AULAS DE REDAÇÃO
PARA A COMPETÊNCIA VERBAL ESCRITA

Darcilia Simões (UERJ)

Por que aulas de redação?

Há muito que venho buscando refletir sobre problemas relativos à redação e aos redatores, assim como tentando encontrar ou compor estratégias didático-pedagógicas que pudessem minimizar as dificuldades alegadas pelos usuários no que tange a dizer por escrito o que pensam.

Ainda que o advento da era cibernética tenha trazido significativas modificações na vida humana, a necessidade de expressar-se por escrito não deixou de impor-se. Ao contrário, cada dia se torna mais ingente a fluência verbal escrita. Mesmo aqueles que pensam que a Internet teria vindo para dispensar a prática da escrita, já começam a conscientizar-se de que até a rede internacional de computadores exige cada vez mais práticas verbais escritas.

Ao lado dessa questão, verifica-se a discussão acerca do domínio da língua portuguesa em seu uso padrão. É claro que os usos verificáveis nos chats, blogs e mesmo em algumas páginas virtuais documenta usos não-padrão da língua; até mesmo usos inusitados de escrita, não-condizentes com nenhuma das modalidades catalogadas entre as variantes lingüísticas. Contudo, as práticas informais da língua não são parâmetro para uma reflexão que se volta para os usos formais da língua, responsáveis pela produção de documentos de toda sorte e cuja responsabilidade didático-pedagógica para a formação de usuários eficientes está centrada nas atividades escolares ou para-escolares (práticas educativas paralelas, complementares ou suplementares ao processo de escolarização: cursinhos, oficinas, seminários etc.)

Numa primeira olhada, o que se pode perceber é que há um grande equívoco em relação ao domínio efetivo e eficiente da língua materna (em nosso caso o português como L1), assim como em relação à educação lingüística dos sujeitos. Tem havido, ao longo dos tempos um vai-e-vem tresloucado nas aulas de linguagem, e os usuários ditos escolarizados apresentam-se a cada dia menos preparados para enfrentar o desafio da expressão escrita eficiente. Logo, é urgente dar uma guinada no processo de ensino da língua materna em geral e da redação (ou expressão escrita) em especial, para que os sujeitos se tornem efetivamente competentes para a realização de tarefas que dependam da comunicação escrita em língua portuguesa. E isto não é possível senão por meio de produtivas aulas de redação.

Vejam o que diz Maria A. Medeiros em A chave para um bom texto: revisão.

Um texto claro, compreensível, agradável, coerente, enfim, bem escrito é o que todo professor deseja que seus alunos sejam capazes de produzir. No entanto, uma das maiores frustrações para quem leciona Língua Portuguesa é justamente perceber que erros se repetem, apesar do empenho ao corrigir as redações. A causa dessa dificuldade pode estar na forma como é encaminhada a correção. Procedimentos básicos adotados nesse momento podem solucionar o problema. (In: http://novaescola.abril.com.br/index.htm?ed/167_nov03/html/revisao).

O que seria uma aula produtiva de redação?

Em 1994, tive oportunidade de experimentar uma situação a partir da qual pude constatar o efeito sugestivo (positivo ou negativo) das palavras, sobretudo durante a situação de aula. Tomada de surpresa, por uma solicitação urgente para substituir uma colega docente em um minicurso sobre metodologia do ensino da redação, tive de organizar-me num espaço de mais ou menos 20 minutos para ocupar tal lugar.

É importante declarar que a chamada para substituição não foi leviana, mas decorrente do conhecimento de minhas pesquisas sobre o tema. Assim, o desafio de emergência resultou muito produtivo para os cursistas e, sobretudo, para a evolução de minhas conclusões na época (1991).

No curso, diante de uma platéia de aproximadamente 25 docentes, iniciei o trabalho relatando o episódio da convocação de emergência e dos fatos que precederam minha chegada ao curso. Disse-lhes que, enquanto pensava estratégias para assumir o lugar-docente, assistia a um programa de TV que ensinava receitas culinárias. Perguntei então aos cursistas se gostavam de cozinhar e se queriam conhecer a receita que acabara de aprender pela TV. Animados com a proposta, ditei a lista de ingredientes e pedi-lhes que ouvissem atentamente o relato do modo de fazer. Em seguida, após comentários de que iriam esquecer a receita, permiti que anotassem o modo de fazer. Após isto, solicitei que alguém lesse o que escreveu para que conferíssemos se a receita estava correta. Imediatamente alguém interferiu dizendo que, se a mistura fosse feita daquela maneira, a receita não ia dar certo. Então decidiu ler o seu registro. E isto foi sendo repetido sucessivamente com intervenções de uns sobre o texto dos outros. Até que sugeri que fizéssemos um registro cooperativo: cada um que tivesse certeza de sua escrita iria escrevendo no quadro de giz sua frase, fazendo o texto progredir de modo que a receita se tornasse a mais clara possível.

Durante a atividade de escritura da receita no quadro-de-giz, foram discutidos problemas de seleção vocabular, colocação dos termos da oração, concordância, regência, usos de pronomes, de adjetivos (ou locuções adjetivas), de advérbios (ou expressões adverbiais), de iniciais maiúsculas e minúsculas, de pontuação etc.

Aos quase 90% da realização da tarefa, a conversa já teria atravessado mais de uma hora, quando alguém indignado indagara: - Afinal, viemos aqui para um curso de metodologia do ensino da redação ou de culinária? - Ao que outrem respondeu com outra pergunta matreira: - Você não percebeu que a apresentação desta receita foi uma astúcia da professora que nos levou a redigir sem que tivéssemos tempo sequer de lamentar sobre nossas dificuldades relativas à expressão escrita.

A turma riu muito da observação do colega cursista e outros comentários foram deflagrados acerca do expediente utilizado para levá-los à escritura sem que sequer o percebessem, uma vez que o texto proposto era uma necessidade corriqueira que não implicava o domínio do uso padrão da língua. Concluiu-se que uma redação estava sendo feita sem que tivesse havido um comando explícito como “redija o modo de fazer”. Percebeu-se que a prática da escritura se desenvolvia de modo espontâneo e que as correções de texto também iam sendo propostas de modo a clarificar os enunciados e garantir o entendimento. Desta forma, os cursistas chegaram à conclusão de que muito da improdutividade decorrente da realização de tarefas redacionais tinham origem nos comandos: Redija um texto... Faça uma redação sobre... etc. Logo, concluiu-se que determinadas palavras ganham em seu uso um poder meio mítico de animar ou desanimar os sujeitos à ação. Isto ocorre com a palavra redação, por exemplo. O fato de ter sido possível produzir o texto da receita culinária usada como estímulo para a aula de redação foi o documento de que o ato de redigir é algo que faz parte da vida cotidiana, mas que quase sempre é transformado em bicho-de-sete-cabeças quando tomado como tema para discussão.

Ao mesmo tempo foi possível tecer considerações acerca de usos escritos cotidianos (bilhetes, cartas, listas, lembretes etc.) que são realizados sem que os sujeitos se dêem conta da ação que estão praticando e, por isso, a realizam sem traumas ou embotamentos.

Terminado o registro da receita culinária, entrou-se a discutir o tema fundamental do encontro: por que ensinar-aprender redação é tão complicado? Por que a maioria das pessoas se sente ameaçada quando é instada a exprimir-se por escrito em situações formais? Como a educação sistemática pode intervir na solução deste problema?

Idéias erradas
sobre competência verbal escrita

Na seção anterior, verificou-se que a prática da expressão escrita não é algo extraordinário. No entanto, é corrente a declaração da inabilidade dos usuários sobre o redigir. Pude constatar, em pesquisas que venho realizando há mais de trinta anos (desde 1972), que os usuários da língua sofrem quase sempre uma intervenção escolar defeituosa. São aqueles convencidos de que não sabem a língua que falam. O que é uma sandice!

Em conseqüência disto, atividades relacionadas ao desenvolvimento de competências na expressão escrita tornam-se enfadonhas e improdutivas, sobretudo em decorrência da artificialidade das propostas de trabalho apresentadas: redija sobre “um dia na fazenda”, “um passeio na praia”, “minhas férias” etc. Temas que quase sempre não têm relação com a realidade do usuário, portanto não são estimulantes.

Com o advento das pesquisas em Lingüística Textual, Análise de Discurso, Gêneros e Tipos Textuais etc, as práticas escolares começaram a sofrer modificações. Contudo, há muito por fazer, considerando-se os resultados apuráveis nos exames de referência como Vestibulares, Exame Nacional de Cursos (Provão), ENEM etc.

A maioria dos concursos tem provocado discussões acerca da legibilidade das questões propostas, o que significa que os problemas de competência redacional não são exclusividade dos candidatos, cursistas, alunos, aprendizes em geral. Verifica-se então que a eficiência redacional demanda competências prévias, dentre as quais sobressaem-se o domínio da língua e suas variedades. Isto porque a expressão escrita não se resume às práticas cartoriais (elaboração de documentos stricto sensu), mas povoam o cotidiano dos sujeitos desde o bilhete na geladeira até a carta de amor ou o convite de casamento.

A comunicação escrita é uma necessidade do mundo atual e até a Internet pode se tornar uma forte aliada da escola ou das práticas de textualização, uma vez que oferece ao usuário um leque de oportunidades textuais de caráter plural, a partir do que os sujeitos podem desenvolver sua capacidade verbal escrita com vistas à eficiência comunicativa.

Dificuldades lingüísticas
refletidas na inabilidade expressional

As práticas escolares equivocadas se refletem na inabilidade quanto ao uso da língua. A competência para selecionar a variedade lingüística mais apropriada para a produção de um texto em conformidade com sua temática e destinação deveria ser objeto de imediata atenção durante as aulas de linguagem. No entanto, a ainda presente neurose da “decoreba” das normas gramaticais apartadas de suas relações com a eficiência comunicacional alimenta um modelo improdutivo de ensino.

Considerada a riqueza da língua portuguesa do Brasil e a infinidade de situações de comunicação por que passam os usuários, a escola deixa escapar um sem-número de oportunidades de desenvolvimento da competência verbal escrita e reitera a imagem de uma escola quase inútil, quando comparada com os resultados de concursos de seleção de pessoal habilitado para esta ou aquela função.

Do bilhete de geladeira à procuração jurídica, a prática da escrita pode tornar-se uma atividade costumeira envolta na mais plena eficiência comunicativa, desde que o usuário seja instruído sobre a variedade dessas produções e dos ingredientes por elas demandados.

Se a escola começasse a prática redacional desde as primeiras séries escolares, por meio da produção de pequenos textos em que os alunos mandassem recados, dessem explicações sobre impedimentos, pedissem permissão, mandassem notícias etc. o desenvolvimento da habilidade redacional seria construído paulatinamente, e os sujeitos não “sofreriam” o ato de redigir como uma prática negativa, um castigo ou um desafio impossível.

Muito das dificuldades alegadas reside na noção errada de domínio lingüístico. Todo falante domina sua variedade lingüística antes mesmo de entrar na escola. Esta tem o compromisso de iniciar ou orientar o usuário na variedade padrão, condicionada pelas normas gramaticais e que dá acesso a um universo de informações registradas em textos (livros, enciclopédias, registros cartoriais, legislação etc.). Porém, o não-domínio desta variedade não significa incompetência comunicacional ou verbal. Há outras variedades além da padrão que comunicam idéias eficientemente entre os interlocutores que dominam tais variedades. Por isso, um dos pecados do ensino escolar é ter o uso padrão como ponto de partida e de chegada. O ponto de partida tem de ser o mais próximo possível da variante usada pelo aprendiz. Isto porque a aprendizagem da organização textual não seria agravada pela da modalidade padrão e suas regras. Com isto, o sucesso das tarefas se tornaria mais garantido, e o aprendiz iria perdendo o medo da prática redacional, ao mesmo tempo que iria familiarizando-se com usos lingüísticos diversos dos que já conhece.

Exemplo 1:

O autor desta placa tem a garantia de que sua mensagem será compreendida. Contudo a mesma apresenta problemas ortográficos que indicam um uso lingüístico não-padrão. Observada a destinação do texto (publicidade), percebe-se a necessidade de maior cuidado em sua redação, o que implica a instrução lingüística o usuário-autor. Este texto pode lembrar as primeiras produções escritas dos aprendizes, ao lado de outras que são até quase ininteligíveis.

Exemplo 2:

Neste texto, os erros ortográficos tornam-se irrelevantes diante da dificuldade de compreensão provocada pela escolhas das palavras e pela ordem destas. Observe-se que há incoerência no enunciado: esta obra não se responsabiliza. A ação de responsabilizar-se demanda [agente+ humano+ eficiente], semas que não integram o lexema obra. Somam-se a isto todas as incorreções gráficas que geram problemas sintático-semânticos: responçabelisa (responsabiliza) - cual quer (qualquer) - cual quer danos (quaisquer danos) - aja (hajam) - junto a (à) obra.

Exemplo 3:

Este texto ainda complica mais a comunicação, pois forma e ordem dos vocábulos se associam no embaçamento do texto. Observem-se: 1 - a grafia: bisiçeletas = bicicletas; enbão, estádo = em bom estado; griansa, e omen = criança e homem 2 - erro de seleção: homem por adulto 2 - a ordem esperada seria: “Vende(m)-se bicicletas em bom estado, para adulto e para criança.

Convém realçar que, a despeito das incorreções ortográficas observadas, a impropriedade da forma está mais ligada à organização da frase que às palavras em si. Isto porque, quando a ordem dos termos coincide com a expectativa do leitor, a margem de compreensão é maior.

Exemplo 4:

O presente, texto a despeito dos problemas gráficos, consegue transmitir sua mensagem, o que demonstra que a comunicabilidade não está exclusivamente relacionada com a grafia, conforme insiste a prática escolar de correção de textos.

Com base nos exemplos dados, verifica-se que a idéia corrente de que o povo não sabe a língua é imprópria. O que ocorre de fato é o desconhecimento da forma escrita padrão. Logo, cabe à escola propiciar contatos efetivos e sistemáticos com a escrita formal, para que o usuário adquira domínio nesta modalidade, sem que nele seja gerada a imagem de que a língua padrão é muito difícil, ou mesmo inacessível à maioria dos sujeitos.

Para minimizar os problemas verbais apontados

No processo de ensino da língua, sobretudo da textualização (que reúne leitura e redação), cumpre organizar atividades de exercício dos modelos verbais voltados para a produção de textos eficientes. A eficiência textual, por sua vez, implica a clareza que se assenta na superfície textual nos esquemas de coesão e, no nível do entendimento, instala-se a partir dos requisitos de coerência.

Do ponto de vista da coesão, é preciso verificar a eleição adequada das formas da língua considerando a compatibilidade semântica e sintática possível entre os termos que constituirão os enunciados.

