Medievalidade
ponte
da Filologia para a Pós-Modernidade

Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ)

LINGUAGEM E PODER – UMA INTRODUÇÃO

Talvez o título de deste artigo pareça extremamente ambicioso a partir de um ponto de vista essencialmente sincrônico nos estudos da linguagem. Entretanto, como bem sabemos, quaisquer mecanismos de formulação da linguagem – seja em textos orais ou escritos – trazem consigo elementos e estratégias retóricas, que, em uma visão simplista, relacionam-se com o convencimento, em suma, com o poder das palavras em persuadir seu ouvinte e / ou leitor. Se partirmos para a etimologia de discurso como oriunda de ação de correr por várias partes, de tomar direções diversas; movimentos, modos, tentativas, meios empregados (cf. SARAIVA, 1910, 382) pensamos que sua abrangência ao campo político espelha plenamente a assertiva foucaultiana das estruturas de poder. Devido a isso, nossas reflexões pautam-se no viés medieval como elo lingüístico-cultural vital para chegarmos até a Pós-Modernidade (sic), onde se discute vivamente os novos rumos e prumos de uma sociedade em mudança crescente e que tem na linguagem e nas línguas os vértices deste mundo revolto. Algumas palavras, entretanto, são necessárias a respeito do tema cultura, para que a Idade Média, tanto lingüística quanto historicamente, seja passível de uma proposta de análise discursiva.

 

PALAVRAS INTERDISCIPLINARES

Especialmente a partir do século XX observa-se no âmbito das ciências sociais e da linguagem um maior grau de aproximação no que se refere à possibilidade de se depreender e apreender aquilo que convencionamos chamar de real. Como símbolo de uma construção ideal, mas ao mesmo tempo empiricamente passível de datação, o conceitorealidade” permite diversas formas de entendimento como background para a formulação de teorias epistemológicas. Seja qual for, porém, a abordagem interpretativa, qualquer discurso que afirme ou negue o real insere-se dentro de uma visão cultural específica, que norteia o modus faciendi dos discursos científicos específicos.

Nossa esfera de atuação prende-se às ciências histórica e literária e em que medida esse processo cultural operacionaliza conjuntamente o fazer literário e o fato histórico. Para tanto, consideramos necessárias algumas palavras sobre cultura.

Etimologicamente, cultura deriva-se do verbo latino colere, cuja acepção primordial seria “cultivar”. Portanto, o cultivo de determinada área associa-se metaforicamente ao cuidado com algum campo do saber, que durante gerações frutifica, na medida em que os séculos lhe atribuem insumos de variados tipos, configurando-lhe posteriormente um novo plano de existência, refletor de um determinado período e inserido dentro de uma conjuntura social. Uma das formas de chegada a esses desdobramentos espaço-temporais é o texto escrito. Tanto a ciência histórica quanto a Literatura, constituídas enquanto epistéme, trabalham com textos, embora com objetivos diferentes. A uma modelar tentativa de se “documentar” o passado e o presente de uma junta-se o labor essencialmente estético da outra. De forma resumida, poderíamos dizer que ambas vêem na palavra escrita uma fonte de criação e de recriação de um dado momento. Nesse estágio, a cultura e a realidade indissociam-se. Testemunho e documento apresentam pontos de convergência e divergência em seus procedimentos decodificadores do “real”. O que talvez possa uni-los é a visão de uma “história cultural”, como a proposta por Chartrier (1987:16-17) ao definir o objeto de estudo desta ciência: identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma historicização da obra literária, como afirmam Pereira & Chalhoub (1998:7) é pleiteada, pois pode-se através da mesma, após sua inserção dentro do movimento social, investigar as suas redes de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social algo que faz mesmo ao negar fazê-lo. Tal texto serve de pretexto e como possível patamar para contextualizar micro-historicamente um certo dado cultural. Ao definir as relações entre cultura e texto literário, Doris Bachmann-Medick (1996:10) afirma que

Entender cultura como texto significa delimitar um campo comum, que somente pode ser trabalhado através de questionamentos transdisciplinares: a cultura é um campo, que – de forma semelhante a um texto – possibilita diversas formas de leitura. A própria atenção direciona-se à condensação de significados interpretativos das formas de representação cultural como, do mesmo modo, às estratégias retóricas na representação das culturas.

