A (des)Construção Argumentativa
em um Discurso de Lula

Luciana Moraes Barcelos Marques (UFES)

 

Introdução

Este trabalho tem como objetivo o estudo das estratégias discursivas utilizadas em um discurso político realizado em um contexto formal. Serviram de dados fragmentos transcritos do discurso público feito pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, publicado no dia 29/03/06, no jornal A Tribuna (ES). O motivo do discurso foi mostrar solidariedade ao Ex-Ministro da Fazenda Antônio Palocci, após sua saída do Ministério.

A pesquisa foi elaborada no modelo de micro-análise, com abordagem a partir de alguns conceitos da Pragmática. A análise partiu das formulações de Grice (1975) sobre o Princípio da Cooperação e de Brown e Levinson (1987) sobre estratégias de Polidez.

Cabe ressaltar que o interesse pelo assunto surgiu em virtude de um estranhamento pelo fato de um Presidente submeter-se a uma aparição pública em defesa a um ministro acusado, e neste discurso fazer referências remissivas à sua candidatura e o quanto esse ministro foi importante ‘nos momentos difíceis’.

 

Fundamentação Teórica

Princípio da Cooperação

É intuitivamente compreensivo que o que se fala não necessariamente represente o que se quer dizer. No entanto, a aparente disparidade significativa é comumente suprimida pela contribuição mútua entre interlocutores existente nos contextos comunicativos. A partir disso, Grice afirma que entre os falantes há um acordo prévio, tácito, de colaboração pelo sucesso da situação comunicativa, o qual ele denominou Princípio da Cooperação.

Deste modo, a teoria de Grice sistematiza contextos em que há (ou não) esforço do interlocutor em compreender a intenção do falante; defendendo que há dois significados principais: o convencional e o conversacional, e que um não interfere diretamente na significação do outro.

Para Grice, o significado convencional das palavras é o significado posto; que independe de contextos ou inferências para compreensão. Já o significado conversacional se dá independente do significado ‘real’ das palavras, mas é fundamentado principalmente no contexto comunicativo.

Cabe ressaltar que, não raras vezes, os significados são compartilhados. Porém, quando isso não ocorre é gerada uma implicatura conversacional e, portanto, a significação estará no contexto. Desta forma, implicatura é entendida como o que se quer dizer, e é situada pelo interlocutor por meio de inferências que ele faz.

Para o Princípio da Cooperação, Grice estabeleceu quatro máximas conversacionais a serem obedecidas, que representam as regras da conversação: as máximas da quantidade, da qualidade, da relevância e do modo.

 

Máxima da Quantidade

1. Faça sua contribuição tão informativa quanto for requerido (para o propósito corrente da conversação).

2. Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido.

 

Máxima da Qualidade

1. Não diga o que você acredite ser falso.

2. Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência.

 

Máxima da Relação

1. Seja relevante.


 

Máxima do Modo

1. Evite obscuridade de expressão.

2. Evite ambigüidade.

3. Seja breve.

4. Seja ordenado.

Cabe salientar que quando o falante viola deliberadamente uma ou mais máximas conversacionais é com o objetivo de comunicar mais do que está expresso literalmente; desta forma, o princípio não está sendo contrariado, mas violado com uma intenção comunicativa. Destacando-se que, quando há violação das máximas, tem-se uma implicatura conversacional.

 

Noção de Face: A Construção de um Eu Social

De acordo com Goffman (1980) “o termo face pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma através daquilo que os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico.” (Goffman, 1980: 76-77).

A partir dessa definição, Goffman defende que as pessoas adotam posturas e ações sociais com o objetivo de assegurar sua imagem pública, salvando sua própria face ou protegendo a face de outrem. Com isso, afirma que o indivíduo é um ator disciplinado que manipula a impressão que deseja passar aos seus interlocutores, sabendo-se que, para manter sua face, é necessário evitar atitudes espontâneas que possam derivar em ‘gafes’ sociais, ameaçando sua própria face.

