PEQUENAS PROFISSÕES
A crônica como uma figurativização do cotidiano

Lúcia Maria de Assis (UBM e UGB)

O presente trabalho tem como tema a observação da crônica como gênero discursivo folhetinesco, que nasce no jornal, vinculado aos assuntos da página em que se encontra e, de forma geral, vinculado aos temas da sociedade, da humanidade.

Com a intenção de melhor abordar o conceito do gênero discursivo (e literário) crônica, apóia-se em Arrigucci, Bakhtin, Candido, Cereja e Magalhães, Martins, Neves e Sá. É com base nesses estudiosos que se conceitua a crônica como um gênero discursivo secundário, híbrido de oralidade e escrita, que nasce no jornal e se eterniza no livro de coletâneas.

Os procedimentos metodológicos utilizados para atingir o objetivo envolvem análise de material bibliográfico, constituição e análise do corpus. Para isso, conceitua-se o gênero discursivo crônica, a fim de se conhecerem as características que o individualizam. De posse dessas noções teóricas, analisa-se a crônica “Pequenas profissões”, de João do Rio, empregando-se a teoria semiótica de texto, de base greimasiana, observando como o cronista constrói a figurativização do tema abordado em busca de determinada leveza que encanta, mas faz com que o leitor reflita sobre as condições de vida oferecidas pelo capitalismo.

Crônica – um gênero discursivo secundário

Sem abordar a problemática dos gêneros discursivos não seria possível falar no gênero crônica, Portanto, lança-se mão de análises sobre o assunto realizadas por Bakhtin (1997), Marcuschi (2001 e 2002) e Rojo (2001).

A princípio nota-se uma diferença terminológica, pois, ao se referir aos gêneros, Bakhtin fala nos discursivos e Marcuschi nos textuais. Apesar da tênue diferença existente entre texto e discurso, sendo aquele, materialização deste, a abordagem dos referidos autores direciona-se para o mesmo enfoque. Marcuschi (2002), de certa forma, justifica a nomenclatura ao afirmar ser impossível estudar um sem o outro. Para tal justificativa, diz que “os textos são acontecimentos discursivos para os quais convergem ações lingüísticas, sociais e cognitivas” (Beaugrande, 1997 apud Marcuschi, 2002).

A convergência das abordagens de Bakhtin e Marcuschi comprova-se, também, ao se analisar o que cada um diz a respeito de gêneros. Para Bakhtin (1997: 270):

Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros discursivos.

E para Marcuschi (2002: 219):

(...) os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa (...). surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas.

Embora de maneira diferente, os dois estudiosos entendem que os gêneros (textuais ou discursivos) existem em função da necessidade humana de comunicação e se ampliam e modificam de acordo com as mudanças ocorridas na sociedade e as diferentes necessidades comunicativas. Assim, é correto afirmar que alguns gêneros cristalizam-se formalmente em determinadas necessidades e intenções, como a réplica do diálogo cotidiano, a conversação telefônica, as produções científicas, a crônica, as notícias de jornal, os classificados, entre outros.

Como a sociedade vai-se modificando diuturnamente, inclusive com força da revolução tecnológica, os gêneros vão sendo ampliados na instauração de novas relações com os usos da linguagem. De acordo com Marcuschi (2002: 21).

Em certo sentido, possibilitam a redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso, como por exemplo a relação entre oralidade e escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras. (...) criam formas comunicativas próprias com um certo hibridismo que desafia a velha visão dicotômica ainda presente em muitos manuais de ensino de língua.

Marcuschi fala ainda da crescente utilização de formatos de gêneros prévios com objetivos novos. Em relação a isso, observa-se a crônica, gênero discursivo que, a princípio, era relato de acontecimento histórico ou sobre a corte, escrito a pedido do Rei ou Imperador e, atualmente, consolidou-se como gênero voltado para o cotidiano, relatando-lhe o que, aparentemente, é menos expressivo com a intenção de lhe atribuir maior dignidade, divertindo o leitor e, ao mesmo tempo, fazendo-lhe questionamentos sobre a natureza humana.

Como os gêneros transmutam e abarcam tudo o que é utilizado para a comunicação, torna-se tarefa extremamente complicada estabelecer-lhes uma categorização. Sendo assim, para Bakhtin (op. cit.) importa considerar a diferença essencial que os coloca em duas categorias básicas: a dos gêneros primários e a dos secundários. Os primários são simples e se constituem em circunstância de comunicação verbal espontânea; os secundários são aqueles que, tomando como os primeiros, transmutam-nos e aparecem em situações de comunicação cultural mais complexa e mais evoluída, principalmente na forma escrita.

Rojo (2001: 55), sobre tal categorização, diz que os gêneros:

Primários são próprios da comunicação cotidiana a privada, sendo mais arcaicos, surgindo em situações de produção mais simples e mais próximas da palavra falada. Seriam o material discursivo básico sobre o qual se reelaborariam ou segundos, próprios das esferas sociais públicas de circulação dos discursos, que implicam situações de produção mais complexas, muitas vezes ligadas à escrita.

Marcuschi (2001b), ao falar de gêneros textuais, no trabalho publicado na obra Investigando a relação oral/escrito, também se refere à dificuldade de categorização de todos os gêneros textuais existentes e, por isso, estabelece-lhes três amplos conjuntos: os tipicamente orais, os tipicamente escritos e os produzidos na interface oral/escrito. Pode-se dizer que esses conjuntos encaixam-se na denominação bakhtiniana, sendo os falado e escrito primários ou secundários de acordo com sua complexidade. Porém aqueles produzidos na interface oral/escrito são gêneros secundários, uma vez que, preponderantemente se apossam de gêneros primários para se construírem.

Sendo assim, é correto dizer que a crônica é um gênero secundário, posto que em sua elaboração são reempregados recursos do gênero primitivo. Tal afirmação confirma-se nas palavras de Bakhtin (op. cit., p. 325).

Em sua grande maioria, os gêneros literários são gêneros secundários, complexos, que são compostos de diversos gêneros primários transformados (réplicas do diálogo, narrativas de costumes, cartas, diários íntimos, documentos). Esses gêneros secundários, que pertencem à comunicação cultural complexa, simulam em princípio as várias formas da comunicação verbal primária. É precisamente isso que gera todas essas personagens literárias convencionais de autores, de narradores, de locutores e de destinatários.

A partir dessa noção de gênero discursivo e de que a crônica se encaixa num gênero secundário, aborda-se, a seguir, uma pormenorização de suas características, a fim de melhor identificá-la e particularizá-la.

Surgimento e consolidação no Brasil

O gênero discursivo literário crônica, segundo Neves (1992: 76), tem seu objeto “no cotidiano construído pelo cronista através da seleção que o leva a registrar alguns aspectos e eventos e abandonar outros”. Assim, é comum se dizer que se trata de um gênero híbrido que oscila entre a literatura e o jornalismo, resultado da visão pessoal, subjetiva do cronista ante um fato qualquer.

Existente desde a Idade Média, esse gênero passou por inúmeras modificações, deixando, primeiramente, de ser registro da História, depois de ser essencialmente jornalístico e “folhetinesco”, para atualmente figurar também em livros e coletâneas. Mesmo assim, não se desvinculou do sentido etimológico da palavra grega da qual deriva: khronos, que significa tempo. Assim, Bender e Laurito (1993) e também Martins (1980) afirmam que tal gênero encarrega-se da descrição de acontecimentos em ordem cronológica ou conforme a ordem dos tempos.

A principal mudança no gênero vem do fato de que, em seu sentido primário, a crônica significava “registro do passado e dos fatos na ordem em que se sucederam” (id.: 3) e, atualmente, seu enfoque é voltado para os fatos do dia-a-dia. Assim, tanto como registro do passado ou flagrante do presente, esse gênero trata de um resgate do tempo.

Para realizar esse resgate de forma que não canse o leitor, na crônica procura-se esconder a complexidade pressentida sob uma límpida naturalidade, por meio do disfarce numa suposta conversa sem rumo. Arrigucci (1999: 6) explica que isso é feito com

...vocabulário escolhido a dedo para o lugar exato, uma frase em geral curta, com preferência pela coordenação, sem temer, porém, curvas e enlaces dos períodos mais longos e complicados; uma sintaxe, enfim, mais leve e flexível, que toma liberdades e cadências da língua coloquial, propiciando um ritmo de uma soltura sem par na literatura brasileira contemporânea.

Nesse gênero, o autor dirige-se diretamente ao leitor, explicando-lhe seu ponto de vista. Para Martins (op. cit.: 3), trata-se de um trabalho de natureza ensaística, pois “parece residir na relação com a palavra falada e com a elocução oral”, possuindo um “estilo que se aproxima da marcha do pensamento no momento mesmo em que se produz, sem artifícios intermediários para a expressão do que está na alma.

Os referidos críticos literários acreditam que a crônica tenha se firmado na transição para o Renascimento, quando, em 1434, Fernão Lopes foi nomeado cronista-mor e se tornou escritor profissional (cronista) do Reino, utilizando como matéria-prima os fatos históricos e a interpretação deles. Nessa época, o gênero significava uma narrativa vinculada ao registro formal de acontecimentos históricos.

Sá (2000) bem como Bender e Laurito (op. cit.) destacam que a primeira crônica brasileira foi escrita por Pero Vaz de Caminha na Nova do Achamento, na qual foi recriado com engenho e arte tudo o que se viu no contato direto com os índios e seus costumes naquele instante de confronto entre a cultura européia e a primitiva. Caminha escrevera depois de um primeiro contato com o local e com as pessoas que ali viviam, registrando certa concretude, impedindo que o circunstancial caísse no esquecimento. Tratava-se, então, da marca de registro do circunstancial feito por um narrador-repórter que relatava um fato a leitores que formavam um público determinado: soma de jornalismo e literatura.

A esse respeito, afirma Martins (op. cit.) que, em seu sentido literário, o primeiro cronista brasileiro foi Francisco Otaviano, em 1852, quando escrevia no Jornal do Comércio. Em seguida, e com elevada importância, pode-se falar de José de Alencar e Manuel Antonio de Almeida, cronistas do Correio Mercantil, sob o título de Páginas Menores. A partir daí, outros cronistas foram surgindo e, em 1922, a Semana de Arte Moderna possibilitou à crônica uma feição característica diante das necessidades da vida contemporânea na sua agitação e no seu movimento.

Para Candido (1992), porém, esse gênero consolidou-se no Brasil no decênio de 1930, época em que foi cultivado por inúmeros escritores e jornalistas, como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga (cronista por excelência) e, mais tarde, nos anos 50, por Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Foi com esses escritores, além de Raquel de Queirós, que a crônica definitivamente deixou de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo para virar conversa aparentemente fiada.

Mesmo nessa época, a crônica ainda era vista como um misto de jornalismo e literatura uma vez que, a princípio, aparecia num jornal e possuía, como leitores, a classe que dava preferência àquele jornal, o que limitava o texto, uma vez que “a ideologia do veículo corresponde ao interesse dos seus consumidores, direcionados pelos proprietários do periódico e/ou pelos editores-chefes de redação” (Sá, op. cit.: 8); só mais tarde ela integraria uma coletânea, que seria organizada, em geral, pelo próprio cronista.

Antes de ser cronista, então, esse gênero foi folhetim e buscava refletir questões políticas, sociais, artísticas e literárias. Para que fosse um texto mais atraente, o cronista (folhetinista) dava voz a um narrador de tradição oral, que parecia acompanhar o curso natural das coisas. Assim como fazia Rubem Braga, para quem o grande mistério era a simplicidade e a arte de dar um sentimento solene às palavras do dia-a-dia.

Com o tempo, a crônica (folhetim) foi ganhando um ar de quem estava escrevendo à toa, sem dar muita importância; abandonando o objetivo de informar e comentar, ficando com o de divertir, através de uma linguagem mais leve, mais descompromissada, afastando-se, mais e mais, da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar na poesia.

Nela há a liberdade do cronista, que transmite uma aparência de superficialidade para desenvolver o seu tema, como se fosse por acaso. Assim, é o autor o próprio narrador da crônica e tudo o que ele diz parece ter acontecido de fato, como se fosse uma reportagem. O limiar entre o jornalístico e o literário é tão presente assim como a semelhança com o conto. Sobre isso, Martins (1980: 10) diz que:

Muitas vezes a crônica se chega tão próximo do acontecimento que redunda em simples reportagem, perdendo sua identidade. Outras mantêm suas características, chegando-se ao conto sem nele se transformar, literatizando o acontecimento. Esse meio termo entre o acontecimento e o lirismo parece ser a postura ideal do cronista para a elaboração de sua crônica.

Observa-se, também, que a aparência de simplicidade da crônica deve-se ao seu surgimento no jornal, com sua precariedade, tendo a efemeridade de nascer no começo de uma leitura e morrer até o final do dia. É por meio dessa aparência que o cronista proporciona ao leitor uma visão abrangente, que vai além do fato, mostrando sinais de vida que diariamente deixamos escapar, o que, de acordo com Cereja e Magalhães (2000), é feito com doses de humor, sensibilidade, ironia, crítica, poesia, graça e leveza.

Como diz Candido (1992: 16), “a linguagem ‘simplória’ faz com que haja maior proximidade entre as normas da língua escrita e da língua falada, pois o cronista elabora seu texto à semelhança de um diálogo entre ele e o leitor”. Sendo assim, na crônica, como na língua falada, não cabe a “sintaxe rebuscada, com inversões freqüentes, com o vocabulário ‘opulento’”, por isso ela “opera milagres de simplificação e naturalidade”, demonstrando a busca da oralidade na escrita, isto é, de quebra de artifício e de aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo.

No dizer de Sá (op. cit., p. 11), tal dialogismo equilibra o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como elemento provocador de outras visões do tema, assim como acontece em nossas conversas diárias e em nossas reflexões.

A crônica relata, então, uma circunstância, um pequeno acontecimento do dia-a-dia, transformando-o em um diálogo sobre a condição humana; isso porque o cronista, com seu toque de lirismo reflexivo, capta o instante brevíssimo e lhe confere a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos. Sobre isso, leia-se Arrigucci (1999: 15):

O cotidiano surge (...) como o lugar da mistura artisticamente fecunda, pois vira uma espécie de modelo de vida real para o escritor: é onde o mais alto aparece mesclado ao mais baixo; o puro ao impuro; o poético agarrado ao erótico; a cidade atravessada pelo campo; o passado pelo presente (...).

Com isso o cronista busca e julga a comunicação humana e a solidariedade social, fazendo com que o leitor redescubra a dignidade de objetos, como trabalho, dor, prazer, alegria, que se misturam a emoções esquecidas. Essa comunhão de objetos antagônicos revela certa preocupação ética e sugere a necessidade de harmonia do indivíduo com o universo e com o seu tempo. Parece, então, correto dizer que a crônica, a princípio, se trata de um gênero secundário, passageiro, circunstancial, mas que se tornou muito receptivo e disponível para perceber as coisas miúdas com as quais o ser humano tende a identificar-se, o que a levou à eternidade dos livros, não só à efemeridade da página diária de um jornal.

Sua receptividade e eternidade devem-se, também, ao fato de que, através da aparência de simplicidade, do diálogo entre autor-leitor, os cronistas fazem com que o leitor reencontre o prazer da leitura, aprendendo a ler na história inventada a sua própria história.

Essa eternidade parece contraditória, uma vez que a crônica nasce ao amanhecer (com o jornal) e morre no fim do dia. Observa-se, porém, que isso se deve à necessária mudança de atitude do consumidor (leitor), pois quando a crônica é transportada do jornal para o livro, as possibilidades de leitura tornam-se mais amplas e o texto passa a explorar mais sua riqueza, permitindo ao leitor novas vias interpretativas. Nesse contexto, o diálogo autor-leitor intensifica-se, fazendo com que eles se tornem cúmplices no ato de reinventar o mundo pelas vias da literatura.

Assim, conforma-se o que diz Candido (op. cit., p. 13): “Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural.”

Diante do exposto, pode-se dizer que tal gênero discursivo, considerado secundário por utilizar características de fala e de escrita, efetivamente trabalha com o cotidiano, com a linguagem simples, com a proximidade do leitor. É exatamente isso o que dá à crônica essa magicidade, esse encantamento.

A crônica de João do Rio

João do Rio foi um grande representante da belle époque carioca, pois, mais que outros, parecia estar completamente à vontade naquele ambiente. Sua produção exacerbava o gosto pelos modelos franceses, a atração pelo decadente e pelo oculto, o consumo ostentatório e refinado, e a ironia desiludida. Com tanta extravagância, ele tornou-se o jornalista mais famoso da época.

O cronista revolucionou o jornalismo carioca e rompeu com as tradicionais reflexões de gabinete até então comuns, pois não ficava ali; ao contrário saía em busca das histórias que aconteciam nas ruas da Cidade Velha, nas favelas da Cidade Nova e nos morros. Com isso, floreou o estilo já exuberante da época. Além do mais, fortemente influenciado pelos franceses, esse dândi explorou com olhar crítico e irônico cada aspecto da vida mundana carioca. Com tanto sucesso, ainda jovem tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras, o que o fez mais assediado pela sociedade que desejava ler seus textos.

A crônica Pequenas Profissões, primeiramente publicada em 1904, no jornal A Gazeta de Notícias, sob o título de Profissões Exóticas, faz parte da obra de João do Rio, intitulada A Alma Encantadora das Ruas. Essa crônica pretende figurativizar como as relações de poder ocorrem com as pessoas das ruas do Rio de Janeiro. Para tal, o autor aborda as profissões (exóticas ou subempregos) que podiam ser encontrados na cidade, ou seja, são mostradas as estratégias (financeiras, econômicas) empregadas pelas pessoas mais pobres a fim de sobreviverem naquele local, num regime capitalista.

Para atingir seu objetivo, o cronista mostra como no cenário maravilhoso, natural e rico do Rio de Janeiro convivem pessoas de todas as espécies, que lutam pela sobrevivência exercendo atividades não reconhecidas, desvalorizadas e que, muitas vezes, nem são percebidas pelos mais abastados.