Voltando ao exemplo 2 [Esta obra não se responçabeliza por cual quer danos que haja nas viaturas junto a obra], verifica-se incoerência pela falta de coesão semântica entre os termos obra e responsabilizar-se. Já no exemplo 3, [Vende-se bisiçeletas enbão, estádo griansa, omen], a incoerência sentida decorre da ordem dos termos. As palavras são apropriadas semanticamente, mas a arrumação destas na frase acaba por gerar quebra de coesão e, por conseguinte, falta de coerência. Ademais, o emprego de vírgulas, ao invés de auxiliar a compreensão, gera mais ruído. Vejam-se as partições criadas:

1 - Vende-se bisiçeletas enbão, 2 - estádo griansa, 3 - omen

estas não correspondem às porções significativas pretendidas pelo enunciador, as quais seriam:

1 - Vende(m)-se bicicletas em bom estado 2 - para crianças e adultos

Como se vê, a organização da frase é algo anterior à eleição da variedade lingüística, pois a confusão provocada pela ordem dos termos no exemplo 3 ocorreria em qualquer uso eleito: do mais informal ao mais formal.

Problemas redacionais graves

Para começar, veja-se o excerto:

Uma constatação identificada pela Comissão de Ética acionou a luz vermelha do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Ao realizarem avaliações psicológicas, diagnósticos, e ao produzirem documentos escritos, seja para apresentar a um juiz num processo de guarda, seja para oferecer à escola a pedido dos pais de uma criança, os profissionais têm esbarrado na redação de declarações, relatórios, pareceres e laudos. O que pode parecer inofensivo esconde um sério problema. Em razão de textos mal redigidos e confusos, sem a devida fundamentação, cresce o número de denúncias que acabam por resultar em processos éticos, a maioria referente a situações de natureza de disputa judicial. [grifo meu]
www.crpsp.org.br/a_acerv/jornal_crp/137/frames/fr_questoes_eticas.htm

É patente a importância da expressão escrita na vida humana. Mas parece não ser constante a consciência da responsabilidade com o que se escreve. O fragmento trazido como ilustração aponta problemas graves originários de textos mal redigidos e confusos, a partir dos quais a comunicação resulta truncada e penalizam-se (de modo errôneo) os sujeitos envolvidos no processo relatado.

Trago mais um excerto do mesmo documento eleito para ilustrar a reflexão:

Mas como produzir um documento claro, objetivo e bem redigido? Rogério Izidro Duran, presidente da Comissão de Registro de Especialistas do CRP-SP, sugere que se obedeça a Resolução 007/2003 do Conselho Federal de Psicologia. Ele diz que a Resolução dá as diretrizes para a boa redação de um texto. Primeiro, é preciso que a linguagem seja apropriada para quem vai receber o documento. Deve-se evitar as ambigüidades e o texto, sair do psicologismo. Ou seja, fugir do uso de jargões que não descrevem adequadamente o fenômeno que se quer relatar. (id. Ib.) [grifos meus]

Observe-se que não se trata de comentário de especialista em Língua ou Lingüística, mas de profissional que leva em conta a importância da clareza da expressão verbal para o bom andamento de processos em geral.

Mais um fragmento:

A redação deve ser bem estruturada e definida, observando-se a correção gramatical e o texto deve ter uma ordem que permita sua compreensão. Além disso, a comunicação deve apresentar qualidades como clareza, concisão e harmonia. Elisa Zaneratto Rosa - presidente da Comissão de Ética do CRP-SP. (id. Ib.)

As instruções dadas pela autora do texto em questão demonstram sua preocupação com a eficiência comunicativa do texto. Adiante, a estudiosa focaliza a questão da dimensão do texto.

Observe-se:

Também é importante que o texto se restrinja às informações que se fizerem necessárias, sem qualquer tipo de consideração que não tenha relação com a finalidade do documento específico. Elisa Zaneratto Rosa. (id. Ib.)

