Mário Quintana
a simulação de oralidade como estratégia literária.

Marcos Xavier Borba (UERJ)

Considerações Iniciais

Esta breve comunicação visa demonstrar como o poeta Mário Quintana utiliza marcas típicas da modalidade falada da língua como estratégia literária em vários momentos de sua obra.

Tradicionalmente, a fala e a escrita apareciam numa perspectiva dicotômica. Enquanto a escrita era considerada “estruturalmente elaborada, complexa, formal e abstrata”, a fala surgia como “concreta, contextual e estruturalmente simples”.(Marcuschi). Tal visão idealizada que percebia cada uma como um fenômeno isolado, estático e homogêneo não corresponde, na prática discursiva, à correlação das duas modalidades entre si.

Atualmente, já existe um consenso de que ambas, apesar de suas características próprias, interagem constantemente no dia-a-dia. Um exemplo contundente dessa interação nos meios de comunicação mais modernos é o chamado “bate-papo” (“chat”) da Internet. Nele, observamos o “falado” por escrito, uma vez que ocorre, o tempo todo, uma situação interativa, mesmo que os interlocutores não se encontrem, de fato, frente a frente.

Na verdade, o que não podemos esquecer é que a linguagem, em geral, encontra-se condicionada a fatores vários, além de apresentar variedades diversas difíceis de serem demarcadas no seu uso. Estas variações podem estar ligadas ao espaço geográfico (diatópicas), estar condicionada aos diferentes estratos sociais (diastráticas), ou ainda ser derivadas de modalidade expressiva, de estilos diferentes, ligados às circunstâncias em que se realizam os atos de fala (diafásicas) (Cardoso).

Além dessas variantes acima mencionadas, convém salientar os aspectos afetivos que caracterizam a expressividade que perpassa os fatos da língua, e o emprego poético da linguagem pelos artistas da palavra, típico da literatura.

Este último uso da linguagem interessa-me sobremaneira. Nesta comunicação, pretendo destacar algumas marcas de oralidade empregadas por Quintana nos seus textos e observar de que forma elas contribuem para enriquecer as possibilidades de expressividade e de compreensão da mensagem do autor.

Características específicas da modalidade oral

Devido à complexidade do tema, discorrerei apenas sobre algumas características morfossintáticas e léxico-semânticas. Estes aspectos foram citados por Urbano no livro Oralidade na literatura: o caso Rubem Fonseca de 2000.

Morfossintáticas

emprego de palavras e partículas sem conteúdo significativo (“é”; “é que”);

tendência ao analitismo (“vou viajar” em vez de “viajarei”);

o emprego indiscriminado de “este/esse” e “onde/aonde”;

o emprego do presente pelo futuro (Amanhã eu falo com você.);

o uso do perfeito no lugar do mais que perfeito;

o emprego de formas intensificadoras ou enfáticas (Você bem que podia me aceitar)

Léxico-Semânticas

expressões com constituintes de valor semântico indeterminado (“não sei quê”);

expressões típicas do discurso oral (“sem essa”, “tudo bem”);

expressões idiomáticas e elementos gírios (“não é mole”, “com certeza”);

elementos fáticos (marcadores conversacionais discursivos): (“ah”, “éh”, “ahn”);

expressões de situação (“mas”, “então”, “agora”, “olha”);

dêiticos (Você, o receptor; eu, o emissor; aqui, o lugar; agora, o tempo; isto, o assunto da comunicação)

As Marcas de Oralidade na Prosa-Poética de Quintana

Antes de analisar dois breves textos de Quintana, gostaria de salientar outros aspectos típicos da linguagem conversacional recorrentes no autor: a pergunta retórica, a retificação e o uso de comparações.

Texto 1: A HERANÇA

Se eu fosse um iluminado, com que habilitações
poderia eu distribuir a minha carne e o meu sangue?
Apenas diria aos discípulos famintos:
¾ Eis aqui os meus ossos. (Caderno H, p. 2)

Neste texto, com frame de humor/ironia (característica marcante do autor e da língua falada), Quintana “dialoga” não só com o leitor, mas igualmente com o livro sagrado dos cristãos: a Bíblia. A intertextualidade com a Bíblia aparece em palavras/expressões do tipo “herança”, “iluminado”, “discípulos” entre outras.

A estrutura hipotética “se eu fosse” acompanhada de um torneio interrogativo (típicos da oralidade) subentendem uma “situação conversacional” tanto com o leitor quanto com a tradição cultural, ocidental, católico-cristã.

Na verdade, a simulação de “diálogo” com um interlocutor qualquer ou com uma sociedade serve para o poeta se posicionar ironicamente como um “Deus” diante de seus “interlocutores/discípulos”. E se tal hipótese ocorresse, este ofereceria simplesmente os ossos.

Cabe notar que a simbologia inerente a “sangue” e “carne” (= vida) da fala de Jesus são sarcasticamente retomados através dos “ossos”(=morte)/ “textos” do poeta.

Outra leitura possível: a que compararia o poeta a um deus, visto que aquele também seria um criador. No entanto, este criador humano apenas teria os ossos/poemas para ofertar aos seus leitores/discípulos.

O emprego da expressão recorrente na modalidade oral “eis aqui” aparece como recurso do autor para tornar o texto mais coloquial e informal, além de parodiar a famosa fala bíblica.

Em suma, embora Quintana utilize procedimentos característicos da modalidade falada informal, com um léxico bem conhecido dos interlocutores/leitores, com estruturas sintáticas simples, a mensagem se torna literária pelos questionamentos implícitos.

Texto 2: O MUNDO DE DEUS

Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que os primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu.

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas metrópole terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer estas palavras de um personagem de Balzac: “O deserto é Deus sem os homens”. (Caderno H, p. 3)

Nesta narrativa, o autor “esconde-se” por meio de um discurso em que ele parece estar ausente. Na verdade, ocorre um “diálogo implícito” entre o que está sendo contado e a sutil intervenção do narrador ao se posicionar sobre o real mundo de Deus.

O interlocutor, igualmente implícito, pode ser o leitor, a Bíblia e até Balzac através de um personagem.

A repetição de palavras, recorrente na língua oral, aparece em “...se Deus é paz e paz é silêncio...”. A retificação, outro procedimento usual na fala, surge em “...no final de contas...”; “...pelo que me toca...”; “...é que...”.

O uso de palavras reiterativas ou enfáticas (característica morfossintática do discurso conversacional), muitas apenas para reforçar a mensagem, aparece em “...deve Ele estar mesmo muito mais na lua...”.

O emprego do pronome anafórico “Ele”, substituindo Deus, consiste em outro traço da oralidade para dar coesão e agilidade ao discurso.

Cabe observar que a citação de fatos cotidianos de conhecimento geral (a chegada do homem à lua) serve não só para atrair a atenção do leitor, mas sobretudo como pretexto para o poeta “filosofar” sobre deus e a paz.

No final, o “diálogo” com uma fala de um personagem de Balzac (“o deserto é Deus sem os homens”) contribui para ratificar a visão de Quintana sobre o tema.

Considerações Finais

Embora o tema demande um desenvolvimento maior, acredito que com a análise dos dois textos acima já se possa perceber que o emprego consciente e recorrente de marcas de oralidade na prosa-poética de Quintana seja uma “estratégia” a fim de envolver o leitor e embutir as mensagens poéticas do autor.

Em outros termos, através da incorporação intencional de marcas de oralidade nos seus textos, Quintana cria uma simulação de realidade cotidiana que atrai o leitor. A escolha de um léxico propositadamente coloquial aliada a estruturas morfossintáticas simples (típicas da modalidade oral) conquistam o leitor, amiúde, pouco afeito a uma linguagem mais rebuscada. Depois de seduzido por um texto pretensamente simples, o poeta passa a sua mensagem sempre surpreendente, instigante e renovadora.

Referências Bibliográficas

CARDOSO, Suzana e FERREIRA, Carlota. A dialectologia no Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.

MARCUSCHI, L. A. Marcadores conversacionais no português falado: formas, posições e funções. In: CASTILHO, A T. (org.). Português falado do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 1989.

QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo: Globo, 1989.

URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura: o caso Rubem Fonseca. São Paulo: Cortez, 2000.

 

 

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