O trabalho inter e transdisciplinar entre os discursos histórico e literário, ao se entrecruzarem, oferecem um campo de visão mais amplo, embora não único, de um determinadosujeito cultural”, coletivo ou não, consciente ou não de seu papel como agente transmissor de informações sobre sua geração. Destarte, uma ficcionalização da História não é o nosso objetivo, mas sim a ficção literária historicamente tratada como produto cultural.

Se até agora procuramos discutir a questão da interseção epistemológica entre História e Literatura, cabem agora alguns questionamentos sobre a Medievalidade vista pela Medievística, cuja definição ora proporemos.

 

MEDIEVÍSTICA – ALGUNS COMENTÁRIOS

Talvez a ponte lingüístico-histórica para a compreensão da época medieval possa ser melhor vislumbrada dentro do universo científico, caso se lance mão dos conhecimentos, instrumentos e objetivos da Medievística.

Dentro do sintagma Germanistische Mediävistik, que traduzimos por Medievística Germanística, definimos esta ciência como a possibilidade do trabalho conjunto entre o social e o literário dentro do universo da Idade Média. Poderíamos questionar, a princípio, como uma época tão distante da nossa poderia contribuir lingüisticamente para o entendimento de nosso próprio estado atual. Ora, antes disto, partamos para uma análise macro-social. Temas como globalização, homogênese e hegemonia, com a vitória de um modelo político, são encontrados em abundância entre os séculos V e XV. Se entendermos o projeto político da Cristandade ocidental, por um lado, e pela expansão dos ideais trovadorescos, pelo outro, deparamo-nos com um estágio primitivo de inclusão mundial, claramente delimitado pela ótica da teocracia papal, extremamente forte nos séculos XII e XIII.

No léxico, fonte de estudos da Filologia e da Etimologia, existem termos que comprovam nossa assertiva. Tomemos como exemplo as palavras corte, cortesia, cortes. Atualmente, por definição lexicográfica, entende-se a segunda como maneiras delicadas, urbanidade, civilidade, polidez, afabilidade...(Cf. KOOGAN-HOUAISS, 1997, 449). A origem do conceito, porém, é eminentemente medieval. A vida na corte, idealizada nos romances de aventuras, nas cantigas de amor e de amigo, serviu de base para os modos comportamentais de damas, senhores feudais e cavaleiros. Estes últimos, instados à militia Christi, viam-se representados em Iwein, Parzival, Lancelot e assumiram, na língua portuguesa um novo caráter, tornaram-se cavalheiros, dominando os palafréns, mas reverenciando as damas. Em língua alemã, temos o mesmo par semântico, Reiter e Ritter. Fazer a corte, cortejar uma jovem ainda são ouvidas no nosso dia-a-dia do século XXI, o que confere às expressões o status de fonte de instrução e de verdade. Através da língua, veiculada então pelos textos literários, temos a possibilidade de depreender conceitos que se transformaram historicamente até chegar aos dias atuais.

 

PALAVRAS E TEXTOS
DO
LATIM À IDADE MÉDIA GERMÂNICA
COMENTÁRIOS

Toda época histórica deixa marcas, vestígios dos homens que a vivenciaram e dentre eles os monumentos lingüísticos. Se iniciarmos nosso excurso na época de Roma, ao terminar a fase de existência política do Império Romano do Ocidente, restaram entre as ruínas das construções romanas as estruturas bem solidificadas da língua de Roma. Citando BUNSE (1983: 40-42) verificamos a incidência de termos latinos que, paulatinamente, foram absorvidos pelo idioma germânico-comum e posteriormente tomou sua forma no alemão moderno.

À guisa de exemplificação podemos citar os seguintes empréstimos lexicais:

 

Empréstimos no campo da vida militar

lat. pilum – Pfeil, “seta”;

lat. campus – Kampf, “luta”. Em português presente na expressãoguardar o campo”;

lat. palus – Pfahl, “estaca”,

lat. (via) strata – Strasse, “rua”,

lat. milia – Meile, “milha”.

