mix de samba-funk.

MULHERADA (SENTIDO COLETIVO). Exemplo: A mulherada vai ao shopping gastar dinheiro.

NIGHT (NOITE). Exemplo: Demorou da gente sair na night, galera!

NOITADA (PROLONGAMENTO DA AÇÃO). Exemplo: Aí, guerreiro! Nessa noitada é nós na fita. Observa-se a utilização de estrangeirismo norte-americano na variedade informal.

OLHADA (PROLONGAMENTO DA AÇÃO). Exemplo: Se liga! Dá uma olhada na minha moto, valeu?

PALHAÇADA (PROLONGAMENTO DA AÇÃO). Exemplo: Pára de palhaçada! Você vai me matar de rir.

PLAY (DIMINUIÇÃO DE PLAYBOY= MENINO, RAPAZ). Exemplo: Aí play, você vai formar com aquela gatinha?

PLAY (DIMINUIÇÃO DE PLAYGROUND= LOCAL PARA LAZER). Exemplo: Ficar no play contigo perto de um monte de crianças? Não mete essa!

REMIX (REPRISAR / REVIVER). Exemplo: Quero fazer um remix com aquela gatinha.

RISADA (PROLONGAMENTO DA AÇÃO). Exemplo: Esse mane só me faz dar risada.

SHOPPING (CENTRO COMERCIAL). Exemplo: Enquanto eu faço compras no shopping, a criançada fica no play.

SHOW (ESPETÁCULO). Exemplo: Você vai com a galera ao show? Vai o maior mulão!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática educacional deveria, se não estivesse presa a fatores não só lingüísticos como também político, histórico, ideológico, partir do conhecimento cultural de uma comunidade lingüística para explorar os aspectos que comprovam sua inteligência. Verifica-se, no entanto, que a demonstração de um saber refere-se a instauração que o constitui. No Brasil, a linguagem oral representa o gentio pelo olhar academicista, recebe uma apreciação folclórica praticamente: fala-se em ensinar variedade formal como se fossem dar catequese aos aborígines. A organização para o ensino da variedade formal quase nos leva a crer que a forma padrão é recorrente e o uso da forma coloquial é pontual.

A linguagem utilizada pela sociedade determina a ligeireza dos avanços lingüísticos, já que a língua se nos apresenta como um emaranhado de tendências que vão se realizando de maneira gradual, relativamente diversificada, dadas as condições sociológicas que possibilite seu uso efetivo. Percebe-se, na prática didático-pedagógica, tanto uma maior valorização das formações lexicalizadas (como estratégia de um saber gramatical) quanto uma depreciação da linguagem dos discentes. A dicotomia entre o domínio de linguagem do aluno e a subjetividade com que se propõe o ensino de morfologia não tem promovido um dialogismo entre os níveis informal e formal.

Não sendo a nossa atual maneira de falar exatamente idêntica a de nossos antepassados, nem mesmo, habitualmente, de nossos familiares mais antigos, admira-nos que alguns métodos de ensino permaneçam os mesmos (mesmo com o avanço científico invadindo nossas vidas). Mesmo que nossa linguagem tenha sido renovada, o ensino de morfologia continua confinado a um molde sem nenhuma revisitação metodológica.

Propomos a prática de ensino (de qualquer conteúdo gramatical) a partir da leitura e da compreensão de textos por um entendimento de níveis de equivalência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Ieda Maria. Neologismo. São Paulo: Ática, 1990.

AUROUX, Sylvain. A Revolução Tecnológica da Gramatização. Campinas: UNICAMP, 1992.

BARBOSA, Maria Aparecida. Léxico, Produção e Criatividade. São Paulo: Plêiade, 1996.

BRASIL. LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96). 2ª ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação, 2001.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC / SEF, 1998.

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Lingüística: pensamento e ação no magistério. Rio de Janeiro: Scipione, 1999.

FREITAS, Maria Teresa de Assunção & COSTA, Sérgio Roberto (orgs.). Leitura e Escrita de Adolescentes na Internet e na Escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

GUIMARÃES, Eduardo. História da Semântica: sujeito, sentido e gramática no Brasil. Campinas: Pontes, 2004.

MONTEIRO, José Lemos. Morfologia Portuguesa. Campinas: Pontes, 2002.

NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática: história, teoria e análise, ensino. São Paulo: UNESP, 2001.

 

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos