Gêneros do Discurso e Espaço Universitário
uma abordagem da produção de monografias

Lucas de Mello Cabral

 

Introdução

Partindo da consideração de Maingueneau (2005), de que um espaço social pode ser caracterizado pelos gêneros que ele torna possível e que o tornam possível, vamos propor, em nossa exposição, uma reflexão crítica sobre o espaço universitário a partir de gêneros que circundam a produção da monografia de graduação. Efetivamente, a universidade, em semelhança a outros locais de trabalho, produz um universo de práticas discursivas passíveis de serem abordadas pelo pesquisador: desde aulas até reuniões do corpo discente, docente, ou de funcionários de outras categorias responsáveis pelo funcionamento da universidade; desde processos burocráticos até artigos de divulgação e produção científica; sem esquecer os debates, as propagandas e os programas produzidos durante o contexto específico das eleições para determinados cargos (no caso das universidades públicas, ocorrem eleições regulares para reitor, dentre outros cargos). A universidade funciona, efetivamente, como uma “usina de palavras”.[1]

Nesse sentido, mesmo tomando uma situação de trabalho específica, como a produção monográfica na graduação, a encontraremos cercada de gêneros do discurso diversos, desde o próprio texto a ser produzido até as sessões de orientação, passando pelo que tomamos como elemento de córpus para nossa pesquisa: os livros, dirigidos a alunos de graduação, que afirmam instruí-los sobre como se escrevem monografias. Salientemos que tal filão editorial encontra representação significativa nas prateleiras de nossas livrarias e bibliotecas, já existindo um número razoável de exemplares com o tema, e muitos deles com mais de uma edição. A escolha desse córpus se faz ainda mais relevante à medida que tais livros têm se popularizado a partir de mudanças ocorridas recentemente, que construíram uma nova configuração (crítica?) da universidade, como colocado muitas vezes nos prefácios e introduções dos próprios livros.

Se tais textos não chegam a querer substituir a interação professor-aluno, no contexto da orientação do trabalho monográfico, eles pretendem suprir o que não mais pode ser feito no cotidiano acadêmico. Coloque-se que muitas vezes os docentes responsáveis pela orientação de produções monográficas podem até indicar semelhantes textos para os seus orientandos. Esses últimos, também, em determinados contextos podem procurar pelos livros por conta própria. Pode-se considerar, portanto, que esses livros que orientam a produção monográfica desempenham um papel no funcionamento da universidade e, especialmente, no contexto específico do trabalho de produção da monografia.

Estamos partindo do pressuposto de que esse gênero do discurso específico, que busca dizer como se realiza uma outra produção textual, diz das coerções do gênero a ser ensinado, constituindo um elemento relevante para a pesquisa. Assim, em um livro que pretende dizer como se escreve um roteiro de cinema, nos parece óbvio que entrarão em cenas questões como o conteúdo temático, o estilo e a estrutura da composição (Cf. Bakhtin, 1992: 279-326) do gênero roteiro cinematográfico. Consideramos, portanto, pertinente investigar o gênero monografia a partir das obras escolhidas para a composição do córpus.

 

Os Gêneros do Discurso
a monografia de graduação como um gênero?

Gêneros do discurso podem ser definidos como dispositivos de comunicação só encontrados em presença de determinadas condições sócio-históricas (Cf. Magueneau, 2005: 59-70). Isto quer dizer que, obviamente, as tipologias de gêneros são historicamente variáveis, determinadas a partir da sociedade na qual se encontram. Pretendemos investigar, no contexto da universidade brasileira atual, se a monografia de graduação se delimita como um gênero do discurso específico, diferenciado de outros gêneros próximos produzidos no âmbito acadêmico. Dentro dessa perspectiva, será importante colocar que, se uma determinada produção discursiva pode ser considerada a partir de um critério de êxito com relação ao gênero, os elementos do córpus devem delimitar não só a finalidade (“Estamos aqui para dizer ou fazer o quê?”), como também as competências genéricas necessárias ao texto monográfico. Essas serão analisadas a partir do conjunto elencado por Maingueneau (2005): estatuto dos parceiros legítimos (tema desta exposição), lugar e momento legítimos, organização textual.