 

Empréstimos no campo do comércio,
meios de transporte e profissões

lat. caupo – kaufen, “comprar”;

lat. pondus – Pfund, “meio quilo, libra”;

lat. corbis – Korb, “cesta”;

lat. saccus – Sack, “saco, saca”;

lat. molina – Mühle, “moinho”.

 

Empréstimos no campo da administração e do direito

lat. teloneum – Zoll, “alfândega”;

lat. telonarius – Zöllner, “empregado da alfândega”;

lat. census – Zins, “juro”;

lat. carcer – Kerker, “cárcere”;

lat. catena – Kette, “cadeia, corrente”.

 

Empréstimos no campo da construção

lat. calcem – Kalk, “cal”;

lat. camera – Kammer, “câmara, quarto”;

lat. cellarium – Keller, “porão”;

lat. fenestra – Fenster, “janela”;

lat. murus – Mauer, “muro”.

 

Empréstimos no campo da jardinagem e da fruticultura

lat. fructus – Frucht, “fruta”;

lat. caseus – Käse, “queijo”;

lat. cucurbita – Kürbis, “abóbora”;

lat. ceresia – Kirsche, “cereja”;

lat. (fructum) persicum - persica – Pfirsich, “pêssego”.

 

Empréstimos no campo do mobiliário doméstico,
do
vestuário e da preparação de alimentos

lat. scrinium – Schrein, “cofre, escrínio”;

lat. coxinus – Kissen, “almofada”;

lat. speculum – Spiegel, “espelho”;

lat. scamillus – Schemel, “escabelo”;

lat. scutella – Schüssel, “travessa”.

O novo habitat da Germânia, usos e costumes daquelas tribos também deixaram indeléveis marcas no vocabulário de variadas línguas românicas. Também a língua de César incorporou ao seu léxico alguns elementos dos povos da margem leste do Reno. Citamos alces, proveniente do germânico Elche, “alce”; uri, em alemão Auerochs, “auroque”; sapo, em germânico, em alemão Seife, “sabonete”; glêsum, em alemão moderno Glas, “vidro”, mas nos tempos idos, “âmbar”; ganta em germânico, em alemão Gans, “ganso”.

A partir de uma perspectiva mais moderna temos a seguinte contribuição lexical germânica nas novas flores do Lácio:

 

Militaria

1. werra – ptg. “guerra”, francês guerre;

2. helms – ptg. “elmo”, espanholelmo”;

3. haribairgo – ptg. “albergue”, italiano “albergo”;

4. strebn – ptg. “estribo”;

5. wardon – ptg. “guardar”, espanholguardar”, francês garder.

 

Cores

1. falw francês fauve; italiano falbo;

2. blaw francês bleu; italiano biavo;

3. brun francês brun; italiano bruno;

4. gris - francês gris; italiano griggio;

5. blank francês blanc; italiano bianco; espanhol blanco; ptg. “branco”.

 

Objetos e construção

1. bank francês banc; italiano banco(a); espanhol, ptg. “banco”;

2. stalla – ptg. “estala, estaleiro”;

3. stakka –ptg. “estaca”;

4. frisk francês frais; italiano, espanhol e ptg. “fresco”.

5. laubjo – italiano loggia; espanhol lonja; francês loge.

 

A LITERATURA EM ALEMÃO
DA
ERA CAROLÍNGIA LATINA

Os primórdios da literatura alemã com base vocabular latina prendem-se à segunda metade do século VIII, onde são perceptíveis as influências da Regra de S. Bento (fundação de mosteiros e conventos) como, no ano de 724, Reichenau, em 744, Fulda e pela aceitação em 747 da Regra de São Bento pela abadia suíça de St. Gallen.

Por outro lado, Carlos Magno, rei dos francos, ambicionava a formação de um estado universal e, por isso, procurou submeter outras tribos germânicas a seu reino. Convocou a partir de 760 ao palácio real de Aachen os maiores sábios de então, para, sob a orientação do bispo Alcuíno de Tours, proceder à cristianização das tribos recém subjugadas. O futuro imperador tornou a Igreja a educadora dos povos germânicos. Apesar de sua associação com a Igreja e conseqüente combate ao paganismo germânico, Carlos Magno reconhecia o legado cultural proveniente destas tradições Como prova disso, mandou que se compilassem as Antiquissima Carmina Barbarorum (As mais antigas canções dos bárbaros).