Segundo a máxima da quantidade, um texto deve fazer sua contribuição tão informativa quanto necessário (para os propósitos reais da troca de informações); assim como não fazer sua contribuição mais informativa do que o necessário. Foi Paul Grice que, examinando o processo da comunicação, estabeleceu as seguintes máximas:

Máximas de Grice
Máximas da quantidade
1. Faça sua contribuição tão informativa quanto necessário (para os propósitos reais da troca de informações);
2. Não faça sua contribuição mais informativa do que o necessário.
Máximas da qualidade
3. Tente fazer sua contribuição verdadeira
4. Não diga o que acredita ser falso;
5. Não diga algo de que você não tem adequada evidência.
Máxima da relação
6. Seja relevante
Máximas do modo
7. Seja claro
8. Evite a obscuridade de expressão;
9. Evite a ambigüidade;
10. Seja breve (evite prolixidade desnecessária);
11. Seja ordenado

Observe-se que as instruções contidas nestas máximas apontam qualidades atingíveis por meio da utilização adequada dos recursos verbais, sobretudo. Por isso, o ensino da língua voltado para a textualização deve considerar a aquisição de estruturas cuja formulação seja compreendida pelo usuário, ou seja, o sujeito, ao optar por determinada estrutura, deve estar apto a criticá-la verificando se estará formulada com as propriedades indispensáveis ao bom entendimento da mensagem em transmissão.

Trago mais um fragmento para ilustrar nossos argumentos. Trata-se de um comentário a texto legislativo sobre voto virtual.

Erros Evidentes de Redação Críticas acrescidas por mim
São três os erros de redação na lei do voto virtual que poderiam ter sido corrigidos se ao menos os relatores tivessem aceito receber e ler as sugestões e emendas que membros do Fórum do Voto-E tentaram em vão apresentar-lhes. Mas, sempre premidos pelo acordo com os ministros do TSE, alegavam não poder alterar nada.... nem o seguinte: [grifo meu para indicar erro de seleção por parte do comentarista: deveria ser usada a forma aceitado]
1. Um erro simples - o § 4º do Art. 66 da Lei 9.504 faz referência a uma "apresentação (DE) que trata o § 3º" quando deveria se referir ao § 2º; [inseri a preposição de que não foi observada pelo comentarista]
2. Um erro grave - § 1º do Art. 66 da Lei 9.504 fala que os partidos poderão acompanhar o desenvolvimento dos programas de computador "utilizados nas urnas eletrônicas para os processos de votação, apuração e totalização". Porém os programas de principais de totalização (como aquele que registrou 41 mil votos negativos no meio da totalização em 2002) não rodam nas urnas-e e poderão ser deixados de fora da análise dos partidos; [sublinhei o de por parecer desnecessário no texto e não ter sido objeto de comentário do crítico]
3. Um erro grosseiro - os § 7º e § 8º do Art. 59 da Lei 9.504 resultaram em texto idêntico, a saber:  
§ 7º O Tribunal Superior Eleitoral colocará à disposição dos eleitores urnas eletrônicas destinadas a treinamento. (Redação dada pela Lei nº 10.740, de 1º.10.2003)  
§ 8º O Tribunal Superior Eleitoral colocará à disposição dos eleitores urnas eletrônicas destinadas a treinamento.(Parágrafo incluído pela Lei nº 10.408, de 10.1.2002)  
Este erro grosseiro é responsabilidade dos relatores nas CCJ das duas casas legislativas, Sen. Demóstenes Torres e Dep. Luiz Eduardo Greenhalgh, que votaram pela "boa técnica legislativa", assinando os textos de seus incompetentes assessores, e mesmo alertados para estes tipos de erros recusaram ouvir nossas propostas.  
Humilha a moral de qualquer brasileiro responsável ter uma lei de tão baixa qualidade técnica.  
(In: http://www.brunazo.eng.br/voto-e/textos/PLazeredo.htm#3.)

Fica claro, nos comentários ao fragmento transcrito, que a avaliação do texto alheio não é tarefa simples. Este trabalho demanda competência técnica específica. Mormente quando se trata de texto de ampla circulação como o texto legal, por exemplo. A despeito disto, a capacitação pessoal para a produção de textos torna-se possível a partir do momento em que o sujeito se conscientiza da importância dessa competência e se responsabiliza pelo papel social que seus textos deverão exercer em maior ou menor escala de circulação.

