POR UMA PROPOSTA DIDÁTICA DE ‘RETEXTUALIZAÇÃO’
Análise e sugestão de atividade
para o ensino da leitura e da produção de textos

Maria Noêmi Freire da Costa Freitas (UERJ)

A proposta maior, que nos move para este trabalho, é repensar, funcionalmente, o ensino da Língua Portuguesa. Considerando a insatisfação geral, por parte de professores e alunos (dos níveis fundamental e médio), com os resultados desse ensino, vimos analisando estratégias didáticas que possam minimizar o problema, contribuindo para o progresso dos educandos na leitura e na produção de textos. O objetivo da análise é verificar quanto e de que modo as experiências lingüísticas de sala de aula contribuem para melhorar o desempenho dos alunos nesses processos, com vistas a reafirmá-las (ou não) como sugestões de atividades para as aulas de Português.

Apresentaremos uma atividade vivenciada por turmas de 7ª. série do ensino fundamental, em escola municipal do Rio de Janeiro. Pela nossa análise, constatamos que essa atividade contribui para o desenvolvimento das várias habilidades cognitivas necessárias ao processamento dos textos, tanto na recepção quanto na produção. A análise foi feita com base na teoria de Inez Sautchuk, em A produção dialógica do texto escrito, da Editora Martins Fontes, 2003, que aponta para a existência de uma dupla figura do redator de texto e para a dinâmica da produção textual.

Sautchuk prevê, na produção textual, dois extremos de percurso: um objetivo e uma realização, que se evidenciam nas figuras de um escritor e de um leitor interno (dupla figura do produtor do texto), nos próprios enunciados e na situação em si, deixando suas marcas no texto escrito. Essas marcas vão constituir, para o leitor externo, as instruções para o processamento dos sentidos. Nessas condições, o texto deve ser visto como uma trama lingüística. A autora demonstra como o texto em construção exibe concretamente os fatores discursivos que o compõem, seguindo-lhe o percurso de produção desde sua exterioridade como contexto extralingüístico – sócio-histórico-ideologicamente atuante – até sua manifestação como contexto lingüístico (ou como co-texto). Além do duplo comportamento psíquico do sujeito enunciador – ora como Escritor Atuante, ora como Leitor Interno, observa-lhe os movimentos semasiológico e onomasiológico de processamento da informação: no primeiro, o sentido se processa do significante para o significado (do texto para o leitor, movimento ascendente, leitura microtextual); no segundo, o processamento se dá do significado para o significante (do leitor para o texto, movimento descendente, leitura macrotextual). Esses movimentos também caracterizam a leitura do Leitor Externo.

Na orientação ascendente, destaca, lembrando Coste (1997), que “são os formantes lingüísticos da competência comunicativa que estariam funcionando primeiro” (apud SAUTCHUK, 2003: 58), enquanto, na descendente, haveria um predomínio quase total de formantes extralingüísticos. Esses movimentos são reversíveis entres si, dependendo dos graus de complexidade e de previsibilidade semânticas do texto, o que implica a proficiência tanto do leitor como do escritor, na dupla figura : E. At. /L. Int..

Entendendo a leitura como “um jogo psicolingüístico de adivinhação”, que enfatiza o uso da hipótese e da antecipação, lembra que, para o L.Ext. maduro, pelo movimento descendente, é possível “corrigir automaticamente os defeitos e pequenas incoerências do texto”, partindo de sua visão de mundo, de seu “conhecimento global organizado em modelos cognitivos, por meio dos quais o texto vai ‘fazendo’ sentido”(passim 58). Já o movimento ascendente, o qual a autora classifica como processo de natureza lingüística, “pressupõe o processamento linear dos enunciados do texto por meio de seus constituintes imediatos” (passim 59). É onde se observam as aberrações semânticas e as impossibilidades sintáticas.

Além dos treinos de leitura e de produção de textos, Sautchuk também se preocupa com as estratégias didáticas de ensino da gramática, que interferem no desenvolvimento da competência comunicativa dos indivíduos.

Diz a autora:

Tanto esse tipo de aprendizagem quanto o da gramática dirigida à produção de texto devem pautar-se por um treino de estratégias metacognitivas, isto é, de um conhecimento consciente que leve o aprendiz a conhecer as características próprias da atividade que realiza e as que estabelecem uma relação entre o seu desempenho e o resultado dele. (passim 119-120)

Ela acredita que a atividade de leitura também possa ser utilizada no desenvolvimento das habilidades próprias para a escritura: um dos aspectos dessa relação é que o L. Ext. exerce, normalmente, atividades semelhantes às do L.Int., na produção de textos.

