UMA ANÁLISE SEMIOLINGÜÍSTICA DO DISCUSO POÉTICO

Francisco de Assis Moura Sobreira – (UERJ)

A Análise Semiolingüística do Discurso, segundo Patrick Charaudeau, consiste em estabelecer entre si certos questionamentos que abrangem os fenômenos da linguagem sob dois aspectos, independentes mas inter-relacionados: um externo e outro interno ao universo da linguagem: de um lado, a lógica das ações e influências sociais; de outro, a construção do sentido da linguagem e a construção dos textos. Assim, encontramo-nos numa encruzilhada de situações que, em conjunto, nos leva a uma dimensão psico-socio-linguageira do discurso, atrelada à construção do processo de semiotização do mundo.

Isto porque a linguagem é portadora de uma tridimensionalidade. Apresenta uma dimensão cognitiva, que pressupõe a percepção e a categorização do mundo; uma dimensão social e psico-social, que abrange o valor de troca dos signos e valores de influências dos fatos da linguagem, e uma dimensão semiótica, que, num sentido amplo, relaciona a construção dos sentidos com a construção das formas, ou seja, como se realiza a semantização das formas e como se faz a semiotização do sentido. Essas dimensões justificam o aspecto semiolingüístico desta análise do discurso:

A Semiotização do Mundo

A Análise Semiolingüística do Discurso postula que a semiotização do mundo obedece a dois processos que, embora se realizem segundo procedimentos distintos, tornam-se, pela interdependência no processo comunicativo, solidários na construção do sentido discursivo. O primeiro é o processo de transformação, que transforma um “mundo a significar” em “mundo significado”, sob a atitude de um sujeito falante. O segundo é o processo de transação, que torna este “mundo significado” um objeto de troca, na interação com outro sujeito, tomado como destinatário deste objeto.

Processo de Transformação

Segundo Charaudeau, o processo de transformação compreende quatro tipos de operação – a identificação, a qualificação, a ação e a causação. Na identificação, os seres do mundo são transformados em identidades nominais e estão sujeitos a nomeação e conceituação para que sirvam de objetos de referenciação. Na qualificação, os seres do mundo são transformados em identidades descritivas e se submetem à caracterização de propriedades e especificações para sua identificação. A ação transforma os seres do mundo em identidades narrativas que se inserem em esquemas conceitualizados que lhes conferem o atributo da ação que podem praticar ou sofrer. Na causação, a sucessão dos fatos do mundo é transformada em relações de causalidade – os seres agem ou sofrem a ação em razão de certos motivos que os inscrevem numa cadeia de causalidade.

Processo de transação

O processo de transação, de acordo com Charaudeau, ocorre segundo quatro princípios que estão inseridos em um postulado de intencionalidade: os princípios de alteridade, pertinência, influência e regulação:

Princípio de alteridade – qualquer ato de linguagem se realiza numa troca entre os parceiros de um processo comunicativo. Esses parceiros precisam se reconhecer como tais nas suas semelhanças e diferenças. As semelhanças se encontram nos saberes partilhados sobre o universos de referência e na motivação comum que constitui a finalidade do ato de linguagem; as diferenças dizem respeito aos papéis dos interlocutantes do processo comunicativo: papel de sujeito comunicante para o emissor da mensagem e de sujeito interpretante para o receptor da mensagem. O reconhecimento dos parceiros, que ocorre num processo recíproco de interação, confere a estes uma legitimidade. Assim, todo ato de comunicação implica um reconhecimento e uma legitimação recíproca dos parceiros. Este princípio constitui o fundamento do aspecto contratual do ato de comunicação.

Princípio da pertinência – neste princípio, realiza-se o reconhecimento do universo de referência, que se dá pelo compartilhamento dos saberes implicados no ato de linguagem – saberes sobre o mundo, sobre os valores psicológicos e sociais, sobre os comportamentos etc., que conferem aos parceiros credibilidade. Neste princípio, os atos de linguagem devem ser apropriados a seu contexto e à sua finalidade, contribuindo para o aspecto contratual do dispositivo sócio-linguageiro.

Princípio de influência – através deste princípio, busca-se atingir o interlocutante, afetando-o nas suas ações, emoções e pensamentos. Este princípio se relaciona diretamente com a finalidade intencional que se acha inscrita no dispositivo sócio-linguageiro.

Princípio de regulação – os parceiros procedem à regulação do jogo de influências. Assim como todo sujeito receptor de uma mensagem é alvo de influência do sujeito emissor, toda influência pode estar exposta a uma contra-influência. Esse jogo de influência e contra-influência pode causar confronto ou ruptura do processo comunicativo. Assim, para a regulação, os parceiros recorrem a estratégias no interior de um quadro de situações e este espaço de estratégia está inscrito no dispositivo sócio-linguageiro.

