Uma abordagem dialetológica
do universo lingüístico de Antonio Nóbrega

Jorge Moutinho (UERJ)

 

Este texto apresenta parte de um dos capítulos da tese de doutorado em Língua Portuguesa desenvolvida pelo autor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob a orientação do professor doutor André Crim Valente, cujo tema é o universo poético-lingüístico-musical do compositor, cantor, ator e dançarino pernambucano Antonio Nóbrega. Para se levar adiante tal empreitada, elegeram-se como campos de estudo a estilística, a semântica e a dialetologia, reunidas sob um viés cultural que privilegia as características fortemente regionais (nordestinas, especificamente pernambucanas) refletidas na obra do artista. A proposta aqui é mostrar elementos teóricos dialetológicos relacionados à influência da gênese regional na obra de um artista popular brasileiro.

Antes de prosseguir, informe-se que o corpus analisado se representa pela reunião do repertório de cinco CDs de Antonio Nóbrega lançados no período de 1996 a 2001: Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói, Pernambuco falando para o mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo. Na elaboração das letras que interpreta, ele conta com a decisiva participação de três autores: Bráulio Tavares, Wilson Freire e Ariano Suassuna – sendo este uma espécie de mentor intelectual do artista desde o início da década de 1970, no Recife (PE), quando o convidou para integrar como violinista o Quinteto Armorial, conjunto musical que tinha por meta fazer música erudita brasileira com inspiração nas manifestações musicais populares, como preconizava o Movimento Armorial, idealizado por Ariano.

Ao longo da redação desta parte da tese, pensou-se em chamar Nóbrega de “artista popular nordestino”, o que seria uma forma simplista de “classificá-lo”, uma vez que o alcance de seu trabalho vai muito além de seu estado e sua região de origem, extrapolando as linhas isoglóssicas[1] em que foi gerado e ultrapassando mesmo as fronteiras do Brasil (em julho de 2005, por exemplo, o espetáculo Lunário perpétuo foi apresentado na França e na Rússia). Dessa forma, pretende-se mostrar que o regionalismo pode influir decisivamente na formação de um artista, mas de modo algum circunscrevê-lo à sua área de nascimento e formação. É o que se verá neste texto, com base na reunião de elementos teóricos provenientes de estudos dialetológicos. Ressalte-se que os comentários aqui apresentados são desenvolvidos com mais vagar na tese em questão.

A geografia lingüística, ao mesmo tempo que revela variados mecanismos de diferenças entre as línguas, por meio de dados fonéticos, morfológicos, vocabulares e semânticos, permite a interpretação de valores evocativos e afetivos no plano semântico-lexical (MARQUES, 2001). Muitas vezes os dialetologistas ou os geógrafos lingüistas partem em busca de palavras que possam designar objetos ou processos particulares em determinada área.

É na linguagem que se refletem a identificação e a diferenciação de cada comunidade e também a inserção do indivíduo em diferentes agrupamentos, estratos sociais, faixas etárias, gêneros, graus de escolaridade. A fala, assim, tem um caráter emblemático, que indica se o falante é brasileiro ou português (...) e, mais ainda, sendo brasileiro, se é nordestino, sulista ou carioca (LEITE & CALLOU, 2002: 7).

Na vasta extensão do território brasileiro, que tem na Língua Portuguesa a sua unidade lingüística nacional, deve-se destacar que há uma grande diversidade dialetal, constituída pelos vários falares brasileiros. Apesar de se notarem grandes variações no léxico e na pronúncia de uma região para outra do país, tal fato não prejudica a unidade mais ampla de compreensão e comunicação entre os falantes brasileiros.

A grande variação lingüística brasileira é explicada, no entender do filólogo Antônio Houaiss, pelo processo de colonização do país: “dialetação horizontal por influxo indígena e diferenciação vertical entre a fala do luso e a fala do nascido e criado na terra” (LEITE & CALLOU, 2002: 9). Da reunião dessa variedade de componentes vem a máxima de que o português do Brasil caracteriza-se, ao mesmo tempo, pela unidade na diversidade e pela diversidade na unidade.