A importância da legibilidade
do texto cotidiano

Não é só o texto legal que carece de clareza. Qualquer texto que circule na sociedade precisa ser suficientemente claro para que cumpra seu papel comunicativo. Assim sendo, tomados como referência textos produzidos por profissionais graduados, verificar-se-á que a competência textual está longe de ser atingida até porque há usos e costumes que alimentam certas práticas.

É useiro e vezeiro ouvirem-se coisas como: - Veja como a letra dele é feia! Quando crescer vai ser médico! - ou - Caramba! Olha que texto longo e enrolado! Isto é talento para advogado ou político? Tais práticas sociais mitificam comportamentos e geram o descompromisso textual que, às vezes, pode ser trágico.

Uma letra e uma preposição problemáticas

Certa vez, um médico receitou medicamento cuja receita, quando levada à farmácia, gerou situação cômica. O balconista disse ao cliente que tal produto só poderia ser encontrado no mercado em frente da farmácia, pois se tratava de produto de limpeza. O cliente, assustado, voltou a casa, ligou para o médico para conferir o nome do medicamento. Para dissipar qualquer sombra de dúvida, pediu ao doutor que soletrasse o nome do remédio.

De posse do nome correto do remédio, voltou à farmácia. Qual não foi seu espanto, quando percebeu que uma única letra teria sido o suficiente para promover um possível envenenamento. De fato, tal letra distinguia duas drogas de nomes muito parecidos: um para uso medicinal humano interno local (SEMORI); o outro para limpeza doméstica, uso externo em superfícies como pisos, balcões etc, para extração de manchas de ferrugem (SEMORIM).

Dou fé do fato, pois ocorreu em farmácia próxima de minha casa, e o balconista, meu conhecido, relatou-me o fato como prova dos dissabores de quem lida com receitas médicas (salvo exceções) e tem de decifrar verdadeiros enigmas.

Também posso testemunhar fenômeno redacional que me gerou sério problema. O Auto-de-Recuperação de um veículo que me fora roubado em 1987, em decorrência de minha tentativa de intervenção técnico-lingüística não-aceita no ato da lavratura, resultou em dificuldades iniciais na liberação do veículo.

Parte problemática do texto do AR: Ford Corcel, ano 1979, cor branca, duas portas, recuperado com avarias e as placas. (grifei o trecho polêmico)

Ao ler o documento para apor assinatura, questionei a ausência da preposição sem antes de placas, pois o carro não mais tinha suas placas, sobretudo a traseira, onde consta o selo do Detran. O escrevente de polícia respondeu-me que eu deveria guardar minha condição de professora para outra hora e assinar o documento sem criar caso. Tornei a argumentar, mostrando a diferença entre com e sem, alegando que, se assim levasse o documento, as placas me seriam cobradas no Ponto Zero (Delegacia do Detran em Benfica-RJ). Ante a agressividade do sujeito, meu pai convenceu-me a assinar o termo e buscar outras providências.

Procurei um delegado amigo, apresentei-lhe o carro e o AR, pedindo-lhe que os examinasse em prol dos desdobramentos do processo de recuperação. O delegado imediatamente perguntou das placas.

Relatei-lhe o fato ocorrido durante a lavratura do AR, e o profissional me aconselhou que não fosse apresentar o carro, senão acompanhada por policial que atestasse a veracidade de minha afirmação acerca da ausência das placas, sob pena de apreensão do veículo.

Segui o conselho e consegui a liberação do automóvel. Mas poderia não tê-lo conseguido! E a causa seria a ausência de uma simples preposição.