As operações do processo de transformação não se realizam autonomamente. Elas são efetuadas sob o controle do processo de transação, conforme as diretrizes deste, o que significa dizer que, na dialética entre os dois processos, há uma dependência do primeiro em relação ao segundo. Essa dependência marca uma mudança de orientação dos estudos sobre a linguagem, buscando-se apreender o sentido comunicativo nos valores semânticos que emanam da operação discursiva. Isto pressupõe, em outras palavras, que o valor proposicional se subordina aos valores inter-relacionais no intercâmbio do processo linguageiro.

É sempre possível construir um enunciado que mobilize as diferentes operações do processo de transformação. Um enunciado tipo tem marcas lingüísticas a serem interpretadas em um quadro situacional que o transforma em enunciado ocorrência, que emana na dinâmica da enunciação. A célebre frase de Aníbal Machado, “Não sabemos definir o que queremos, mas sabemos discernir o que não queremos.”, não teria, em outras circunstâncias, o mesmo sentido que adquiriu na época da Semana de Arte Moderna, quando a arte brasileira repudiava as formas cristalizadas da poética tradicional. Já se vê que não se pode considerar as operações de transformação isoladamente. Elas devem ser consideradas em um quadro situacional no qual se insere o processo de transação, o intercâmbio linguageiro. Este quadro situacional envolvendo um conjunto de componentes que atuam na construção do sentido discursivo serve de base para o estatuto do contrato de comunicação.

A Estrutura Linguageira

O duplo processo de semiotização do mundo corresponde a um postulado de intencionalidade no qual se fundamenta o ato de linguagem. Como se vê, esse ato de linguagem pressupõe uma intencionalidade – a dos sujeitos falantes, que são parceiros de uma troca. Por conta disso, tal ato de linguagem depende da identidade dos parceiros, visa a uma influência, é portador de uma proposição sobre o mundo e se realiza em uma situação de tempo e espaço determinados, os quais incluem um conjunto de fatores envolvidos pela conjuntura histórico-cultural. Assim, para que um ato de linguagem seja válido, é necessário que os parceiros se reconheçam e reconheçam em cada uma deles o direito à fala – o que depende de sua identidade – e que possuam um mínimo de saberes postos em jogo no ato da troca linguageira – princípio de interação e pertinência.

O princípio de pertinência transcende a instância da enunciação do ato de linguagem, pois inclui um conhecimento prévio sobre o mundo – valores sociais, culturais, psicológicos, comportamentais etc. Esse caráter abrangente recai numa cena enunciativa que comporta um duplo espaço e um duplo circuito de significância da verbalização do ato de linguagem – um espaço externo, que corresponde ao circuito do fazer, e um espaço interno, que corresponde ao circuito do dizer. Isto determina dois tipos de sujeitos da linguagem, os interlocutores e os intralocutores. Aqueles são seres com identidades sociais, portadores de uma intenção comunicativa, denominados sujeito comunicante e sujeito interpretante; estes são seres que portam apenas identidade discursiva, responsáveis pelo ato de enunciação, denominados sujeito enunciador e sujeito destinatário. É dessa cena enunciativa que emana o contrato de comunicação.

O Contrato de Comunicação

Contrato de comunicação é a condição para que os parceiros de um ato de linguagem se compreendam minimamente e possam interagir na construção do sentido, que é a meta essencial de qualquer ato de comunicação. Ele estabelece o que faz com que o ato de comunicação seja reconhecido como válido do ponto de vista do sentido. Sendo um dos conceitos básicos da análise semiolingüística do discurso, o contrato de comunicação define um conjunto de “regras” discursivas que o determinam o que é e o que não é “permitido” na produção e na análise de textos (orais ou escritos). Ele estabelece, portanto, os alcances da codificação e decodificação textual.

O contrato de comunicação tem como base o quadro situacional controlado pelo processo de transação. Ele está intimamente relacionado com o princípio de alteridade, que constitui o fundamento do aspecto contratual do ato de comunicação, pois implica o reconhecimento e uma legitimação recíproca entre os parceiros. O princípio da pertinência confirma o aspecto contratual na medida em que envolve o reconhecimento do universo de referência, ou seja, o compartilhamento dos saberes implicados do ato de linguagem.

