ORALIDADE E ESCRITA
NOS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA

Leonor Werneck dos Santos (UFRJ)

A fala é uma atividade muito mais central do que a escrita no dia a dia da maioria das pessoas. Contudo, as instituições escolares dão à fala atenção quase inversa à sua centralidade na relação com a escrita. Crucial neste caso é que não se trata de uma contradição, mas de uma postura. [grifo do autor] (Marcuschi, 1997:39)

Introdução

A postura à qual Marcuschi se refere, com relação à diferença de abordagem de textos orais e escritos em sala de aula, vem sendo questionada ultimamente, principalmente devido à inclusão do tema nos PCN de língua portuguesa. Muito se discute sobre o assunto, mas o professor continua sem saber o que fazer (e como) para trabalhar oralidade nas aulas.

Dizer que o problema ocorre porque os professores são mal preparados é cair num lugar-comum que não leva à discussão e não aponta soluções práticas, eficientes e imediatas. Da mesma forma, criticar os livros didáticos, que não costumam apresentar propostas de atividades nesse sentido, e as faculdades de Letras, que não abordam o tema com os futuros professores, parece não conduzir a um caminho.

Este artigo vem discutir o que se considera “trabalhar oralidade e escrita” em sala de aula, o que apresentam os PCN e como algumas atividades podem levar o professor a mostrar aos seus alunos - e com eles interpretar e produzir - as diversas possibilidades de expressão na sua língua. Longe de pretender apontar soluções, a intenção deste artigo (e do minicurso ao qual ele se refere) é alimentar o debate sobre um tema que precisa ser tratado com atenção.

Oralidade e escrita:
noções básicas e algumas confusões

Antes de tentar diferenciar fala e escrita e acabar chegando à falsa imagem de que se está diante de uma dicotomia, é necessário que se apresente o que lingüistas como Marcuschi, Fávero et al., Koch, entre outros, há muito vêm alertando: oralidade e escrita configuram um continuum tipológico, caracterizado, de um lado, pelas peculiaridades de cada uma dessas modalidades e, de outro, pelas semelhanças percebidas em diversos gêneros - o que faz com que às vezes se torne bastante difícil definir o limite entre elas. Assim, por exemplo, um bilhete, apesar da forma escrita, guarda muitas semelhanças com uma conversa informal, e uma conferência, embora oral, se parece com um texto formal escrito.

A dificuldades de limitar a modalidade de um texto só não é maior que o desconhecimento de grande parte dos professores do que vem a ser o trabalho com textos, principalmente os orais, em sala de aula. É comum os professores acharem que debater ou dramatizar já são atividades suficientes de oralidade, e muitos se questionam até mesmo se isso é útil, uma vez que os alunos falam - e bastante - no dia a dia. Essa simplificação do trabalho com a oralidade decorre, em grande parte, do despreparo de alguns professores, formados em faculdades que não abordam o tema e por vezes sequer debatem conceitos preliminares a qualquer discussão sobre língua, como variação lingüística, norma culta etc.

Se, porém, o problema é de formação, também não deixa de ser de informação. Afinal, somente a partir da segunda metade da década de 90 temos visto livros explicitamente abordando o ensino de língua falada - e nem sempre o professor tem como se atualizar. Com relação aos PCN, que poderiam servir, grosso modo, para levar algumas informações aos professores, no que se refere à oralidade há uma certa confusão. É o que se constata nos excertos abaixo:

...cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no planejamento e realização de apresentações públicas: realização de entrevistas, debates, seminários, apresentações teatrais etc. Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato, pois é descabido treinar um nível mais formal da fala, tomado como mais apropriado para todas as situações. (p. 25)

Percebe-se, nesse trecho, que se espera da escola a preparação do aluno para falar em público, em situações que não são de fato espontaneamente orais, mas previamente planejadas para serem enunciadas oralmente. Situações como entrevistas, seminários e debates costumam ocorrer com mais freqüência no próprio ambiente escolar; parece, então, que a importância do trabalho com a oralidade é preparar o aluno para as atividades escolares em que ele precisará falar - um caso de “oralização da escrita”, segundo Marcuschi (2002: 26). Quanto às apresentações teatrais, Preti (2004) e Marcuschi (2002) alertam que não se pode considerá-las como exemplo de texto oral, mas como uma espécie de simulação da fala.

