A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
DO DISCURSO HOMOSSEXUAL
UMA ABORDAGEM DA ALTERIDADE NO DISCURSO

Felipe Barbosa Dezerto (UERJ)

 

INTRODUÇÃO

O trabalho em questão toma como objeto o discurso homossexual na mídia tendo como suporte teórico a Análise do Discurso (Pêcheux e Orlandi) e o quadro teórico de Jaqueline Authier-revuz. Traça-se como objetivo principal a elaboração de idéias lingüísticas a partir do discurso homossexual tomando como material a coluna Olho no olho, da revista G magazine. E a partir desse material, pretende-se investigar posições e marcas discursivas e o funcionamento delas na referida produção discursiva, no que tange a heterogeneidade na composição do discurso. Na materialidade desse discurso, perseguir-se-ão posições, posicionamentos e marcas lingüísticas de um grupo que traz, historicamente, sinais de exclusão provenientes da prática sexual, socialmente falando. Marcas essas que se fazem presentes, em forma de pistas, quando se observa o discurso em questão.

 

ALGUNS PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Para a elaboração do trabalho que se pretende, aqui, realizar, é válido mencionar que procedimentos serão adotados na composição de seu corpus.

Indursky (1997) nos esclarece no que se refere à elaboração de um corpus, em Análise do Discurso dizendo que em AD, não existe um (grifo nosso) modelo que se aplique automaticamente e indiferentemente a todo e qualquer discurso. Vale dizer que a definição da metodologia a ser utilizada na análise de um discurso específico implica mais uma vez a análise. Assim, a delimitação de um corpus depende do que o próprio discurso dispõe para a análise. Esse recorte depende dos objetivos do analista e do quadro teórico.

Parte-se, primeiramente, de um corpus empírico, que é composto pela totalidade de alocuções em determinada comunidade discursiva, que nesse caso seria o discurso homossexual. Dessa totalidade estreita-se o material sobre o qual vão incidir as análises: trabalhar-se-á com o discurso homossexual na mídia, em específico, o da coluna Olho no olho, de João Silvério Trevisan, da revista G Magazine. Dessa forma estabelece-se o campo discursivo de referência (Indursky, 1997) que se define como um tipo específico de discurso, ou seja, aquele formado pela coluna da revista G magazine. Na prática, isso funciona como o todo discursivo formado pelas publicações mensais da coluna Olho no olho desde seu aparecimento na revista G Magazine, em junho de 2000, até os nossos dias, uma vez que as colunas continuam a ser publicadas.

Uma vez estabelecido o campo discursivo de referência, parte-se para um trabalho de recorte que formará o corpus discursivo, ou seja, as seqüências discursivas sobre as quais se debruçarão as análises. Essas seqüências são unidades (nesse caso escritas) superiores ao nível da frase e fruto já de uma primeira análise.

As análises feitas sobre cada seqüência têm resultados extensivos ao campo discursivo de referência. Entende-se, aqui, a seqüência discursiva como um extrato representativo do campo discursivo a que ela pertence. Para a escolha das seqüências discursivas, o critério utilizado é a representatividade de cada segmento, tomando como base o quadro teórico exposto no trabalho. A teoria determina os limites do recorte discursivo. Primeiramente, se estabelece o que se vai analisar e em seguida se recortam as seqüências discursivas.

 

AUTHIER E ALGUMAS FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS

Para este trabalho, me apoio nos estudos da autora sobre a presença do outro na produção discursiva e no fato de que, em seus estudos sobre a enunciação, a alteridade discursiva é tomada como ponto de partida para a compreensão do funcionamento da produção linguageira de Trevisan, na coluna Olho no olho, da revista G magazine.

A autora parte, inicialmente, para a fundamentação da heterogeneidade constitutiva do discurso, de alguns pontos considerados por ela decisivos na formulação de sua teoria, dentre eles, o Dialogismo de Bakhtin, a Psicanálise de Lacan e a Análise do Discurso de Pêcheux. A partir dessas reflexões se consegue compreender: de que forma o discurso outro também faz parte de (e mesmo determina) outros discursos; como o descentramento do sujeito pelo inconsciente dá ao discurso um caráter de controle sobre os locutores (e não o contrário) e a dupla determinação do sujeito pelo inconsciente e pelo interdiscurso.