Para o estabelecimento do contrato de comunicação, alguns elementos devem ser considerados. Dentre eles, pela contratividade, os tipos de texto (jornalístico, científico, literário etc.), os gêneros textuais (notícia, artigo, romance, poema etc.) e os modos de organização discursiva (narrativo, descritivo, argumentativo e enunciativo). Além disso, considera-se a credibilidade do sujeito comunicante, estabelecida pelo viés do saber fazer, atrelado aos objetivos da linguagem: informar – fazer saber, persuadir – fazer crer, incitar – fazer fazer e seduzir – fazer prazer. Esse objetivos, de certa forma, põem em prova a competência discursiva dos interlocutantes e, sob certos aspectos, em decorrência do objetivo da linguagem, lança mão dos aparatos da Estilística na construção discursiva do sentido.

Mas os contratos de comunicação podem variar, segundo sua natureza interlocutiva ou monolocutiva, presencial ou não-presencial. Isso estabelece a margem de risco do projeto de comunicação, porque os aspecto contratual, em conseqüência da ausência física do intelocutante, pode deixar vaga a captação, regulada pelos princípios de influência e de regulação, como acontece, por exemplo, em um texto literário escrito.

A Análise do Texto

Para procedermos à nossa análise textual, fazem-se necessárias duas advertências. A primeira é que não podemos conceber uma análise de discurso que não dê conta de todos os tipos de discursos, e aí incluímos o discurso poético, o que justifica a escolha do nosso objeto de análise. A segunda é que, pela abrangência do modelo de análise que escolhemos, tomaremos o termo discurso em dois sentidos: no primeiro, enquadramos o termo discurso no espaço do dizer, em que ele é tomada como atividade lingüística; no segundo, o termo discurso está relacionado a um conjunto de saberes partilhados, construídos, conscientemente ou não, pelos indivíduos de uma comunidade cultural, saberes que são ativados pela memória discursiva dos intelocutantes no processo da interação comunicativa. Assim, ficamos a meio caminho de duas esferas discursivas que interagem dialeticamente.

Postulamos o discurso literário como resultado de um ato discursivo capaz de suscitar um certo efeito – o de produzir uma estética verbal, a qual decorre diretamente do reconhecimento de uma instância receptiva, instância decisiva para a apreensão da literariedade, que se dá pelo domínio do universo discursivo dos textos poéticos. O fato é que, em um texto literário, a enunciação do discurso é reconhecidamente legitimada segundo uma prática cultural de natureza estética. Isso nos conduz a uma direção específica para a formulação da noção de contratualidade, visto que a comunidade cultural reconhece certos comportamentos discursivos que devem ser compreendidas como práticas literárias.

Um texto literário apresenta certas especificidades e, como tal, merece uma apreciação peculiar. Afinal, poema ou um romance não têm a mesma finalidade de um texto de comunicação. Mas nem por isso consideramos que escape às considerações de uma análise do discurso. Pelas suas peculiaridades, a linguagem literária se caracteriza como um fenômeno autônomo que se apóia, antes de mais nada, na noção de que a criação literária constitui uma atividade intencional e finalística. Assim, o que se verifica é uma verdadeira mudança de estatuto determinada por incidentes de ordem contratual que interferem no modo como o texto literário deve ser confrontado. Sobre esse conceito, ver Reis (2001: 19 e 111).

Isto nos conduz a alguns caminhos. Se, no dizer de Austin, todo falar é um fazer, entendemos que, no texto literário, este falar é um fazer poético, e nele o objetivo da linguagem é antes de tudo o da sedução, demarcado pelo viés do fazer prazer, o que nos desvia da tentação de uma análise biográfica. A partir daí, seguindo as propostas de nossa análise, tomamos aqui o texto enquanto texto, isto é, desconsideramos o sujeito empírico que o enunciou. Para tanto, seguimos as orientações de Granger e a trilha dos passos de Umberto Eco (Apud Possenti-1992-165), segundo o qual as categorias de autor e leitor são consideradas não tanto como pólos de enunciação, mas como papéis actanciais do enunciado. Nesse caso, o autor é textualmente manifestado apenas como um estilo reconhecível, visto como um idioleto textual, ou de corpus ou de época, e o leitor nada mais é do que uma instância receptora da produção artística. Ao sujeito-poético, fica reservado o papel de componente da criação artística.