Carlos Magno rodeou-se dos maiores sábios da Cristandade e demonstrou especial afeição pela astronomia e pela gramática, idealizando uma gramática, que se perdeu.

Em latim se escreveu a literatura pragmática. O Abrogans, dicionário latino de sinônimos, foi elaborado em Freising por volta de 765. O Vocabularius St. Galli, de pouco tempo depois, parece ter sido redigido em Fulda.

O latim era a língua especial de cultura, daí a confecção de glossários e dicionários. Como nome de destaque da época temos Hrabanus Maurus (776-856), abade do convento de Fulda. Preparou livros para a prática do ritual cristão, com a finalidade de cristianizar temas antigos, aplicando-os à realidade das tribos germânicas ainda não suficientemente bem cristianizadas.

Como exemplos textuais dessa apropriação de vocábulos latinos com finalidades culturais e catequéticas podemos mencionar o seguinte excerto do Vocabularius St. Galli, em alamânico, século VIII:

caput – kaupit, em alemão Haupt, “cabeça; oculos – algum, em alemão Augen, “olhos; nares – nasa, em alemão Nase, “nariz; os – mund, em alemão Mund, “boca; lingua – zunga, em alemão Zunge, “língua; facies – wanga, em alemão Wange, “face; pilus – har, em alemão Haar, “cabelo; sanguis – plot, em alemão Blut, “sangue; prachia – arma, em alemão Arme, “braços; manus – hant, em alemão Hand, “mão”.

É bom notarmos que o latim da época era adaptado ao sistema lingüístico do Althochdeutsch, língua natural dos copistas, distanciando-se, por isso, dos padrões clássicos.

 

A LITERATURA EM LÍNGUA LATINA
ATÉ O INÍCIO DA POESIA PALACIANA (c. 900 - c. 1170)

Entre os séculos X e XII houve a retomada da literatura em língua latina nas regiões de língua alemã, sob Otto I, o Grande (936-973, fundador do Sacro Império Romano-Germânico) e Otto III, renovador das culturas alemã e clássica. Um dos propagadores da cultura clássica era o irmão de Otto I, Bruno, Duque da Lorena. Sua esposa, Adelaide, e sua sobrinha, Gerbig, também participaram da renovação do panorama cultural da época. A última, abadessa de Gandersheim, incentiva a obra de Hroswitha. Durante o reinado dos imperadores otonianos há a predominância da poesia em latim, sendo que este mesmo latim é, na verdade, o alemão traduzido ipsis litteris, porém mantenedor da sintaxe original.

Em latim temos, como mais importantes do período, os seguintes autores e obras:

a) Walahfrid Strabo - De cultura hortorum; Visio Wettini, a primeira visão do inferno, composta em forma de poesia na Idade Média.

b) Notker Balbulus - Viveu em Fulda. Tradutor de clássicos latinos para o AHD. Introdutor das seqüências em alemão. Escrevia poesia bilingüe, latim-AHD.

c) Hroswitha von Gandersheim - freira que escreveu obras dramáticas em língua latina. É considerada a primeira poetisa alemã (+ / - 935). Sua atividade literária situa-se entre 955 e 970. Redigiu lendas épicas, lendas dramatizadas e as Gesta Othonis.

Do ponto de vista da epopéia, amais significativa obra em latim escrita na época foi Waltharius, escrita pelo monge Ekkehard de St. Gallen, uma epopéia latina, que, na verdade, se trata de uma readaptação da lenda germânica de Walther, irmão de sangue de Hagen, que foge com Hiltgunt do cativeiro huno, levando consigo seus tesouros, provocando, assim, a cobiça de Gunther, que os persegue auxiliado por Hagen e outros onze heróis. Chega o momento da luta, que o poeta retrata plena de incidentes. Hagen permanece afastado da mesma, quando seu sobrinho Patafrid tomba mortalmente ferido por Walther. Neste momento, Hagen resolve intervir. Na canção germânica, a solução seria a morte de ambos, o que não agrada ao monge cristão do século IX. Este faz com que os lutadores feridos, Gunther, Hagen e Walther se reconciliem.