A respeito do dialogismo do círculo de Bakhtin, a autora observa que há uma rejeição à concepção de discurso como algo monológico, ou seja, aquilo que pretende apagar, no fio discursivo, as marcas de um discurso outro. O discurso, então, é pensado como algo que se produz em uma rede de significações que se constroem interativamente, num modo dialógico de conhecimento. Sobre a questão a autora nos diz:

O sentido de um texto não está, pois, jamais pronto uma vez que ele se produz nas situações dialógicas ilimitadas que constituem suas leituras possíveis: pensa-se, evidentemente, na “leitura plural”. (Authier-Revuz, 2004).

Dessa forma, o discurso que se pretende isento do dialogismo na produção de sentidos tende a ter uma proposta de verdade absoluta; pretende não deixar transparecer nenhuma outra voz para que possa sozinho dizer de um objeto como o único detentor dos sentidos possíveis desse objeto.

Para Bakhtin, as palavras não estão estanques e prontas para serem usadas, como se repousassem num estoque. Elas não se apresentam como tiradas do dicionário e colocadas em uso. Esse autor defende que todas elas estão ligadas a um contexto (ou mesmo a vários) no qual essas palavras tiveram uma existência socialmente submetida a esse contexto. É o que o autor chama de saturação da linguagem, ou seja, “as palavras são ‘carregadas’, ‘ocupadas’, ‘habitadas’, ‘atravessadas’ por discursos”. (Bakhtin, 1976: 46 apud, Authier-Revuz, 2004: 36).

Nessa perspectiva, o sentido não repousa sobre ou em torno de apenas um núcleo. Ele constitui-se, necessariamente, nas situações dialógicas onde a contradição e a multiplicidade semântica coabitam:

O dialogismo é dado assim como condição de constituição do sentido: a “pluriacentuação” da palavra não dá, com efeito, halos conotativos variáveis em torno de um núcleo de sentido comum, mas “acentos contraditórios que se cruzam no interior de cada palavra”, num sentido que se faz no e pelo entrecruzamento dos discursos. (Authier-Revuz, 2004) [itálicos da autora].

Seguindo essas observações, a autora prossegue suas reflexões sobre essa relação entre discursos trazendo à tona a questão da heterogeneidade como constitutiva do próprio discurso. Os discursos não estão uns para os outros numa relação em que se pode delimitar áreas para cada um deles. Diz-se que a relação é constitutiva porque os discursos constroem o discurso. Não há discurso sem um entrecruzar de outros discursos. Essa definição pode parecer paradoxal, uma vez que toma a exterioridade como algo interior; o que está fora, pertencendo ao outro, é na verdade, o que constitui o um. “O lugar ‘do outro discurso’ não é ao lado, mas no discurso”. (Authier-Revuz, 2004: 37)

Nesse jogo de interdependência discursiva, onde as projeções do interlocutor são tomadas para a produção do discurso, é que se sustenta o Dialogismo. Nessa relação constitutiva entre discursos, o lugar do discurso outro se elabora dentro do discurso um. E nessa interação que pretende se unir numa só coisa, comportando a alteridade, é que se dão os processos de significação.

O pensamento de Authier também desenvolve reflexões sobre o conceito de sujeito. Essa noção é emprestada da Psicanálise[1], principalmente de Freud e das releituras deste último por Lacan. Nessa concepção, refuta-se o sujeito da Lingüística que constitui uma plenitude no que tange ao seu dizer. Esse sujeito controlaria suas palavras de forma autônoma e com total consciência do que dizer e quando dizer. Ele estaria pronto para lançar mão de suas palavras de acordo com a demanda da situação, constituindo-se, dessa forma, como a única fonte de suas palavras.

Authier nega essa plenitude e essa intencionalidade controlada do sujeito inserindo o inconsciente em suas reflexões. O sujeito seria atravessado e determinado pelo inconsciente e, conseqüentemente, não teria tal controle sobre suas palavras. Substitui-se a noção de sujeito centrado e pleno pela de sujeito dividido.

A tendência a considerar o sujeito como causa primeira e fonte do dizer exclui a possibilidade da constituição heterogênea do discurso. Se apenas o próprio locutor fosse criador ou condutor de seu discurso, não haveria espaço para se considerar os atravessamentos por parte do outro que emergem no discurso de um locutor. Authier toma para seu quadro teórico, então, a noção de sujeito dividido e discursivamente heterogêneo “contrariamente à imagem de um sujeito ‘pleno’, que seria a causa primeira e autônoma de uma palavra homogênea, sua posição [da Psicanálise] é a de uma palavra heterogênea que é o fato de um sujeito dividido”. (Authier-Revuz, 2004: 48-9 – grifos da autora).