Diante disso, ao confrontar o texto literário, é necessário que se estabeleça uma nova dimensão da cena enunciativa e conseqüentemente um modelo específico de contrato de comunicação. O autor funciona como o emissor do texto e da mensagem poética. Ele concebe a poesia e constrói a entidade que intratextualmente desempenha a função de locutor, sujeito poético (ou narrador). Ao primeiro – sujeito comunicante –, cabe o papel da informação estética; ao segundo – sujeito enunciador –, fica reservada a função da informação semântica. O leitor, por sua vez, desempenha a função de receptor da mensagem poética (sujeito interpretante) e, embora não se confunda com ele, relaciona-se com o destinatário intratextual (ou narratário), ao qual cabe o papel de receptor da informação semântica. Isso não significa dizer que nessa encenação não possa haver um processo de superposição, como ocorre em Manuel Bandeira ou em Al Berto, o que não anula o modelo proposto.

Eis o poema:

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

(Manuel Bandeira – A Cinza das Horas Teresópolis, 1912)

O texto pertence ao tipo de texto literário e se enquadra no gênero poesia. É a partir do reconhecimento desse gênero textual que se desenvolve toda a análise do texto, pois não se pode dizer nada sobre o objeto discursivo sem que se tenha uma teoria do gênero a que ele esteja ligado. A partir da definição do gênero, percebe-se uma vivência lírica, visto que o sujeito-poético mergulha em suas próprias emoções e confessa as razões do caráter emocional da poesia, fato que se torna o núcleo nevrálgico da mensagem poética do texto.

Quanto aos modos de organização discursiva, o texto apresenta um caráter híbrido, já que se organiza discursivamente de forma variável. Pelo seu caráter metadiscursivo (o texto é um metapoema), é gerido pelo modo enunciativo, como se verifica nos primeiros versos de cada estrofe – “Eu faço versos como quem chora / Meu verso é sangue. Volúpia ardente... / E nestes versos de angústia rouca” e no último verso do poema – “– Eu faço versos como quem morre”. Sob esta gestão ele oscila, de acordo com os movimentos que estruturam o poema, entre o modo argumentativo da primeira estrofe, o modo descritivo da segunda, para retomar o modo argumentativo na terceira estrofe. Mas, tanto em um quanto em outro modo de organização discursiva, o poema apresenta um lirismo fortemente pessoal, Nele, o sujeito comunicante, em superposição com o sujeito enunciador, expõe as razões de sua poesia ter um caráter tão subjetivo e, por isso mesmo, argumenta que seu livro não deve ser lido por quem não tem “motivo nenhum de pranto”.

O sujeito comunicante (o poeta) dirige-se ao sujeito interpretante (o leitor). Como o contrato de comunicação é monolocutivo e não-presencial, estamos diante da pressuposição do reconhecimento dos parceiros interlocutantes; mas, a despeito do risco, o contrato de comunicação é instaurado. Cria-se, então uma cena enunciativa, em que o sujeito enunciador, tornado Eu-lírico pelo processo de superposição, é a imagem que o sujeito comunicante projeta de si mesmo. Este, por sua vez, dirige-se a um sujeito destinatário, que é o leitor idealizado pelo sujeito comunicante, leitor este que deve ter um conhecimento prévio sobre poesia, o que implica o domínio do universo discursivo dos textos poéticos e, mais ainda, que tenha sensibilidade para a absorção de uma mensagem lírica.

O sujeito comunicante tem consciência de sua condição de poeta diante do sujeito interpretante e, a partir da legitimidade e da credibilidade pressupostamente conquistados, ele desenvolve suas estratégias linguageiras. Buscando um leitor que seja capaz de entrar em sintonia com o lirismo de sua poesia, ele rejeita o leitor que não está capacitado a absorver este lirismo, e o faz através de um ato de linguagem ilocutório configurado no imperativo que aparece nos versos “Fecha meu livro, se por agora / Não tens motivo nenhum de pranto”, versos estes que fortificam o teor lírico da sua composição poética.

O sujeito comunicante estabelece no texto um postulado de intencionalidade e, através de um objetivo comunicativo que se enquadra no viés sedutor do fazer prazer, reconhece-se de imediato o caráter poético do texto. É este reconhecimento que direciona particularmente nossa percepção diante do texto. Diante da poesia, é preciso discutir outro critério de normalidade discursiva, e esta discussão permite entrever a perspectiva de um outro lugar de pertinência e, assim, de uma outra significação do mundo. Para que essa nova significação possa se impor, é necessário que se reconheça que o sujeito comunicante é legitimado por um estatuto de poder que o torna crível pelo saber fazer, característica que o qualifica pelas etiquetas do gênero a que o texto está ligado.