No século seguinte, podemos listar como principais contribuições em latim para o espaço lingüístico alemão a obras a seguir:

a) Carmina Cantabrigiensia - antologia de várias criações líricas, contidas em um manuscrito do século XI;

b) + / - 1020 Fecunda ratis, de Egbert von Lüttich, uma coleção de máximas sagradas e profanas;

c) + / - 1075 Carmen de bello saxonico, um poema sobre a guerra de Henrique IV contra os saxões;

d) + / - 1050 Ruodlieb, composta por um monge desconhecido, talvez oriundo do mosteiro de Tegernsee, o primeiro romance palaciano da Idade Média em hexâmetros leoninos. Apresenta os traços de um humanismo cristão cavalheiresco.

Com Henrique II (1002-1024) impôs-se na Alemanha a tendência ascética de influência cluniacense (abadia de Cluny, fundada em 910). Em língua latina temos hinos, ladainhas e orações, pois a poesia se propõe a interpretar a realidade passageira pela terra unicamente como negação do mundo e parábola da eternidade. É o tempo da negação do mundo e o imperador deve realizar os desígnios da Igreja. O papa Gregório VII estabelece as Cruzadas. Em França, Abelardo (1079-1142) e Bernardo de Clairvaux (1091-1153) influenciam a vida espiritual nas regiões de língua alemã. Chegaram em nossas mãos aproximadamente setenta poesias deste período.

 

OS CARMINA BURANA – FLORILÉGIO LATINO-ALEMÃO

Um dos mais importantes monumenta lingüísticos, que muito bem traz as marcas da simbiose latino-germânica, entre a culta Roma e a bárbara Germânia, são os famosos Poemas de Beuren. Juntamente com o movimento trovadoresco de procedência provençal chega às cortes da dinastia Staufer um tipo de produção lírica, que tanto servirá para decantar o sentimento amoroso refletido nas estações do ano quanto para criticar, de maneira satírica, porém racional os desvios da autoridade eclesiástica em Roma ou em quaisquer outras partes do orbis germanici. As Canções de Beuren, imortalizadas nas partituras de Carl Orff, apresentam ao público moderno a ambiência medieval de vinho, jogos, amor, folguedos, contudo sem esquecer também de seu papel social de críticas dos costumes.[1]

Esqueçamo-nos, por um momento, dos defeitos e vícios de eclesiásticos, cavaleiros e damas: nossa exemplificação, fim de viagem, trata da natureza, que os pretensos clérigos vagantes conhecidos pela rotulação genérica de goliardos tão bem sabiam retratar.

Texto em latim                           Texto em médio-alto-alemão

Aestas non apparuit                     Ich gesach den sumer nie,

praeteritis temporibus,                 daz er sô schône dûhte mich.

quae sic clara fuerit.                      mit manigen bluomen wol getân

Ornantur prata floribus,                diu heide hât gezieret sich.

aves nunc in silva canunt              sanges ist der walt sô vol,

et canendo dulce garriunt.             diu zît diu tuot den kleinen vogelen wol.

 

Tradução

O verão não se mostrou               Nunca tinha visto um verão

em tempos passados,                    que me impressionasse tão belamente,

assim ele está claro.                      com muitas formosas flores ornado

os prados estão ornados de flores, está o prado enfeitado.

e agora as aves cantas nos bosques           O bosque está repleto de cantos,

e ao cantar trilam docemente.      Esta época traz aos passarinhos encantos.[2]

Aqui, através do paralelismo vocal das cantigas, sente-se a pujança do verão, fonte de vida para os bosques e para os trovadores travestidos em pequenos passarinhos. Nota-se claramente quase que uma versão linear do motivo no carmen em médio-alto-alemão, o que demonstra sua redação literária na língua germânica.

Não se pode olvidar, porém, dentro das Canções de Beuren a presença de elementos da nobreza medieval representados pela figuras da donzela e do cavaleiro. Mesmo em se tratando de um tema recorrente na poesia dos Minnesänger trovadores em solo germânico são poucos os exemplos de canções bilíngües, nos quais coexistem lado a lado um poema em latim, língua dos textos sagrados e da cultura de base eclesiástica, e outro em alemão, língua popular.[3] Fundem-se, cada vez mais, os estratos lingüísticos no campo da poesia:

Texto em latim                           Texto em médio-alto-alemão

Floret silva nobilis                        Floret silva undique,

floribus et foliis.                           nah minne gesellen ist mir wê.