Essa divisão constitutiva do sujeito dá a ele um caráter de efeito. Ele seria, então, um efeito de linguagem, uma vez que são os atravessamentos de outros discursos que constituem seu dizer. Este último não é gerado no momento do dizer, mas isso já fala anteriormente e em outro lugar, considerando a alteridade discursiva e também o interdiscurso.

A inserção do inconsciente no discurso provoca não só a divisão do sujeito, mas também traz a noção de assujeitamento. Esse conceito diz respeito à submissão do sujeito ao discurso, na retomada dos sentidos em vigência na sociedade na qual ele está inserido. Quando ele vem ao mundo, já há sentidos em circulação. E o sujeito assujeita-se ao discurso ao acionar a memória dos sentidos e do dizer, o interdiscurso. Quando vislumbramos essa retomada que provoca uma submissão discursiva em oposição a uma tábula rasa do dizer estamos, então, diante do processo de assujeitamento.

O sujeito, por sua vez, não tem consciência de que para enunciar ele aciona um entrecruzar de outros dizeres, acessados na memória do dizer, para construir o seu. O sujeito mantém a ilusão de ser fonte do seu dizer; de ser a causa primeira do que enuncia. Ele desconhece a determinação do inconsciente e do interdiscurso quando diz.

Não se está dizendo aqui que haja um discurso próprio do inconsciente, mas que este age no discurso e que a linguagem configura um campo para sua manifestação. O inconsciente, nessa teoria, também constitui a possibilidade da alteridade discursiva. Ele seria a porta de acesso não só para o interdiscurso, mas também para o discurso outro: “[A] instância dinâmica [do inconsciente] é provocar a báscula pela qual um discurso volta a um outro, por deslocamento do lugar em que o efeito significante se produz” (Lacan apud Authier-Revuz, 2004: 52).

A relevância de se considerar a ação do inconsciente como porta de acesso para outros discursos, sem que esse processo seja consciente, permite conceber o discurso como um campo heterogêneo por natureza e constituição. Várias vozes podem ser ouvidas no mesmo discurso. Sobre a questão, diz Authier:

Em suma, a localização dos traços do discurso inconsciente na análise leva à afirmação de que todo discurso é polifônico, consistindo o trabalho de análise em ouvir, ao mesmo tempo, as diferentes vozes, partes, registros da partitura ou da cacofonia do discurso. A metáfora musical está em toda parte. (Authier-Revuz, 2004: 61).

Authier reconhece exterioridades teóricas em seu pensamento, apontando para o empréstimo que também a análise do Discurso de Pêcheux faz. Para a conceituação de sujeito, essa teoria não se distancia da determinação da Psicanálise. E acrescenta, em seu quadro teórico, o conceito de interdiscurso. Orlandi define interdiscurso como

o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-constituído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavras. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. (Orlandi, 2005: 31)

O ato enunciativo seria marcado, então, pela relação que estabelece esse dizer com o interdiscurso. A consciência desse processo é que não pode ser assegurada. Mesmo porque para que o sujeito se sinta dono do dizer (ilusão) é preciso que haja um apagamento do que é dito como já-dito. O acesso ao interdiscurso se dar de forma inconsciente e sem que se dê conta desse processo de ativação de exterioridade constitutiva do discurso.

E a própria Authier, sobre a questão, comenta:

[...] podemos nos apoiar em exteriores teóricos que destituem o sujeito do domínio de seu dizer – ao modo da teoria do discurso e do interdiscurso enquanto lugar de constituição de um sentido que escapa a intencionalidade do sujeito, desenvolvida por Michel Pêcheux e, de forma central, da teoria elaborada por J. Lacan, de um sujeito produzido pela linguagem e estruturalmente clivado pelo inconsciente -, quer dizer, onde o sujeito, efeito de linguagem, advém dividido, na forma de uma não-coincidência consigo mesmo [...]. (Authier-Revuz, 1998: 186).

Dentro dessa lógica, a dupla determinação do sujeito se apresenta como um ponto fundamental para a Análise do Discurso e, conseqüentemente, para Authier. O sujeito é encarado como algo que se submete ao interdiscurso e é clivado pelo inconsciente, num processo discursivo em que esses dois últimos constituem, de maneira determinante, o sujeito.