Algumas inclusões teóricas importantes

Segundo Bakhtin,

Muitas pessoas que dominam muito bem a língua se sentem, entretanto, totalmente desamparadas em algumas esferas de comunicação, precisamente porque não dominam os gêneros criados por essas esferas. Não raro, uma pessoa que domina perfeitamente o discurso de diferentes esferas da comunicação cultural, que sabe dar uma conferência, levar a termo uma discussão científica, que se expressa excelentemente em relação a questões públicas, fica, não obstante, calada ou participa de uma maneira muito inadequada numa conversa trivial de bar. Nesse caso, não se trata da pobreza de vocabulário nem de um estilo abstrato; simplesmente trata-se de uma inabilidade para dominar o gênero da conversação mundana, que provém da ausência de noções sobre a totalidade do enunciado, que ajudem a planejar seu discurso em determinar forma composicionais e estilísticas (gêneros) rápida e fluentemente; uma pessoa assim não sabe intervir a tempo, não sabe começar e terminar corretamente (apesar desses gêneros serem muito simples). (Bakhtin, M. M. (1952/53). Os gêneros do discurso. In Estética da criação verbal. Martins Fontes, São Paulo. 1992)

Pautada no texto de Bakhtin, reitero a idéia de que a textualização demanda competências específicas que precisam ser desenvolvidas durante a escolarização dos sujeitos. Mesmo aqueles que não participam do ensino sistemático, mais tarde acabam por buscar cursinhos que lhes dê as necessárias instruções para a produção de textos adequados e indispensáveis à sua inserção sócio-profissional.

Dominique Maingueneau também traz relevantes contribuições para um novo enfoque do texto e das relações entre este e os sujeitos.

A leitura é atividade cooperativa que leva o destinatário a tirar do texto o que o texto não diz, mas pressupõe, promete, implica ou implicita, a preencher espaços vazios, a ligar o que existe num texto com o resto da intertextualidade, de onde ele nasce e onde irá se fundir. (Maingueneau, D. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996: 39)

Em diálogo com o pragmatismo, a teoria lingüística proclama a linguagem como ação. Quando alguém diz algo, conclama uma ação, presente numa frase como “faça isso”. O aspecto prático é o do comando; todavia, as razões para se dizer o que se diz obedece a imperativos extras, com fundamentos ideológicos. Uma força alheia à linguagem dá a autoridade ao falante. Contudo, esta autoridade precisa explicitar-se na forma do texto de modo a garantir-lhe a legibilidade. Se se quer texto como ação lingüística, é preciso dominar as técnicas de produção textual tanto para ler e compreender, quanto para produzir novos textos.

Em função disso, a escola hodierna precisa se reposicionar em relação à textualização dos sujeitos. O ensino da língua e de suas variedades carece de um tratamento não apenas normativo, mas, sobretudo “ajustador”, no sentido de dar a conhecer aos sujeitos os modelos lingüísticos disponíveis e as possibilidades de calibração destes com os temas a serem abordados, os fins comunicativos a serem alcançados e os sujeitos interlocutores implicados no processo interacional mediado pelo texto.

Dando uma possível conclusão a este artigo, lembro o leitor de que a linguagem escrita nos circunda de modos diversos e muitas vezes insuspeitos: desde a conta de luz, até a lista de compras; desde os livros onde estudamos ou nos divertimos, até as bulas de remédio e as propagandas. O que se ouve no rádio e o que se vê na televisão é originado e impregnado de língua escrita. No computador, os ícones de comando são acompanhados de legendas verbais. Nas máquinas, de um modo geral, a compreensão de suas ações é também formulada por escrito nos manuais de instrução.

Logo, a dimensão que a escrita tem em nossas vidas é enorme. Ao nascermos, precisamos ser registrados para termos existência civil reconhecida. Nosso nome é um signo verbal que circula escrito nos documentos em geral: desde a certidão de nascimento até a inscrição no cadastro de pessoa física. Portanto, é impossível elidir a escrita de nossas vidas ou pretender negar-lhe valor.

Finalizando, vale dizer que nossa vida é escrita com signos verbais que de algum modo serão escritos em nossa história. Por isso, cumpre desenvolver a expressão verbal escrita em prol da garantia de um trânsito social de sucesso.