Como disse Sílvio Elia, o que se verifica na linguagem das diferentes áreas em que se subdivide o português do Brasil é uma oposição entre o campo e a cidade, entre as áreas rurais e as urbanas, as quais se interinfluenciam continuamente. A seleção vocabular, a norma gramatical e o “polimento do bem-dizer” são dados pelas cidades, ao passo que os campos contribuem com o que o autor chama de força viva da linguagem, com as grandes tendências coletivas e com o material intenso, no entanto genuíno e despreocupado (ELIA, 1976).

Os estudos dialetológicos no Brasil vêm se ampliando cada vez mais.[2] De modo a filtrar, entre tantas informações constantes nas indicações dadas na nota anterior, aquelas consideradas mais adequadas para a realização do trabalho empreendido na tese em questão, tome-se como ponto de partida o fato de que numa língua histórica, como é o caso do português, há três tipos fundamentais de diferenças internas: as de espaço geográfico (diferenças diatópicas); aquelas entre os distintos estratos socioculturais de uma mesma comunidade idiomática (diferenças diastráticas); e aquelas entre os tipos de modalidade expressiva, de estilos distintos, de acordo com as circunstâncias em que se realizam os atos de fala (diferenças diafásicas). Acrescentem-se a esses tipos as diferenças de idades e de gerações (FERREIRA & CARDOSO, 1994).

Deve-se observar, no entanto, que dentro dessa variedade existe a unidade em função de relativa homogeneidade garantida pela soma dos traços lingüísticos comuns, o que nos leva à elaboração do seguinte quadro, com base em Ferreira & Cardoso (1994):


 

 

Diferenças diatópicas

Diferenças diastráticas

Diferenças diafásicas

Unidades sintópicas

(dialetos: dialeto

nordestino, dialeto

de Pernambuco etc.)

Unidades sinstráticas

(linguagem culta,

linguagem popular,

de classe média etc.)

Unidades sinfásicas (estilo de língua: linguagem formal, familiar, literária etc.)

Em cada uma dessas unidades pode haver diferenças, como indicado a seguir:

Unidade sintópica (dialeto de determinada região) ê diferenças diastráticas (socioculturais) ou diafásicas (de estilo).

Unidade diastrática (como a linguagem popular) ê diferenças diatópicas (regionais) e diafásicas (de estilo).

Unidade sinstrática (como a linguagem familiar, literária, formal etc.) ê diferenças diatópicas (regionais) e diastráticas (socioculturais).

Retomando a idéia de isoglossas (linhas virtuais que marcam limites de formas e expressões lingüísticas): elas não só podem delinear contrastes e semelhanças em espaços geográficos (isoglossas diatópicas) como também mostrar contrastes e semelhanças lingüísticas socioculturais (isoglossas diastráticas), podendo ainda configurar diferenças de estilos (isoglossas diafásicas) (FERREIRA & CARDOSO, 1994). Estas autoras também destacam que uma isoglossa pode ser lexical (isoléxica), fônica (isófona), morfológica (isomorfa) e sintática.

Veja-se agora o “caso” Antonio Nóbrega:

Unidade sintópica

Unidade sinstrática

Unidade sinfásica

Dialeto nordestino, especifica-mente o de Pernambuco.

Linguagem popular, sem descui-dar da linguagem culta.

Estilo informal, familiar,  simul-tâneo à utilização de um estilo li-terário, poético.

Tanto a entonação quanto a pronúncia, a escolha vocabular e a preferência por determinadas construções frasais, assim como os mecanismos morfológicos que lhes são peculiares, podem servir de índices que identifiquem:

a)     o país ou a região de que se origina [o falante];

b)     o grupo social de que faz parte (seu grau de instrução, sua faixa etária, seu nível socioeconômico, sua atividade profissional);

c)     a situação (formal ou informal) em que se encontra (BRANDÃO, 1991: 6).

Sem dúvida alguma, os aspectos históricos, sociais e culturais subjacentes à região de onde se origina cada falante são fundamentais para definir a sua forma de se exprimir lingüisticamente – e Antonio Nóbrega é um grande exemplo dessas premissas. Exemplifique-se com um trecho da letra de Nascimento do Passo:

No frevedouro
fiz um grande rebuliço,
preto, branco e mestiço,
eu chamei pro bafafá.
Azuretada,
a corriola destrambelha,
sacoleja, se destelha,
no maior calunguejar.