Dessa forma, tomando pontos do Dialogismo,da Psicanálise e da Análise do Discurso e efeitos dessas teorias nos estudos da linguagem, a autora promove deslocamentos e reformulações nas concepções de discurso e sujeito. São trazidas reflexões que fazem considerar a presença do outro como forma necessária para que o discurso se construa. Isso configura uma lei de constituição do discurso fazendo com que se ouçam nele outras vozes, considerando, mais uma vez, não apenas a alteridade, mas também a interdiscursividade.

E acrescenta-se a noção de sujeito dividido, no qual não se vê um centro controlador do dizer. O trabalho do inconsciente em promover a emersão de outros dizeres faz do sujeito um efeito de linguagem, na medida em que é produto de todos esses dizeres que já falam antes e em outros lugares, ou seja, não pode haver um lugar exterior à linguagem que o sujeito possa ocupar. Esse sujeito é efeito de linguagem uma vez que se constitui discursivamente.

 

O DISCURSO RELATADO: UMA NOVA CONCEPÇÃO

Dentro dessa lógica onde a alteridade aparece de forma constitutiva no discurso, a autora tece relevantes observações sobre o campo do discurso relatado, ou seja, “os meios de representação no discurso de um discurso outro”. (Authier, 1998: 133).

A autora começa por discutir as concepções de discurso direto (DD), discurso indireto (DI) e discurso indireto livre (DIL) tal como aparecem nas gramáticas e procura desenvolver uma abordagem enunciativa da questão . Na abordagem das gramáticas, o DD apresenta uma estrutura simples, no plano sintático e fiel e objetiva, no campo semântico-enunciativo. O DI, por sua vez, é apresentado como subordinado ao DD como uma derivação dele e adaptado em relação às pessoas e aos tempos verbais. O DIL aparece como um discurso onde se misturam o DD e o DI e há o desaparecimento da partícula subordinativa introdutora da oração subordinada que funciona como relatora das palavras do outro.

É para ralativizar essa abordagem sintática de discurso relatado (DR) que a autora discute o assunto e para mostrar os pontos sobre os quais desloca a forma de encarar o DR dessa abordagem sintática para uma abordagem enunciativa, a saber:

O DD não é simples, nem objetivo, nem fiel; ele seria mesmo mais complexo que o DI. O DD, ao reproduzir a materialidade lingüística, não reproduz as condições de produção em que o discurso primeiro foi enunciado, i.e., o que se reproduz é o enunciado, mas a enunciação nunca pode ser reproduzida. O DD se faz de modo heterogêneo, pois há uma quebra quando o outro locutor relata um outro ato de enunciação: é colocado o bloco material-lingüístico justaposto às palavras do locutor. Quando se relata em DD, há uma tentativa de mudança de voz; uma tentativa marcada de atribuição das palavras relatadas ao outro sem que se continue no mesmo nível sintático.

O DI não é subordinado ao DD. Ele configura uma tradução do que foi enunciado e não há uma derivação morfossintática do DD. Nesse tipo de discurso, o enunciador relata um outro ato de enunciação com suas próprias palavras, reformulando as palavras do enunciado traduzido. É uma forma homogênea (sintaticamente falando) de relato em discurso segundo.

Também é ressaltado que considerar tão somente as formas acima como as únicas possibilidades de se marcar e representar o discurso do outro não seria suficiente. Existiriam outras formas de se fazer essa marcação da alteridade discursiva. As três formas anteriores não configurariam todas as possibilidades de heterogeneidade mostrada no discurso. E, além disso, com o status de representatividade absoluta do discurso outro, assim considerá-las seria negar a própria existência de lugares outros e do interdiscurso; seria negar a própria heterogeneidade constitutiva do discurso.

No quadro da heterogeneidade mostrada, Authier subdivide dois grupos: os modos de marcação explícita e não explícita de representação do discurso do outro.

Dentre as formas marcadas, encontram-se o DD, o DI, a modalização, a modalização autonímica, as aspas, o itálico e a entonação. Dentre as formas não-marcadas estariam o discurso direto livre (DDL), o DIL, as citações não explicitadas, as alusões e as reminiscências. No primeiro grupo, há modos explícitos da presença do discurso do outro por meio de marcas na língua. No segundo, essas marcas não aparecem, cabendo ao receptor o reconhecimento ou interpretação da presença de um outro discurso.