A partir do conceito de face de Goffman, Brown e Levinson (1987) propõem uma dualidade para a noção de face, denominando faces positiva e negativa:

Negative face: the want of every ‘competent adult member’ that his actions be unimpeded by others.

Positive face: the want of every member that his wants be desirable to at least some others. (Brown e Levinson, 1987: 62)[1]

Desta forma, a face positiva refere-se à necessidade de a pessoa ser aceita e estimada no contexto social; e a face negativa refere-se à necessidade de a pessoa não sofrer imposição (ou coação) pelos outros indivíduos, podendo gozar de sua total liberdade de ação. Partindo dessa redefinição de face, Brown e Levinson estabelecem o Princípio da Polidez.

 

Polidez: Estratégias Sócio-comunicativas.

Como explicitam Goffman (1980) e Brown e Levinson (1987), face é a própria imagem pública que o indivíduo reivindica a si mesmo. Para obter sucesso em tal intento, o falante lança mão de atos como ordens, promessas, críticas, contradições, afirmações, entre outros; utilizando, também, estratégias que variam desde um ato de fala direto até um movimento indireto. Numa relação interacional, polidez pode ser entendida como uma preocupação em manter a face do outro.

Dentro dessa noção de polidez, tem-se uma série de princípios que devem ser obedecidos, como “tenha tato”, “seja generoso”, “seja modesto”, “seja simpático”. Evidentemente, no momento da interação os interlocutores nem sempre têm o total domínio de cada princípio (se está obedecendo ou violando), mas o faz de forma intuitiva.

A escolha das estratégias de polidez está sujeita às variáveis de poder, distância social e teor de risco; entendendo por poder as relações (posições) sociais hierarquicamente estigmatizadas; por distância social a distâncias entre uma posição e outra; e teor de risco pela ameaça à face do falante ou do ouvinte.

Em relação ao teor de risco, quanto menor o risco, mais direto será o ato comunicativo (denominado on record); quanto maior o risco, mais indireto será o ato comunicativo (denominado off record) recorrendo às inferências passíveis ao ouvinte.

As estratégias off record são violações às máximas de Grice, podendo o falante efetuar atos comunicativos de forma polida, não dizendo o todo necessário (violando a máxima da quantidade), dizendo aquilo que sabe que é falso (violando a máxima da qualidade), não sendo relevante (violando a máxima da relação) e sendo ambíguo ou obscuro (violando a máxima do modo). Cada violação reclamará uma inferência do ouvinte para alcançar a implicatura exigida no contexto comunicativo.

Quanto maior o vínculo (a intimidade) entre os interlocutores, menor será a utilização de estratégias comunicativas, e quanto menor o vínculo, maior a relação de polidez. Desta forma, quanto maior a distância entre os interlocutores, haverá um maior respeito e deferência por parte ‘da ponta inferior’. Portanto, quanto às estratégias de polidez, tem-se:

 

 

Ato Comunicativo

 

 

 

 

 

 

Dizer Algo

 

Não Dizer (insinuar)

 

 

 

 

 

 

 

 

Indiretamente
(off record)

 

 

 

 

Diretamente
(on record)

 

 

 

 

Ato de Salvamento

 

Muito Diretamente
(bald on record)

 

 

 

 

 

 

 

Polidez Positiva

 

Polidez Negativa

 

                                       


 

Um Discurso de Lula: Conversas em Desalinho

Para situar o contexto em que o discurso foi proferido, é necessário informar que no dia 27/03/06 o então Ministro da Fazenda Antônio Palocci pediu afastamento do ministério, em virtude de denúncias contra ele na CPI (comissão parlamentar de inquérito) dos bingos, que foram agravadas com a evidência de que Palocci quebrou o sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, que testemunhara contra ele. Por causa disso, no dia 28/03/06 o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um discurso em solidariedade ao ex-Ministro Antônio Palocci; e esse discurso foi publicado no jornal A Tribuna, no dia 29/03/06.

Esta pesquisa toma como dados trechos da publicação do jornal, sendo analisados apenas fragmentos; estando anexa a íntegra do discurso.