Inicialmente o cronista figurativiza a beleza natural aliada à riqueza da cidade. Para isso, cria as figuras do sol, do mar azul, ilhas verdejantes, lanchas de velas brancas, navios, fortalezas. Cenário perto do qual se desenvolvem os fatos abordados ao longo da crônica. É nesse espaço que já se começam a construir os tipos humanos que ali sobrevivem: o cigano e o catraieiro.

Nesse espaço, de aparente riqueza, constroem-se as figuras de oposição, pois ali se pode ver a forma tumultuada e complicada como algumas pessoas vivem, em dissonância de toda essa riqueza natural: “Pelos bulevares sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios”. Observa-se, então, a figurativização de um outro espaço: pobre, sujo, confuso, agitado, que se opõe ao primeiro.

O enunciador se coloca na história que pretende desenvolver, por meio de uma debreagem enunciativa em relação ao eu-aqui-agora. Ele fala de algo que vivenciou (debre agem actancial) naquele espaço (debreagem espacial), num tempo anterior ao que conta o ocorrido (debreagem temporal, relação de anterioridade ao agora):

Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça.

Para mostrar o que via na luta diária pela sobrevivência, o enunciador cria personagens, com diferentes características, os quais não recebem um nome individual. O tratamento dessas pessoas por meio de uma generalidade demonstra a falta de importância de suas existências. Isso fica claro quando o enunciador observa tudo aquilo com olhos de quem não pertence àquele espaço, de quem não precisa passar por tudo aquilo para sobreviver. Por isso diante dessa confusa coletividade, ele tem um nome que o individualiza: Eduardo.

São criadas, então, personagens como o cigano, o qual, numa sociedade desigual, tenta sobreviver vendendo alguns objetos (calças, um anel supostamente de ouro), para as pessoas que por ali passam e têm aparência de serem mais facilmente convencidas, enganadas: um catraieiro. Mostra-se aí, a miséria humana: “eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje!”. Ao mesmo tempo em que tal personagem figurativiza a miséria em que algumas pessoas vivem, também figurativiza a esperteza desonesta, pois sua insistência deve-se ao fato de achar que a pessoa abordada é “uma presa fácil”.

Ao caracterizar o cigano, o enunciador/narrador figurativiza o tema da exploração capitalista que gera uma luta desigual e desonesta pela sobrevivência (para uns) e por maior riqueza (para outros): “produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio”; a vida dos desgraçados; “o cigano não faz outra coisa na sua vida senão vender calças velhas e anéis de plaquet”; “profissão da miséria (...) da malandrice”; “esses pobres seres vivos vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos de telhados”; “são explorados por adelos, pelos ferros-velhos, pelos proprietários de fábricas”.

Até então vemos um encadeamento das figuras que reiteram o tema da luta pela sobrevivência e da exploração humanas. Tal encadeamento constrói uma isotopia figurativa. Seguindo a leitura da crônica, entretanto, vemos que há uma pequena mudança de prisma na observação do enunciador/narrador a respeito do que as pessoas fazem para sobreviver. A partir desse momento, ele tenta figurativizar as atividades dos desvalorizados como profissões, desconhecidas, mas existentes na cidade do Rio de Janeiro. Isso se agrega ao que era falado anteriormente por meio de um desencadeador de isotopias, o qual possibilita a mudança da isotopia figurativa sem a perda da coerência temática: “As pequenas profissões!... É curioso!”.

O demérito da luta, a falta de reconhecimento, são figurativzados pela falta de estudo, pelo desconhecimento da academia a respeito de como sobrevivem os pobres: “não conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as ledoras (...) nem os ratoeiros”; “infinidades de profissões sem academia”; “coitados!”; “dolorosa academia da miséria”.

Vê-se ainda o tema da inteligência humana. Entretanto, há uma contradição, pois é a mesma inteligência que faz com que as pessoas continuem sendo exploradas num sistema capitalista, elitista, excludente. Tal tematização é abordada através de figuras como “os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos” (inteligência); “preço fixo para o trabalho (...) tarifa combinada entre os compradores, os italianos remendões”; “um par de botas (...) custa 400 réis”; “os italianos vendem as botas (...) por seis e sete mil réis” (exploração capitalista); “os selistas (...) passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos de anéis e os rótulos de charutos (inteligência); “os anéis dos charutos servem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis (exploração capitalista). Nos trechos em que se encontram tais figuras (e em outros) pode-se observar que, implicitamente (mas nem tanto), existe a afirmação de que a miséria humana é alimentada pelo capitalismo, pois é dela que ele sobrevive. Sendo assim, quanto mais miserável for o ser humano, mais será necessário quedar-se às normas capitalistas, vender-se, fazendo de sua miséria uma forma de sobreviver. Isso é mostrado na figura do ratoeiro que passa a comprar ratos nas moradias mais miseráveis, onde as pessoas apanham esses animais (que vive em suas casas) para vender. Ou seja, o ratoeiro, explorado pelo Departamento de Higiene, explora as pessoas (sem condições de higiene), comprando-lhes sua miséria, o que quer dizer que a falta de rato em casa (animal que invade as moradias e transmite doenças, muitas vezes fatais) pode significar até falta de condições de comprar o alimento do dia. É também dessa completa falta de tudo que o capitalismo se alimenta, colocando mais distantes, a cada dia, os que sofrem as misérias dos que se alimentam dela.