Mas deve-se considerar a possibilidade do não-reconhecimento da presença do outro nas formas não-marcadas. Os locutores podem não se dar conta de que se trata de uma alusão ou uma citação, por exemplo. Encarar essa possibilidade confirma mais uma vez a obrigatoriedade da presença do outro no discurso do um, pois se conclui que não só o interdiscurso pode emergir sem marcar da alteridade discursiva, mas também a constituição do discurso do outro pode se enquadrar nesse modelo.

Nesse quadro teórico, as observações sobre o discurso do outro no discurso do um levantam questões fundamentais para o entendimento do funcionamento da construção discursiva de um locutor e do próprio discurso. A partir dessas reflexões, fica evidente a dependência entre dizeres. E a rede de acionamentos que se estabelece ao enunciar remete não apenas ao outro, mais também a uma memória discursiva que se consolida no decorrer das construções semânticas inseridas na esfera social. A presença de outros no dizer desloca a noção de sujeito centralizado para a de sujeito dividido e, conseqüentemente, assujeitado. Uma vez desfeito o mito do sujeito dono e fonte de seu dizer, emerge a concepção de discurso fundamentalmente heterogêneo e o entrecruzar discursivo que se estabelece ao enunciar. O outro, no que tange ao discursivo, tem seu teor de exterioridade relativizado passando a fazer parte constitutivamente do um. Mais do que nunca a alteridade propõe uma relação de proximidade com o outro para que se compreenda o próprio um.

 

ABRINDO A G MAGAZINE

Neste momento do trabalho, me proponho a tecer observações a respeito do funcionamento da alteridade discursiva nas colunas Olho no olho, da revista G magazine. Aplicando o quadro teórico de Authier-Revuz, procuro observar o funcionamento do Discurso Relatado em suas formas marcadas e não-marcadas na construção discursiva do discurso homossexual, tomando como material as referidas colunas.

As colunas, de forma geral, tratam de temas que atingem de forma direta o que é chamado de comunidade homossexual. Trata-se de textos em cujo gênero predomina a argumentação. Por meio de eventos que tem lugar na sociedade, Trevisan desenvolve suas colunas de forma a fazer o homossexual refletir sobre seu papel. Como numa espécie de conclamação à luta por seus direitos, os argumentos versam, quase sempre, para o apelo por uma posição de engajamento. Conclama-se a participação efetiva do gay no trabalho social que visa à construção de um cidadão de direito homossexual.

Nesse contexto, questões como a visibilidade da homossexualidade em suas várias expressões e a não-omissão das partes interessadas se contrapõem ao enrustimento e ao silêncio, se tornando bandeira nesse discurso militante.

 

Dando voz às seqüências discursivas

O trabalho de análise, nesse momento, versa sobre o recorte e observações das seqüências discursivas (cf. capítulo 1). Esses fragmentos de texto nos permitirão observar o ordenamento discursivo segundo o qual se constrói o discurso homossexual, na perspectiva da alteridade constitutiva do dizer.

É preciso dizer que para este trabalho, tomei como material de análise o último ano das colunas. O que chamo de último ano vai de junho de 2005 a junho de 2006. A motivação do estabelecimento dos anos das colunas assim cronologicamente postos se deve ao fato de sua inauguração ter ocorrido no mês de junho de 2000, portanto, trabalha-se com o primeiro ano como o ano de fundação da coluna na revista e o ultimo como a possibilidade de se observar, comparativamente, os deslocamentos nesse discurso.

As três seqüências seguintes são retiradas da coluna de abril de 2006 cujo título é Homessexuais e as drogas, onde é discutido o crescente consumo de drogas por homossexuais. Passemos às seqüências.

SD1 O escritor inglês Alan Hollinghurst, homossexual assumido que sempre cria protagonistas gueis em seus romances, também manifesta seu desencanto. Numa entrevista recente, ele disse lamentar que os homossexuais tenham perdido sua “dimensão heróica na civilização ocidental”. (edição abril 2006 – negritos e itálicos nossos)

Aqui temos (em negrito) um DI (discurso indireto) que comporta uma ilha textual (em negrito e itálico) atribuídos a uma identidade definida que é apresentada com destaque. Primeiramente por sua nacionalidade, uma vez que se ouvem as vozes que colocam a Inglaterra como símbolo do desenvolvimento, dos avanços sociais referentes à cidadania, etc. E, além disso, pelo fato de ser o escritor alguém apresentado e considerado íntimo da causa gay. Intimidade essa que inclusive o autoriza a escrever sobre o assunto por meio de seus romances. E o reconhecimento desse escritor é tamanho, que ele é chamado a dar entrevistas. Tudo isso respalda essa identidade definida fazendo com que suas palavras ganhem valor e respeito.