O Presidente inicia sua fala com uma longa saudação detalhada, de certa forma justificando o porquê de sua decisão de vir a público defender o ex-ministro:

Meu querido companheiro José Alencar, vice-presidente da República e ministro da Defesa, meu caro Guido Mantega, agora empossado ministro da Fazenda, meu eterno companheiro Palocci, meu caro senador Renan Calheiros, presidente do Senado Federal, meu caro Aldo Rebelo, presidente da Câmara dos Deputados, ministros de Estado aqui presentes, deputados, senadores, familiares de Palocci, de Ribeirão Pretos, jornalistas, empresários, meus amigos e minhas amigas, (...)

Analisando o fragmento acima à luz do Princípio da Cooperação, pode-se observar que o falante inicia infringindo as máximas da quantidade e do modo, sendo prolixo em sua saudação. Essa prolixidade talvez se dê pela necessidade de uma posição polida por parte do Presidente, que se pronuncia a todos os presentes dando maior destaque aos mais importantes cargos ali representados.

A máxima da quantidade é infringida também no fragmento transcrito a seguir, pois o falante não é suficientemente informativo quanto o requerido, explicitando o porquê dos outros ministros terem saído do ministério e não citando o motivo pelo qual o Palocci saiu. Com isso, cria-se uma implicatura, que, por comparação, indica que Palocci também saiu voluntariamente (o que não é verdade). Essa implicatura é índice de violação ao princípio da qualidade, pois deixa subentendido que os motivos para deixarem os ministérios são similares. As violações parecem ter sido planejadas, para se obter uma Polidez em que não se fala diretamente o sabido (para não ofender o outro – polidez positiva –, nem se expor – polidez negativa).

(...) não é de praxe um presidente da República falar cada vez que sai e entra um ministro, porque se assim for, no dia 31 eu terei que fazer dez discursos aqui, pelo que eu conheço de gente que quer ser candidato a deputado, senador ou governador.

Dando continuidade ao seu discurso, o presidente tenta justificar o motivo pelo qual está discursando em despedida ao Palocci, no entanto viola as máximas do modo, uma vez que é obscuro em sua explicação; da quantidade, já que não diz o que é requerido e da relação, pois acrescenta dados irrelevantes para a justificativa proposta. Observa-se, com isso, que o ato comunicativo fica na dimensão do não dizer, pois o tema em si implica numa grande ameaça às faces do Presidente e do Palocci, e não dizendo se insinua a importância a partir do conhecimento prévio dos interlocutores:

Mas este, para mim, é um momento especial. Eu estava vendo agora a tensão que sempre acontece num ato como este, e eu estava lembrando a tensão da véspera da eleição de 2002, a tensão depois da vitória de 2002 e a tensão para montar o governo, que não forma momentos de facilidade.

Ao longo do discurso, Lula faz referência a dados da época da campanha de 2002, em que mistura argumentos daquela época, com argumentos atuais; além de defender a política econômica de Palocci não por sua competência em economia, mas por sua ‘fineza política’. Com isso, verifica-se certa desconstrução argumentativa, pois a mistura de argumentos e o acúmulo de informações desnecessárias (como a citação da carta ao Povo Brasileiro, de 2002), além de infringir as máximas do princípio da cooperação, colaboram para um excessivo ato de salvamento, tanto de sua face, quanto da face de Palocci.

Outra consideração que pode ser feita do todo textual, é que há uma freqüente troca de direcionamento discursivo, isto é, em vários momentos o presidente se refere diretamente a Antônio Palocci ou a Guido Mantega, como numa conversa informal:

Eu acho, meu querido companheiro Palocci, (...)
Eu queria te dizer, Palocci (...)
Quero dizer ao companheiro Guido Mantega, (...)
Dizer para ele, Palocci (...)
Portanto, meu querido companheiro Guido (...)
Da minha parte, Guido (...)
Eu quero te dizer, Guido (...)
Portanto, meu querido Guido, boa sorte (...)
E no mais Palocci (...)
Eu posso terminar dizendo, Palocci (...)
E eu posso te dizer, Palocci (...)
É por isso que posso te dizer Palocci (...) Muito obrigado, querido.