A Atividade

O texto a seguir foi escrito por uma aluna do ensino fundamental (cópia fiel), de escola municipal do Rio de Janeiro, e aproveitado numa proposta de ‘retextualização’, em duas turmas de 7ª. série, da mesma escola, que é a atividade que vamos relatar. Nessa atividade, o aluno deveria reescrever o texto, fazendo as “correções” necessárias e tornando-o mais claro, observando os princípios de adequação lingüística e verificando o atendimento à proposta da produção inicial: “Produzir um texto em defesa do reflorestamento, associando essa defesa à importância das florestas”. Se necessário, além da reescritura, poderia ser feito algum comentário.

O Texto

O reflorestamento da Floresta da Tijuca

A muito tempo atrás a mais de 40 anos a Floresta da tijuca também foi reflorestada. Por causa do dono de uma plantação de café que estava desmatando as árvores para plantar o café, e com isso os moradores estavam ficando sem água e tendo muitos deslizamentos. Com isso, a população tiveram a idéia de fazer um reflorestamento para recuperar o ecossistema local, sua biodiversidade, proteger o solo, garantir a estabilidade das encostas.

Por isso a floresta esta sendo de novo a maior do Rio de Janeiro.

Alem disso as florestas tem muitos benefícios ambientais como restou a cobertura florestal através de árvores em locais expostos com pouca ou nenhuma vegetação, é fundamental cuidar das mudas, para que se transformem em árvores, abrigam um grande número de espécies animais e vegetais preservando a biodiversidade do planeta.

Análise da atividade

A nossa análise foi feita em dois níveis:

a) Análise dos problemas do texto, com vistas a apontar algumas correções e reescrituras que o aluno da 7ª. série poderia fazer, de acordo com a sua capacidade e habilidade na leitura e na (re)produção do texto.

b) Análise da proposta de retextualização, com o objetivo de verificar a validade didático-pedagógica da proposta.

Análise dos problemas do texto

Nota-se falta de domínio lingüístico nos seguintes itens: escolha lexical (1), emprego de letra maiúscula (2), pontuação (3), estruturação de período (4), ortografia (5), repetição inadequada de palavras e expressões (6), organização de idéias (7) e da estrutura sintática (8); concordância (9), inadequação no emprego de conectores (10), incoerências localizadas por falta de coesão (11) ou por seqüências mal formadas de idéias (12), assim distribuídos pelo texto:

A (1/5) muito tempo atrás (3) a (1/5) mais de 40 anos (3) a Floresta da tijuca (2) também (11) foi reflorestada. (4) Por causa do dono de uma plantação de café que estava desmatando as árvores para plantar o café (6), e com isso (7) os moradores estavam ficando sem água e tendo (8) muitos deslizamentos. Com isso (10), a população tiveram (9) a idéia de fazer um reflorestamento para recuperar o ecossistema local, sua biodiversidade, proteger o solo, garantir a estabilidade das encostas (8).

Por isso a floresta esta (5) sendo de novo a maior do Rio de Janeiro.

Alem (5) disso (3) as florestas tem (1/5/9) muitos benefícios ambientais como restou a cobertura florestal através de árvores em locais expostos (12) com pouca ou nenhuma vegetação, é fundamental cuidar das mudas, para que se transformem em árvores, abrigam um grande número de espécies animais e vegetais (3) preservando a biodiversidade do planeta.

Outras observações podem ser feitas, dando continuidade à análise:

(13) Há falta de elementos coesivos, no primeiro parágrafo, que poderia ser resolvida com a inclusão da conjunção e e da preposição para. O trecho ficaria assim:

“...fazer um reflorestamento para recuperar o ecossistema local e a sua biodiversidade, para proteger o solo e garantir a estabilidade das encostas.”

(14) Aspecto positivo: Nota-se certo conhecimento e compreensão do assunto tratado: o que é dito sobre “recuperar o ecossistema local e a sua biodiversidade”, “proteger o solo e garantir a estabilidade das encostas” corresponde à realidade e atende ao tema proposto. A despeito da falta de domínio no emprego de conectores, o texto apresenta itens argumentativos relativamente consistentes.

(15) O conector conclusivo “Por isso”, no segundo parágrafo, parece estar-se referindo ao fato de a Floresta da Tijuca ter sido reflorestada, mas não há garantia dessa referência no texto.

(16) “Além disso”, no último parágrafo, também não faz conexão alguma, no texto. Não é possível identificar que proposições estão relacionadas por esse conector.

(17) O terceiro parágrafo é constituído de um único e longo período. Nessa parte, o L.Externo é obrigado a alternar os movimentos semasiológico e onomasiológico, num esforço de criar hipóteses e antecipações de sentido, para compensar a insuficiência comunicativa do texto.