A ilha textual (“dimensão heróica na civilização ocidental”) interposta no relato em DI funciona como algo que tenta reproduzir a enunciação, gerando um efeito de fidelidade na reprodução do dizer. As aspas, aqui, tentam transpor a enunciação (pela reprodução do enunciado) do escritor marcando ainda mais fortemente o que é do outro. Não simplesmente se relata em DI, mas se re-presentifica o que foi dito tal qual foi dito. Essa ilusão de que existe a possibilidade de reprodução da enunciação leva a essa marcação do dizer (nesse caso, pelas aspas). Na verdade, o que é reproduzível é o enunciado e não a enunciação, mas os efeitos de sentido a que se chega com a ilusão de reprodução da enunciação são o de fidelidade ao dizer primeiro.

Trevisan busca, numa fala outra, palavras que apontam para a perda da vontade de lutar pelos seus direitos por parte dos gays. Num primeiro momento, a associação do homossexual ao herói é metaforicamente justificada pelo fato de o primeiro lutar por justiça, igualdade, etc. A referida perda do heroísmo representa uma forma de inércia no que tange à luta pelos direitos de cidadão homossexual. O ser que, de início, incita a imaginação por encontrar-se numa situação adversa e por lutar por si mesmo, decepciona quando é dito que ele perde a “dimensão heróica” (palavras do escritor). Isso equivale dizer que se perde dos reais objetivos pelos quais se deve lutar.

Passemos a próxima seqüência.

SD2 Um amigo nada careta descreveu horrorizado o clima de fim de festa numa famosa boate guei de São Paulo. Ele apareceu lá pela manhã e encontrou um bando de zumbis caindo pelos cantos. Ficou ainda mais chocado quando um amigo querido não o reconheceu, de tão drogado. Atenção: tratava-se de um amigo cinqüentão e professor universitário. (edição abril 2006)

Nessa seqüência, não temos um DI (discurso indireto) tal qual este é concebido. Mas temos uma estrutura de verbo dicendi (“descreveu”) seguido do que foi relatado pelo amigo, numa espécie de alusão ao relato. Essa maneira de relatar, por si só, amplia o conceito de DI fechado em parâmetros gramático-sintáticos de descrição.

Além disso,o que é relatado ganha status de verdade absoluta dos fatos e não se duvida que nada possa ter ocorrido de outra forma, pois se conta algo que se presenciou. Ele não foi a testemunha, mas se vale das palavras do outro que afirma ter visto o corrido, o que dá ao acontecido efeitos de factualidade e, conseqüentemente, inquestionabilidade.

Mais uma vez, as palavras do outro são usadas para endossar o que é defendido pelo colunista. Não se trata simplesmente de observações feitas pelo autor da coluna, mas estamos diante de um testemunho que vem ao encontro do que é dito por Trevisan.

Na seqüência anterior aponta-se para a perda da “dimensão heróica” (assim como é dito pelo escritor e retomado por Trevisan) por parte do homossexual. E a presente seqüência reforça essa perda com um exemplo da vida prática. As drogas são, sob esse efeito ideológico, algo de diminuição de valor; algo de decadente e depreciativo.

O fato de alguém que não se apresenta como conservador (“nada careta” – palavras de Trevisan) ter se chocado com a cena vista e descrita acentua a gravidade da situação. O referido “bando de zumbis caindo pelos cantos” (palavras de Trevisan) choca e horroriza o relator do acontecimento. O que acentua ainda mais a perplexidade do autor das colunas é quando se relata que se encontrou nesse ambiente alguém que guarda o status de professor universitário (em nossa sociedade, sinônimo de intelectual, ser pensante), alguém de quem se espera pensamento crítico em relação aos modos de comportamento, além de, ideologicamente[2], não se encontrar na faixa mais atraída pelas drogas: a juventude.

O distanciamento do heroísmo é aqui reforçado quando inclusive alguém que, nessa formação ideológica, detém ferramentas crítico-intelectuais para se posicionar de forma efetiva perante a causa homossexual se deixa levar por um comportamento dito condenável que não acrescenta na construção da cidadania homossexual e acaba por denegrir, segundo essa concepção, a imagem do gay.