O problema continua na parte dos PCN destinada aos objetivos do ensino:

No processo de escuta de textos orais, espera-se que o aluno:

- amplie, progressivamente, o conjunto de conhecimentos discursivos, semânticos e gramaticais envolvidos na construção dos sentidos do texto;

- reconheça a contribuição complementar de elementos não-verbais (gestos, expressões faciais, postura corporal);

- utilize a linguagem escrita, quando for necessário, como apoio para registro, documentação e análise;

- amplie a capacidade de reconhecer as intenções do enunciador, sendo capaz de aderir a ou recusar as posições ideológicas sustentadas em seu discurso. (p. 49)

Aqui se observa como aspectos necessários à compreensão de qualquer tipo de texto são destacados como objetivos da “escuta” de textos orais na escola (cf. itens 1 e 4). O item 2 de fato é exclusivo da oralidade, e o 3 não parece ser um objetivo, mas uma sugestão de organização.

Quando os PCN sugerem o que esperar a partir da produção de textos orais - como se vê a seguir -, surgem itens (2 e 3) referentes à variação lingüística, tema não abordado no tópico referente à “escuta” dos textos orais. Assim, não se faz a relação necessária entre leitura e produção.

No processo de produção de textos orais, espera-se que o aluno:

- planeje a fala pública usando a linguagem escrita em função das exigências da situação e dos objetivos estabelecidos;

- considere os papéis assumidos pelos participantes, ajustando o texto à variedade lingüística adequada;

- saiba utilizar e valorizar o repertório lingüístico de sua comunidade na produção de textos;

- monitore seu desempenho oral, levando em conta a intenção comunicativa e a reação dos interlocutores e reformulando o planejamento prévio, quando necessário;

- considere possíveis efeitos de sentido produzidos pela utilização de elementos não-verbais. (p. 51)

Em nenhum momento os PCN sugerem a análise da conversação espontânea, seus aspectos lingüísticos e discursivos, ou a observação da diferença de abordagem dos temas, de acordo com a modalidade oral ou escrita - atividades que, segundo Marcuschi (1997), são importantes para mostrar como se estruturam os textos orais. Assim, o que poderia ser um material de suporte para o professor acaba reforçando a confusão sobre o trabalho com a oralidade e não colabora para desfazer as dúvidas que os profissionais da área carregam desde sua formação.

Ensino de língua portuguesa:
oralidade e escrita em prática

Desde a publicação dos PCN, no final da década de 90, vêm sendo publicados diversos livros debatendo o ensino da modalidade oral. A maioria sugere atividades que não são complexas - de análise e produção de conversação espontânea, textos teatrais, diálogos em narrativas, entrevistas de TV ou rádio - visando à observação e interpretação, para que o aluno seja um leitor no sentido pleno e produza textos eficientes.

Segundo Fávero et al. (2000), a partir de textos orais produzidos e gravados pelos próprios alunos, é possível propor atividades de identificação de tópicos e subtópicos, relacionando-os posteriormente à elaboração de textos escritos para observar como se estruturam os parágrafos. Outra sugestão das autoras é identificar marcas de oralidade em textos jornalísticos, percebendo os efeitos de sentido, e em crônicas, para caracterizar a construção dos personagens. Comparar textos orais e escritos produzidos por uma mesma pessoa e dois textos orais produzidos por pessoas diferentes, em situações distintas de comunicação, também são sugestões das autoras para um efetivo trabalho com a compreensão e produção textual.