(18) Aspecto positivo: Em “abrigam um grande número de espécies animais e vegetais preservando a biodiversidade do planeta” (último parágrafo), destacam-se aspectos realmente relevantes na defesa do reflorestamento, estabelecendo coesão com o primeiro parágrafo e coerência com a tarefa proposta.

(19) Também no último parágrafo, “como” não tem função definida na estrutura sintática: não é causal nem comparativo.Talvez tenha havido uma quebra na seqüência, talvez o E.At. tenha pretendido introduzir uma exemplificação dos benefícios da existência e da preservação das florestas, mas não concluiu a sua idéia.

(20) Ao referir-se às “florestas” e à “biodiversidade do planeta”, no mesmo parágrafo, a autora faz generalizações não autorizadas pela estrutura semântica que vem sendo construída, na qual o referente principal é uma floresta específica: a Floresta da Tijuca.

(21) A falta de vírgula em: “locais expostos com pouca ou nenhuma vegetação”, após “locais expostos”, deixa o sentido do trecho redundante (3º.parágrafo). Também é redundante a expressão “cobertura florestal através de árvores”, no mesmo parágrafo.

(22) O texto, apesar das “deformações”, tentou atender à proposta e cumprir o seu objetivo comunicativo: no último parágrafo, onde dever-se-ia desenvolver a conclusão, trechos como “as florestas têm muitos benefícios ambientais” e “abrigam um grande número de espécies animais e vegetais preservando a biodiversidade do planeta”, mesmo constituindo seqüências mal formadas, indicam que a autora compreendeu a proposta de “produzir um texto em defesa do reflorestamento, associando essa defesa à importância das florestas”. Entretanto, acaba por desviar-se do título – “O reflorestamento da Floresta da Tijuca” – de sua própria escolha, quando muda abruptamente o foco, para falar das florestas em geral.

Análise da proposta de retextualização:

De acordo com a proposta de retextualização, espera-se que o aluno de 7ª.série perceba os problemas do texto que dificultam a interação comunicativa e que o reescreva de forma adequada, procurando corrigir-lhe as falhas. Para isso, no lugar de co-produtor, o aluno deve privilegiar o papel do seu L.Int., utilizando os seus próprios modelos semânticos, lingüísticos e pragmáticos para amenizar as deficiências do texto de um escritor original não mais atuante, cuja competência não corresponde à sua – à desse novo produtor/ L.Int., mas que deve ser respeitado na sua intenção comunicativa. No papel de E.At., que também é, ele deve tentar resgatar a intenção do enunciador original, acionando o seu L.Int. para que duvide do sentido já produzido – e também do sentido em produção, com o fim de interferir cooperativamente na manifestação lingüística, de forma a torná-la coesiva e coerente, para que se faça cumprir, proficientemente, a função comunicativa do texto. Esta é, especialmente, uma atitude metacognitiva, dos “princípios que regulam a desautomatização consciente das estratégias metacognitivas”, segundo Kato (1995: passim 72).

O diferencial entre a cooperação do novo L.Int. e a atuação do L.Int. original na produção do texto é que as competências, na nova situação, são distintas, porque o novo L.Int. é diferente do E.At. original. Este L.Int. atual vai tentar cumprir o papel que o L.Int. original, coincidente com o E.At. original, não cumpriu. A postura do novo leitor-produtor será preferencialmente semasiológica, porque o ponto de partida deve ser o texto. Esse movimento ascendente fora desprezado na primeira produção, provavelmente por falta de competência lingüística do produtor.

A tarefa de ‘retextualização’ é, assim, uma oportunidade de revisitar e aplicar conhecimentos adquiridos ao longo da experiência lingüística (escolar ou não) do estudante, e que estão relacionados, como destaca Sautchuk, com os princípios apontados por Van Dijk (1996: passim 73): o princípio da fragmentação, o princípio da categorização, o princípio da combinação e o princípio da interpretação, e por Kato (1995: passim 73): o princípio da coerência. É uma forma de preparar o indivíduo para “ler como um escritor”, como sugere Cassany (1997: passim 119). É ainda um meio de reflexão sobre a língua e a sua produtividade semântica, um meio de aprender com a troca de experiências lingüísticas, além de atualizar outros conhecimentos e ampliar a leitura de mundo, e de praticar uma ‘gramática de texto’.

Tudo isso valida a proposta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª. ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda: Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1ª. ed. 14ª. impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s/d.].

PERINI, Mário A. Sofrendo a Gramática. 3ª. ed. 3ª. impr. São Paulo: Ática, 2000.

SAUTCHUK, Inez. A Produção Dialógica doTexto Escrito: um diálogo entre escritor e leitor interno. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

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