Novamente ocorre uma debreagem enunciativa; o enunciador esteve presente na Rua Fresca e observou o que ali ocorria. Existe, nesse momento, a intenção de figurativizar o antagonismo entre as angústias até então mostradas e ali continuadas e a possibilidade de diversão para algumas pessoas. Esse antagonismo é assim figurativizado: “Nos botequins, fonógrafos, roufenhos esganiçavam canções pitorescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam”. Aliada a essa suposta diversão, volta-se ao tema da exploração, pois há “pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira dos quiosques, meretrizes de (...) chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisas de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível – uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia”.

Mais à frente, o enunciador mostra-nos como a miséria e a exploração humanas animalizam (no sentido de irracionalidade) as pessoas, geram violência e fazem com que uma vida (miserável), que já não tem valor para os mais abastados, também não o tenha para aqueles que compartilham os dissabores. Isso é mostrado com a figura das pessoas que se divertem ao ver o cigano (aquele do início do texto) ser agredido por um cliente. Se a racionalidade nos difere de outros animais, nesse momento tal diferença não mais existe: “Os vagabundos, com o selvagem instinto de caça que persiste no homem, acompanharam-no”, “a ralé dos botequins, aos gritos, deitou-se na perseguição do pobre cigano molambeiro”. É o capitalismo – a miséria e a (sub)vida advindas dele – que transforma o ser humano em seres irracionais, desprovidos de solidariedade e compaixão.

Por fim, a personagem criada pelo cronista para observar como se figurativiza a sobrevivência no Rio de Janeiro –Eduardo –, torna-se um destinador-julgador e conclui que “A moral é uma questão de ponto de vista. Para julgar os homens basta a gente defini-los segundo os seus sucessivos estados”. Dessa forma não há culpa no comportamento dos que compõem aquele cenário urbano; também não há culpa na miséria, na angústia, na animalização das pessoas. Tudo isso é conseqüência de um regime que pretende explorar o pobre, fortalecendo-se às suas custas, enriquecendo mais aqueles que já são ricos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho pretendeu-se demonstrar que a crônica é um gênero literário/ discursivo híbrido que tem como principais características a simplicidade e a semelhança com as interações verbais cotidianas. É exatamente com essa falsa aparência de conversa fiada que o cronista provoca e critica a sociedade e, além disso, chama o leitor para uma reflexão. Para essa demonstração, considerou-se importante realizar um estudo dos gêneros discursivos primários e secundários, bem como da visão do gênero crônica na literatura brasileira. Por último optou-se por uma análise embasada na teoria semiótica greimasiana, em busca da figurativização temática construída pelo cronista.

Pode-se concluir que a crônica Pequenas Profissões é um texto predominantemente figurativo, construído com algumas isotopias (figurativas) que convergem para um mesmo tema – a luta pela sobrevivência num mundo capitalista.

Para abordar tal tema, João do Rio figurativizou não só as pessoas que vivem sob aquele regime, mas também o espaço em que isso ocorre. Afirma-se isso, porque a figurativização das pessoas reflete o espaço em que elas se encontram. Como predomina o percurso figurativo, pode-se dizer também que há uma iconização, pois se trata do “revestimento exaustivo com a finalidade de produzir ilusão referencial” (Barros, 2002: 117).

Para que essa figurativização parecesse verossímil, foi realizada uma debreagem enunciativa em que o enunciador se coloca no enunciado (eu/aqui), num tempo anterior ao agora, vivenciando os fatos descritos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRIGUCCI, D. Jr. Braga de novo por aqui. Os melhores Contos de Rubem Braga. 10ª ed. São Paulo: Global, 1999.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes: 1997.

BARROS, Diana Luz Pessoa. Teoria do discurso (Fundamentos Semióticos). 3ª ed. São Paulo: Humânitas, 2002.

CANDIDO, A. A vida ao rés-do-chão. CANDIDO, A. (org.) A crônica: O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Unicamp, 1992.