O excesso de informações faz com que o falante se perca em suas elucubrações e deixe de concluir o que é proposto inicialmente:

Portanto, meu querido companheiro Guido, se você continuar fazendo o que precisa ser feito, mostrar seriedade, fazer acontecer a política de desenvolvimento que todos nós queremos que aconteça, sem oferecer para a sociedade nenhum milagre, mas oferecendo apenas a oportunidade de mais empenho, de mais sacrifício, de mais trabalho, porque termina sendo o trabalho que pode resultar na economia com crescimento acima do que nós crescemos até agora, ao longo de tantos e tantos anos.

Observa-se, nesse fragmento, que o falante viola as máximas de quantidade, pois é excessivo em suas explicações (fala mais que o requerido), no entanto não conclui o que é proposto (fala menos que o proposto) e de modo, porque é obscuro em sua explanação. Nas relações coesivas da língua, se usa a relação “se isso, aquilo”, sendo o se um condicional para uma conclusão posterior, o que não acontece nesse trecho.

Há também as violações propositais, como em:

Portanto, meu querido Guido, boa sorte e, a partir de hoje, quem quiser falar mal da economia, por favor não fale mais mal do Palocci, fale mal do Guido Mantega.

Percebe-se que a máxima da quantidade é violada (o que se diz é desnecessário) e da relação também (o que se diz é irrelevante), entretanto isso é proposital, com o intuito de ser irônico. E neste trecho, ele ameaça a face de todos quantos questionam a política exercida, pois sem estratégias de polidez, deixa claro que falam e falarão mal do ministério.

No fragmento seguinte, há uma ambigüidade proposital (violação da máxima de modo):

Tem muita gente que tem muito amigo para isso, muito amigo para aquilo, mas eu quero ver quem consegue colocar nos dedos da mão, 10 verdadeiros companheiros.

Eu quero saber quem consegue falar – eu só tenho nove, a minha está com a valorização do dedo aqui.

O discursista não afirma categoricamente que tem nove amigos, nem nove dedos, mas por ser publicamente conhecido que ele efetivamente tem apenas nove dedos, ele se aproveita da ambigüidade para implicar que as relações de amizade dele estão com a “valorização do dedo”. Novamente tem-se uma violação intencional das máximas, mas com objetivo discursivo.

 

Algumas Considerações

A análise desse discurso público à luz de fundamentos teóricos como o Princípio da Cooperação, a noção de face e as estratégias de polidez leva a crer que em parte o discurso foi emocionalmente influenciado, e em parte politicamente, uma vez que há algumas referências às relações de amizade entre o presidente Lula e o ex-ministro Palocci, e há referências a problemas político-partidários.

A formulação desse discurso carrega consigo a construção de uma fala politicamente organizada, e a desconstrução dessa organização por uma intimidade entre amigos. Com isso, ora o discurso tem uma configuração formal – e portanto deve obedecer a critérios próprios desse gênero – e ora configura informalmente, como um diálogo de consolo entre companheiros.

Essa desconstrução argumentativa se dá a partir de excesso de informações, digressões a experiências passadas em conjunto, e falta de sustentabilidade argumentativa em defesa do ex-ministro.

 

Referências Bibliográficas

Brown, Penélope & Levinson, Stephen C. Politeness: Some universals in language usage. [S. L.: s. n.] 1987.

Goffman, E. A Elaboração da Face: uma análise dos elementos rituais na interação social. Francisco Alves, 1980.

_______. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985

Locher, Miriam A. Power and Politeness in Action: Disagreements in Oral Communication. New York: Mouton de Gruyter, 2004

Reyes, Graciela. El abecé de la pragmática. Madrid: Arco/Libros, S. L., 1998.


 


 

[1] Sugestão de tradução: Face Negativa: é a necessidade de todos os falantes que suas ações sejam aceitas (ou desimpedidas) pelos outros. Face Positiva: é a necessidade de todos os falantes em querer ser no mínimo agradável aos outros.

Anexo