Mais um exemplo, agora de Pernambuco falando para o mundo:

Pitomba, preaca, pife e pandeiro
Esse é o encontro, é essa emoção

(...)

Ascenso, arrecifes, angolas arteiros
Maraca, mascates e maracatu.

Um leitor do Sul, do Sudeste ou do Centro-Oeste do Brasil poderá ter dificuldade para compreender imediatamente algumas das palavras usadas, por vezes fora de seu universo cultural, o que um leitor ou ouvinte do Nordeste ou do Norte do país fará com muito mais facilidade.

Os diversos termos regionais que formam o repertório lingüístico de Nóbrega – como os apresentados nos versos reproduzidos há pouco – caracterizam fortemente o seu universo artístico. Por meio do seu jeito de se comunicar com a platéia, esse brincante nordestino é uma das “mais completas traduções” – adaptando o verso que Caetano Veloso criou para a letra da canção Sampa – da sua linguagem regional. E é da mistura de regionalismos que se forma toda a nação brasileira – o que vale também para sua linguagem –, como bem assinala o próprio Nóbrega nestes passos da canção Mestiçagem (parceria dele com Wilson Freire, assim como as duas outras canções citadas há pouco), constante do repertório do CD O marco do meio-dia: “Me casei com uma mestiça, / eu mestiço por inteiro. / Tivemos muitos mestiços / cada vez mais verdadeiros, / cada vez mais misturados, / cada vez mais brasileiros.”

Ao se reunir elementos dialetológicos, como os abordados neste texto, a elementos estilísticos e semânticos, procura-se chegar, na tese anunciada no primeiro parágrafo, a um conjunto de aspectos teóricos de três importantes campos de estudo da Língua Portuguesa que possam caracterizar o universo poético-lingüístico-musical de Antonio Nóbrega, um artista nordestino que tem sua fonte de inspiração na cultura popular brasileira.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUILERA, Vanderci de Andrade (Org.). A geolingüística no Brasil: caminhos e perspectivas. Londrina: Eduel, 1998.

AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: O Livro, 1920.

BRANDÃO, Silvia Figueiredo. A geografia lingüística no Brasil. São Paulo: Ática, 1991.

CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática: referente à língua portuguesa. 22ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Topbooks, 2001.

DAUZAT, Albert. La géographie linguistique. Paris: Ernest Flammarion, 1922.

ELIA, Sílvio. Ensaios de filologia e lingüística. Rio de Janeiro: Grifo; MEC, 1976.

FERREIRA, Carlota & CARDOSO, Suzana. A dialetologia no Brasil. São Paulo: Contexto, 1994. (Coleção Repensando a Língua Portuguesa)

FERREIRA, Carlota et al. Diversidade do português do Brasil: estudos de dialectologia rural e outros. 2ª ed. rev. Salvador: Edufba, 1994.

LEITE, Yonne & CALLOU, Dinah. Como falam os brasileiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. (Coleção Descobrindo o Brasil)

MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à semântica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

RAZKY, Abdelhak (Org.). Estudos geossociolingüísticos no estado do Pará. Belém: Grafia, 2003.


 


 

[1] Segundo Joaquim Mattoso Câmara Júnior (2001: 160), dá-se o nome de linha isoglóssica “a uma linha convencional que se traça no mapa de um território lingüístico para aí assinalar os pontos onde vigora um dado traço lingüístico”.

[2] Como a intenção aqui é reunir elementos teóricos que sirvam para embasar o estudo dialetológico da obra de Antonio Nóbrega, para um estudo mais profundo sobre a geografia lingüística no Brasil recomendam-se, entre outros, os seguintes títulos recentes: Brandão (1991), Ferreira & Cardoso (1994), Ferreira et al. (1994), Aguilera (1998), Castro (2001), Razky (2003). Leite & Callou (2002) traçam um sintético porém consistente panorama sobre o jeito de falar dos brasileiros. Com relação aos primórdios dos estudos dialetológicos em âmbito internacional, cite-se La géographie linguistique (Dauzat, 1922), obra que tem como foco a elaboração de um atlas lingüístico para a França, abordando fenômenos internos e externos à linguagem. Acresça-se a esses títulos o clássico estudo O dialeto caipira, de Amadeu Amaral (1920).

 

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