CEREJA, W. R. e MAGALHÃES, T. C.. Texto e interação: uma proposta de produção textual a partir de gêneros discursivos. São Paulo: Atual, 2000.

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. DIONÍSIO, A. P., MACHADO, A. R. e BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.

MARTINS, S. J. A. A crônica brasileira. São Paulo: Unesp, 1980. Revista Stylos, n.1.

NEVES, M. S. Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas. CANDIDO, A. (org.). A crônica: O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil Campinas: Unicamp, 1992.

RIO, João do. Pequenas profissões, In A alma encantadora das Ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 87-99.

SÁ, J. A crônica. 6ª ed. São Paulo: Ática, 2001.

 

 

ANEXO

Pequenas Profissões

O cigano aproximou-se do catraieiro[1]. No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verde­jantes, dos navios, das fortalezas. Pelos boulevards sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de frack e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre[2] esfomeado.

Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça.

— Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.

— Mas eu não quero.

— Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazen­da? Veja a fazenda.

Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça cor de castanha.

— Para o serviço! Dois mil réis, só dois!...Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis...não gosta de anéis?

O catraieiro ficara, sem saber como, com o embrulho das calças, e o seu gesto fraco de negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara o frack, cheio de súbito receio.

— É um anel de ouro que eu achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez mil réis, conta redonda!

O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estra­nha, agarrando a vítima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo ex-Largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas.

—  Admiraste aquele negociante ambulante?

— Admirei um refinado “vigarista”...

— Oh! meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. Lembras-te de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que bem exprimem o que são essas criaturas:

Estos son algunos hombres

De obligaciones, que pasan

Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...

É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes.

O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produ­to da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mas como o cigano não faz outra coisa na sua vida senão ven­der calçar velhas e anéis de plaquet[3], aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice — que é sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, coitados! o ofício, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos reporters.

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utili­dade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polí­cia não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explo­rados pelos adelos[4], pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas...

— As pequenas profissões!... É curioso!

As profissões ignoradas. Decerto não conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a Diretoria de Higiene e as blagues das revistas de ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos.

— Mas, senhor Deus! é uma infinidade, uma infinidade de pro­fissões sem academia! Até parece que não estamos no Rio de Janeiro...

— Coitados! Andam todos na dolorosa academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações! Os trapeiros, por exemplo, dividem-se em duas especialidades — a dos trapos limpos e a de todos os trapos. Ainda há os cursos suplementares dos apanhadores de papéis, de cavacos e de chumbo. Alguns envergonham-se de contar a existência esforçada. Outros abundam em pormenores e são um mundo de velhos desiludidos, de mulheres gastas, de garotos e de crianças, filhos de família, que saem, por ordem dos pais, com um saco às costas, para cavar a vida nas horas da limpeza das ruas.

De todas essas pequenas profissões a mais rara e a mais parisien­se é a dos caçadores, que formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São os apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo. Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale muito mais. As outras profissões são comuns. Os trapeiros existem desde que nós possuímos fábricas de papel e fábricas de móveis. Os primeiros apanham trapos, todos os trapos encontrados na rua, remexem o lixo, arrancam da poeira e do esterco os pedaços de pano, que serão em pouco alvo papel; os outros têm o serviço mais especial de procurar panos limpos, trapos em perfeito estado, para vender aos lustradores das fábricas de móveis. As grandes casas desse gênero compram em porção a traparia limpa. A uns não prejudica a intempérie, aos segundos a chuva causa prejuí­zos enormes. Imagina essa pobre gente, quando chove, quando não há sol, com o céu aberto em cataratas e, em cada rua, uma inundação!

— Falaste, entretanto, dos sabidos?

— Ah! os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos, e batem-se por duas botas iguais com fúria, porque em geral só se encontra uma desirmanada. Esses infelizes têm preço fixo para o trabalho, uma tarifa geral combinada entre os compradores, os italia­nos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200 réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por mais de 100 réis.

— Mas é bem pago!

— Bem pago? Os italianos vendem as botas, depois de conserta­das, por seis e sete mil réis! E o mesmo que acontece aos molambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver — os belchiores compram as roupas para vendê-las com quatrocentos por cento de lucro. Há ainda os selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agen­tes sem lucro do desfalque para o cofre público e da falsificação para o bur­guês incauto. Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos com anéis e os rótulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200 réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos ser­vem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis. Imagina uns cem selistas à cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5% os selos perfeitos de todos os maços de cigarros e de todos os charutos comprados neste país de fumantes; e calcula, após este pequeno trabalho de estatística, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas.

— Gente pobre a morrer de fome, coitados...