Ubi est antiquus                            Gruonet der walt allenthalben,

meus amicus? Ah!                        wâ ist min geselle alse lange? Ah!

Hinc equitavit!                             er ist geriten hinnen,

Eia, quis me amabit? Ah!              o wî, wer soll mich minnen? Ah!

 

Tradução

A nobre floresta floresce              A floresta floresce por todos os lados,

com flores e folhas.                      dói-me a ausência de meu amigo.

Onde está meu antigo                   A floresta verdeja por todos os lados,

amigo? Ah!                                  Onde está meu amigo tempos? Ah!

Ele cavalgou!                               Ele cavalgou,

Ai! Quem me amará? Ah!            Ai! Quem deverá me amar? Ah!

O poema em alemão aparece com o primeiro verso em latim, vertido ipsis litteris para o idioma germânico dois versos depois. O lamento da dama, saudosa da partida do cavaleiro em busca de aventuras, encerra-se com o topos de cunho social da lírica palaciana de então: o dever de minne, ou seja, o vassálico amor do homem diante de sua quase que inacessível senhora! Aqui confluem a natureza idealizada da tradição greco-latina e o universo feudal medieval.

 


 

LATIM, MÉDIO-ALTO-ALEMÃO, PORTUGUÊS MEDIEVAL
E A PÓS-MODERNIDADE – EXEMPLIFICAÇÕES

No mosaico lingüístico-cultural que foi o mundo medieval, se tomarmos como ápice os séculos XII e XIII devido a razões de ordem sócio-histórica e político-econômica, verificaremos o quanto o léxico das línguas supra foi enriquecido com neologismos e novas matizes semânticas.

Do ponto de vista da Medievística, se pensarmos no vilanus latino, antes mero habitante de uma villa, propriedade de abastados patrícios, deslocado para o medievo, teremos o vilão como um senhor feudal, normalmente rigoroso com seus servos. Do mesmo modo, definitivamente o rivalis à época ciceroniana, cujo terreno tinha muitas vezes como divisor um rio, rivus, transforma-se num rival daquele que habita na outra margem daquele rio, transcorridos séculos.

No plano literário medieval, o coitado de amor padecia pela inacessibilidade e frieza da dama e, hoje em dia, a coita d’amor anímica foi geralmente substituída pelo coito simplesmente físico.

Tomando como base o germânico, o latim medieval e o médio-alto-alemão[4], dentre os inúmeros exemplos, citamos apenas alguns:

Abbatissa – Äbtissin, abadessa;

Aggravare – verschlimmern, agravar;

Baccalarius – Baccalaureus, bacharel;

Banca,Bank, banca, banco;

Burhmannus, Bürger, habitante do burgo;

Coppare, abschneiden, capar;

Citrea – Zitrone, limão;

Giga (germânico), Geige, violino;

Hortalicium, Garten, jardim;[5]

Mortarium, Mörser, morteiro;

Muta (germânico), Maut, alfândega, pedágio;

Palus, Pfahl, estaca;

Regalia, Reichskleinodien, regalias;

Salarium, Salzsteuer, salário;

Suppa, Suppe, sopa;

Tabardum, taphart (médio-alto-alemão), tabardo;[6]

Tripalium, Arbeit, trabalho;

Unicornus, Einhorn, unicórnio;

No século XXI assiste-se ao domínio incontestável da sociedade informatizada. Neste novo campo do saber dominante recorre-se às velhas línguas clássicas para a formação dos neologismos. O computator agora é uma máquina com teclado, em alemão Tastatur, de tasten, tocar, premir, onde se deletam palavras não usadas. Delenda Carthago esse! assim dizia Catão há séculos. Como visto, a Antigüidade enriqueceu, formou o léxico, desenvolvido pelas gerações medievais até chegar aos dias hodiernos.