Mas esse novo critério de normalidade discursiva se dá por certos desvios lingüísticos que envolvem problemas da sintaxe e da semântica na construção do sentido poético do texto. Esses desvios consistem, como afirma Jean Cohen (1984), em atribuir a certas palavras uma função gramatical que, pela aplicação lógico-intelectiva da linguagem, ela não é capaz de exercer. Esses desvios configuram a estrutura da linguagem poética e enquadram o texto no gênero a que ele pertence. É bom lembrar que tais desvios conferem ao sujeito comunicante a credibilidade que faz com que o reconheçamos como poeta.

Analisemos a estrofe abaixo:

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

Os predicativos sangue, volúpia ardente, tristeza esparsa, remorso vão e amargo e quente são logicamente incompatíveis com seu sujeito – meu verso. Por outro lado, esse mesmo sujeito é incompatível com os predicados dói-me nas veias e cai gota a gota do coração. Essas incompatibilidades instauram o desvio lingüístico que se configura na impertinência semântica. Para desfazer tais impertinências, seria preciso substituir as palavras por outras que logicamente se compatibilizariam com o sentido lógico do sistema lingüístico; mas essa substituição faria sucumbir o sentido poético do texto, e aí se instaura um dilema: salva-se o sistema, mata-se a poesia.

Mas o texto é poético e temos que aceitá-lo como tal, aceitá-lo como um gênero cujo contrato de comunicação exige dos sujeitos interlocutantes uma visão de mundo construída na esfera de uma sensibilidade lingüística diferente da habitual. É nesse ponto que precisamos considerar a metáfora como estratégia discursiva na esfera da linguagem. A necessidade de se considerar a metáfora se impõe como um recurso que promove a redução do desvio. Assim, ela atribui aos termos lingüísticos um novo matiz semântico que constrói o sentido poético do texto.

Com esse expediente, passa-se de uma ordem lingüística para outra, cujos valores são construídos numa esfera psíquica que nega a ordenação lógica da linguagem. O que se quer dizer é que uma nova ordem lingüística se impôs à custa da destruição de outra, sobre cujas ruínas se construiu um novo sentido. Este novo sentido foi estabelecido por um projeto de comunicação especial, cujo contrato de comunicação exige dos interlocutantes uma vivência literária que os capacita para a apreensão dos valores imanentes ao gênero poético.

Para o sujeito comunicante/enunciador, o verso é sangue, é volúpia, é tristeza e é remorso. Assim ele ganha um dimensão que se situa entre o concreto (sangue que dói nas veias e que cai gota a gota do coração) e o abstrato (volúpia ardente, tristeza esparsa e remorso vão); mas, seja como for, é amargo e quente e, portanto, visceral. Na voz lamentosa e suplicante do sujeito enunciador, a poesia é profunda, marcante e dolorosa, como nos versos “Eu faço versos como quem chora / De desalento... de desencanto...”, em que se explora a nasalidade de um pranto incontido (/en/, /en/, /an/), prolongado pelas reticências e marcado pelas repetições fonéticas das aliterações e dos parequemas (de desalento ... de desencanto). O verso é também um jaculatório de dores existenciais que jorram da cadência espasmódica, demarcada pela acentuação da 4ª e 9ª sílaba poética dos versos eneassílabos:

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

Os versos brotam no estertor de uma angústia rouca e se tornam vida, mas uma vida acre, cuja acidez é melancolicamente anunciada já no título do poema – Desencanto.

Na análise semiolingüística do discurso, em decorrência do processo de semiotização do mundo, em que se combinam forma e sentido, tudo é levado em consideração: a linguagem, a disposição das palavras, a diagramação etc. Isso faz com que consideremos a disposição do último verso do texto. Isolado, esse verso ganha destaque e funciona como o corolário do poema. Nele, a poesia se torna angústia, e todos os versos se transformam no remanso de uma lenta agonia, agonia de quem morre no estertor de cada passo no percurso anguloso da existência humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CEZARIO, Maria Maura. Produção e Interpretação de Texto: uma proposta didática da teoria de Charaudeau. In: Revista Idioma, 19. UERJ, 1997

CHARAUDEAU, Patrick. Para uma Nova Análise do Discurso. In: CARNEIRO, Agostinho Dias (Org.). In O Discurso da Mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.

––––––. Uma Análise Semiolingüística do Texto e do Discurso. In: Pauliukonis, Maria Aparecida Lino & Gavazzi, Sigrid (Org.). Da língua ao discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

CHARAUDEAU, Patrick. & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Cultrix, 2004.

COEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. São Paulo: Cultrix, 1984.

OLIVEIRA, Ieda de. O contrato de comunicação da literatura infantil e juvenil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. introdução aos estudos literários. Coimbra: Almedina, 2001.

 

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