— Oh! não. O pessoal que se dedica ao ofício não se compõe apenas do doloroso bando de pés descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham também na profissão os malandros de gravata e roupa alheia, cuja vida passa em parte nos botequins e à porta das charutarias.

— E é rendoso?

— Rendoso, propriamente, não; mas os selistas contam com o natural sentimento de todos os seres que, em vez de romper, preferem retirar o selo do charuto e rasgar a parte selada das carteirinhas sem estragar o selo.

— Mas os anéis dos charutos?

— Oh! isso então é de primeiríssima. Os selistas têm lugar certo para vender os rótulos dos charutos Bismarck — em Niterói, na Travessa do Senado. Há casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém, dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um cavador — é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbs, vai até ao subúrbio, tocando um cornetinha com a lata na mão. Quan­do está muito cansado, senta-se na calçada e espera tranqüilamente a fregue­sia, soprando de espaço a espaço no cornetim.

Não espera muito. Das rótulas há quem os chame; à porta das estalagens afluem mulheres e crianças.

— Ó ratoeiro, aqui tem dez ratos!

— Quanto quer?

— Meia pataca.

— Até logo!

— Mas, ô diabo, olhe que você recebe mais do que isso por um só lá na Higiene.

— E o meu trabalho?

— Uma figa! Eu cá não vou na história de micróbio no pêlo do rato.

— Nem eu. Dou dez tostões por tudo. Serve?

— Heim?

— Serve?

— Rua!

— Mais fica!

E quando o ratoeiro volta, traz o seu dia fartamente ganho...

Tínhamos parado à esquina da Rua Fresca. A vida redobrava aí de intensidade, não de trabalho, mas de deboche.

Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados[5], rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes[6], marinheiros, bombei­ros, túnicas vermelhas e fuzileiros — uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia.

De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na Rua Fresca, um rapaz doceiro arriara a caixa, e sentado num portal, entre­gava o braço aos exercícios de um petiz da altura de um metro. Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.

— Vês? Aquele pequeno é marcador, faz tatuagens, ganha a sua vida com três agulhas e um pouco de graxa, metendo coroas, nomes e cora­ções nos braços dos vendedores ociosos. O cigano molambeiro aproveita o estado de semi-dor e semi-inércia do rapaz para lhe impingir qualquer um dos seus trapos...um psicólogo, como todos os da sua raça, psicólogo como as suas irmãs que lêem a buena dicha por um tostão e amam por dez com consentimento deles.

Oh! essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integran­tes do mecanismo das grandes cidades!

O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver.

Estos son algunos hombres

De obligaciones, que pasan

Necesidad, y procuran

De esta suerte remediarla

Saliendose a los caminos...

Mas o meu amigo não continuou o fio luminoso de sua filosofia. O catraieiro apareceu rubro de cólera, e sutilmente cosia-se com as paredes, ao aproximar-se do cigano.

De repente deu um pulo e caiu-lhe em cima de chofre.

— Apanhei-te, gatuno!

O cigano voltara-se lívido. Ao grito do catraieiro acudiam, numa sarabanda de chinelas, fúfias, rufiões, soldados, ociosos, vendedores ambu­lantes.

— Gatuno! Então vendes como ouro um anel de plaquet? Espe­ra que te vou quebrar os queixos. Sacudiu-o, atirou-o no ar para apanhá-lo com uma bofetada. O cigano porém caiu num bolo, distendeu-se e partiu como um raio por entre a aglomeração da gentalha, que ria. O catraieiro, mais corpulento, mais pesado, precipitou-se também.

Os vagabundos, com o selvagem instinto da caça, que persiste no homem — acompanharam-no. E pelos boulevards, onde se acendiam os primeiros revérberos, à disparada entre os squares sucessivos, a ralé dos botequins, aos gritos, deitou na perseguição do pobre cigano molambeiro, da pobre profissão ignorada, que, como todas as profissões, tem também malandros.

Então Eduardo sentenciou.

— Tu não conhecias as pequenas profissões do Rio. A vida de um pobre sujeito deu-te todos esses úteis conhecimentos. Mas, se esse pobre sujeito não fosse um malandro, não conhecerias da profissão até mesmo os birbantes.

A moral é uma questão de ponto de vista. Para julgar os homens basta a gente defini-los segundo os seus sucessivos estados. Se te aprouver definir os profissionais humildes pela tua última impressão, emprega os mesmos versos de Guevara com uma pequena modificação:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Corriendo por los caminos...


 


 

[1] Barqueiro de catraia (bote de um só lugar).

[2] Ave de rapina.

[3] Imitação de ouro.

[4] Quem compra e vende objetos usados; brechó.

[5] Desengonçados.

[6] Patife, malandro.

 

 

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