 

PALAVRAS FINAIS

Muito mais poderia ser arrolado neste nosso roteiro de viagem do latim, do alemão, de considerações sobre a língua portuguesa, começando na Roma antiga, passando pela Idade Média e desembocando em 2003. Se nos ativermos apenas à Idade Média, poderíamos falar, que a maior parte da lírica religiosa em regiões de língua alemã era escrita em latim, assim como os principais tratados culturais de então. Filosofava-se, discutia-se sobre a organização do mundo de acordo com as palavras de Deus, calculava-se a quantidade de material necessário par a construção de novas igrejas, cantava-se, tocavam-se instrumentos, enfim, praticavam-se as artes liberais quase que exclusivamente no sermo latinus medievalis. O léxico do alemão enriquecia-se assim de termos que, plasmados com os séculos, “germanizaram-se”, constituindo-se desde essa origem em base de uma futura identidade nacional, somente alcançada sete séculos depois. A língua portuguesa também vivenciou tais processos, como citados sucintamente ao longo deste trabalho. Vivemos na época dos mass media, os meios de comunicação em massa, que, porém ainda não dispensam os livros, que, mais que nunca fazem com que os homens sejam semper libres que aprendem com os libros.

Enfim, tentamos demonstrar que a Medievística resgata uma parte do legado lexical da Idade Média perdia, empoeirada em palavras tão presentes em nosso cotidiano, mas que somente com a ajuda da Filologia deixam transparecer um mundo, afastado, porém intrinsecamente ligado a nós.

Verbum sapienti sat est (Anônimo)

Hominis ... mens discendo alitur et cogitando (Cícero)

 


 

BIBLIOGRAFIA

BACHMANN-MEDICK, Doris. (Hrsg.) Kultur als Text – die antropologische Wende in der Literaturwissenschaft. Frankfurt am Main: Fischer, 1996.

BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. A literatura em língua alemã das origens ao Sturm und Drang tendências e contingências, elementos histórico-culturais e textos. Rio de Janeiro: Serviço de Fotocópias da Faculdade de Letras da UFRJ, 1999. Inédito.

––––––. Considerações sobre as canções de taberna dos Carmina Burana. In: BASTOS, Maria Luíza Kopschitz & GUERRA, Beatriz Gomes. (Org.) Traditio / Reconstrução. Juiz de Fora: UFJF / ICHL / DLET, 1997. p. 121-134.

BRANDT, Rüdiger. Grundkurs germanistische Mediävistik / Literaturwissenschaft. München: W. Fink 2000.

BUNSE, Heinrich A.W. Iniciação à filologia germânica. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1983.

CÉSAR, Caio Júlio. Comentários sobre a guerra gálica. Tradução de Francisco Sotero dos Reis. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967.

CHALHOUB, Sidney & PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (Org.) A História contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1987.

HABEL, Edwin & GRÖBEL, Friedrich. Mittellateinisches Glossar. 2. Aufl.. Paderborn; München; Wien; Zürich: Schöningh, 1989.

KOOGAN, Abrahão & HOUAISS, Antônio. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de Janeiro: Delta, 1997.

SARAIVA, F.R. dos Santos. Novissimo diccionario latino-portuguez etymologico, prosodico, historico, geographico, biographico, etc. 7ª ed.. Paris: Typographia Garnier Irmãos, 1910.

TÁCITO, Caio Cornélio. A Germânia. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. 2ª ed. Lisboa: Inquérito, [s / d.].


 

[1] - Para conferir um estudo sobre as canções de taberna em médio-alto-alemão nos Carmina Burana veja-se BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Considerações sobre as canções de taberna dos Carmina Burana. In: BASTOS, Maria Luíza Kopschitz & GUERRA, Beatriz Gomes.(Org.) Traditio / Reconstrução. Juiz de Fora: UFJF / ICHL / DLET, 1997. pp.121-134.

[2] - Traduções do autor.

[3] - Cf. à página 1 a expressão thiudiska lingua, em antigo-alto-alemão, que significa “língua popular em oposição a latina lingua, língua dos letrados e da cultura de base latina.

[4] - Colocaremos os termos em médio-alto-alemão em alemão moderno.

[5] - Cf. o termo latino com o derivado em português, horta, jardim cultivado.

[6] - Espécie de casaco medieval