Passemos à terceira seqüência.

SD3 O ato de fumar é bastante emblemático: com ele você mantém a boca ocupada por um objeto (o cigarro), movimentos (de sugar e expelir a fumaça) e gostos (o do cigarro em si, mas também outros gostos solicitados, como a bebida e o café). Não vou entrar no mérito psicanalítico da questão, que remete à fase oral, quando precisávamos do peito materno e, após o desmame, de uma chupeta. Quer dizer, as drogas apontam para um desamparo infantil que busca reforço fora de si. (edição abril 2006 – itálicos nossos)

Na perspectiva de heterogeneidade constitutiva do discurso, é valido observar a seqüência precedente. Não temos aqui explicitamente nenhuma das formas marcadas de que nos fala Authier, mas, por alusão (forma não-marcada de referência ao discurso outro), insere-se no discurso da Psicanálise. Observa-se que pela negação da referência é que se abre a porta para a Psicanálise; a referência é feita por um movimento que pretende não reconhecê-la; é negando a apropriação de um discurso outro que se efetiva o empréstimo. Por meio de uma oração subordinada adjetiva explicativa (que remete à fase oral) se introduz o discurso psicanalítico sobre a questão. O ponto de marcação do discurso outro passa a ser, então, a própria explicação emprestada. A oração relativa retoma o que foi negado funcionando como a porta de entrada para a Psicanálise.

De forma contraditória, essa negação do discurso psicanalítico é que o presentifica. Ele é acionado quando é dito que não comparece e acaba por funcionar pelo efeito de verdade que detém o discurso de ciência. O que é dito, mesmo que não seja em um texto psicanalítico, toma efeito de verdade e figura na esfera do incontestável.

Mais uma vez o discurso outro é usado para respaldar uma posição do autor das colunas. Nas três seqüências precedentes (SD1, SD2 e SD3) um escritor de renome, um amigo (pessoa em quem o autor confia) e a Psicanálise são utilizados para endossar os posicionamentos de Trevisan. Seja pela Literatura, por relatos de vida prática ou pela Psicanálise, o desvio na conduta do homossexual está posto: ele se comporta de maneira diferente da desejada pelo autor, ficando assim, suscetível às críticas pela não-atuação em campos que lhe garantiriam evolução no que tange a direitos e cidadania.

 

CONCLUSÃO

Assim, na perspectiva de uma constitutividade discursiva pela alteridade, se volta para o discurso desse autor, analisado a partir das colunas Olho no olho, da revista G magazine. Observa-se como funcionam as marcações do discurso outro e também as não-marcações. Os DDs, os DIs, as aspas, etc. e também as formas não-marcadas são discutidas no que tange sua representatividade numa abordagem enunciativa e também pela Análise do Discurso (Pêcheux).

Tal observação nos permite também constatar uma forma particular de argumentação. Temos um discurso que se preocupa em dar voz aos outros discursos, principalmente aos discursos que dizem do homossexual. O que é dito sobre esse grupo serve de ponto de partida para as argumentações de Trevisan. É presentificado no fio discursivo o que serve de ponto a ser atacado por esse discurso militante-combativo

Temos assumidamente, marcadamente ou não, as outras falas (principalmente as que dizem do homossexual) fazendo parte da construção de uma estratégia argumentativa que visa uma tomada de consciência por parte do cidadão homossexual, que, se não luta pelos seus direitos, tarda em fazê-lo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

––––––. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Unicamp, 1998.

INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Unicamp, 1997.

ORLANDI, E. Análise do discurso. Campinas: Pontes, 2005.


 


 

[1] Essa ciência toma o inconsciente como objeto, o que não é a questão aqui. Mas podemos encontrar nela noções essenciais de sujeito e de linguagem que dão conta de definir a heterogeneidade do sujeito no que tangencia seu dizer. A Psicanálise, então, configura um material de base para esses estudos de linguagem. É valido mencionar que também a Análise do Discurso de Pêcheux toma a Psicanálise como material de onde depreende sua concepção de sujeito.

[2] Refiro-me ao conceito de ideologia definido pela Análise do Discurso, de Michel Pêcheux, ou seja, o mecanismo imaginário que faz com que os sentidos tendam à obviedade, a transparência, o efeito de evidência causado por esse mecanismo.