Já Castilho (1998: 24) propõe a combinação de textos (como conversação simétrica / textos teatrais; conversação assimétrica / cartas, crônicas, noticiários de jornais e revistas; aulas e conferências / narrativas e descrições contidas em romances e contos) para que se faça o “emparelhamento da língua falada e da língua escrita”. Assim, pode-se perceber como se constroem esses textos e o que caracteriza a modalidade em cada um deles (cf. Urbano, 1999).

Marcuschi (2001), por outro lado, relatando experiências feitas com alunos de Letras, sugere atividades de retextualização nas quais, a partir de um texto oral, passa-se a outros, num processo contínuo de reescrita, tentando sempre manter as informações básicas, mas modificando o original passo a passo. O autor destaca, entretanto, que às vezes as transformações acabam por alterar também as informações iniciais, o que pode ser discutido com a turma.

Atividades como as descritas acima não exigem muito material áudio-visual, mas acabam por ir além de mostrar como se estruturam os textos orais e escritos. Propiciam, na verdade, o que se espera de todas as aulas: uma participação ativa do aluno, na construção do seu próprio conhecimento, por meio de textos, ou seja, leitura e produção. E, com um pouco mais de aprofundamento, o professor pode mostrar aspectos lingüísticos envolvidos, fazendo aquilo que os PCN propõem e muitos professores não sabem o que significa: análise lingüística.

Conclusão

O que se constata ao comparar os PCN e as pesquisas relativamente recentes publicadas sobre ensino de português incluindo a análise da língua falada é que nem sempre fica claro, para o professor de nível fundamental e médio, o que deve ser priorizado em sala de aula e que tipo de material deve ser trabalhado. É fato que comparar diversos gêneros, das modalidades oral e escrita, configura uma abordagem importante, mas ainda é necessário que se proponha uma espécie de conteúdo programático mínimo, para que não ocorram simplesmente comentários gerais e superficiais, ou preconceituosos, a respeito dos textos.

Por exemplo, pode-se trabalhar com textos teatrais, mas não como se eles fossem um exemplo de fala espontânea; é possível cotejar textos orais e escritos produzidos pela mesma pessoa, mas não apenas para destacar exemplos de gírias ou algo semelhante; também é interessante verificar como se estrutura um trecho de conversação espontânea, mas não para identificar desvios da norma culta. É ilusão pensar que com essas atividades se está trabalhando a oralidade.

O ensino de língua portuguesa deve valorizar todas as possibilidades de produção textual, enfatizando os efeitos de sentido e as estruturas lingüísticas usadas. No caso da oralidade, sem desprestigiar os textos elaborados. As aulas de português, se firmadas no tripé língua/leitura/produção, considerando oralidade e escrita e sem priorizar apenas os conceitos - tão questionáveis - de certo/errado, têm muito a ganhar.

Referências bibliográficas

CASTILHO, Ataliba de. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 1998.

FÁVERO, Leonor L. et al. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna. São Paulo: Cortez, 2000.

KOCH, Ingedore. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1998.

MARCUSCHI, Concepção de língua falada nos manuais de português de 1º. e 2º. Graus: uma visão crítica. Trabalhos em Lingüística Aplicada, 30: 39-79, 1997.

------. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

------. Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco “falada”. In: DIONÍSIO, Ângela & BEZERRA, Ma. Auxiliadora. O livro didático de português: múltiplos olhares. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 21-34.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS - TERCEIRO E QUARTO CICLOS DO ENSINO FUNDAMENTAL: LÍNGUA PORTUGUESA. Brasília, Secretaria de educação Fundamental / MEC, 1998.

PRETI, Dino. Estudos de língua oral e escrita. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

URBANO, Hudinilson. Variedades de planejamento no texto falado e no escrito. In: PRETI, Dino (org.). Estudos de língua falada: variações e confrontos. São Paulo: Humanitas, 1999, p. 131-152.