Assim, buscaremos um conjunto de coerções comuns, ao qual, para se identificarem como monografia, vários textos se filiem. Aqui, faz-se necessário enfatizar que a utilização da língua não é feita ao bel-prazer do sujeito. O conteúdo temático, o estilo e a estrutura de composição (Bakhtin, op. cit.) são fundados a partir do todo do enunciado e se encontram marcados pela esfera da atividade humana na qual se inscrevem. Essa, por sua vez, pressupõe tipos relativamente estáveis de enunciados (gêneros do discurso). Não haveria, assim, texto que não pertencesse a um determinado gênero discursivo. Vejamos, então, que justamente a idéia que temos de um gênero nos dirige em nossa atuação discursiva, que, portanto, só será possível dentro da esfera de utilização da língua, de atividade social na qual nos encontramos.

Um gênero do discurso teria um certo número de condições implicadas, as quais ajudariam justamente a caracterizá-lo. Poderíamos dividi-las, de acordo com Maingueneau (1997), em duas ordens: (a) comunicacional (aqui entrariam questões como: transmissão oral ou escrita? em que meio? através de quais meios de difusão? dentre outras relacionadas aos momentos e lugares de enunciação específicos e ao ritual apropriado); (b) estatutário (nesse caso, considera-se, essencialmente, qual estatuto o enunciador deve assumir e qual deve conferir ao seu co-enunciador para tornar-se sujeito de seu discurso). Nesse sentido, é importante ressaltar o funcionamento do gênero como um elemento que garante a cada um a legitimidade que ocupa no processo enunciativo.

Coloque-se aqui a diferença entre o contexto ritual da produção de teses de doutorado e dissertações de mestrado, em relação ao caso da monografia de graduação. No último caso, não temos necessariamente a constituição de uma banca, formada por professores especialistas da área abordada – de dentro e fora da universidade do autor. Tal não-obrigatoriedade já causa um diferencial na atividade exercida e mesmo uma formação de público-leitor diferente. Não ignoramos, entretanto, que, apesar de ausência de necessidade, vemos muitas vezes defesas de monografias diante de banca.

Nas obras pesquisadas, é comum haver uma certa indistinção, ou mesmo uma dificuldade de diferenciar a monografia desses outros gêneros próximos, até mesmo pela semelhança de diversas características, principalmente no que diz respeito ao estilo e à estrutura da composição. Não raramente, encontramos no córpus apartes que afirmavam que o conteúdo daquele livro, embora direcionado a um caso específico, poderia ajudar ao doutorando, ou ao mestrando. Nesse sentido, não seria insensato descrevermos no espaço universitário um movimento de enrijecimento relativo à produção textual, com o congelamento de estruturas específicas comuns a diversos gêneros.

 

Sujeito Genérico

Pretendemos concentrar a nossa investigação na ordem estatutária de condições implicadas por um gênero, que ajudariam a caracterizá-lo, uma vez que, a partir do exposto, podemos concluir que se trata de um espaço mais produtivo para investigarmos possíveis distinções da monografia e de seus gêneros próximos. Essa ordem diria respeito ao estatuto dos parceiros legítimos, especificando de quem parte e a quem se dirige a fala. A cada um desses espaços corresponde não só uma série de deveres e direitos, como também de saberes necessários, assim, como lembra Maingueneau:

Um curso universitário deve ser ministrado por um professor que se supõe deter um saber e ser devidamente autorizado para exercer o ensino superior; deve ser dirigido a um público de estudantes que, supostamente, não detêm esse saber... o leitor de uma revista científica de cardiologia deve possuir um saber médico diferente do que detém o espectador de um programa de televisão sobre doenças cardiovasculares (Maingueneau, 2005: 66).

Vejamos que, nessa dimensão ética da constituição do gênero, um papel está definido pela sua relação com o outro, não sendo possível supor um enunciador falando para o vazio, sem um co-enunciador, ainda que só imaginário. Maingueneau (1997) fala de três sujeitos, sendo que, relativo a cada um, haveria co-enunciadores correlatos: o sujeito lingüístico, o sujeito da formação discursiva e o sujeito genérico. O primeiro seria para a Análise do Discurso um pressuposto, e não objeto de estudo. A necessidade da introdução do último se dá porque, no caso do discurso, não ocorre uma interpelação do indivíduo como sujeito, na forma universal do sujeito da enunciação, mas em um certo número de lugares enunciativos que fazem com que uma seqüência discursiva seja uma entrevista, um editorial, etc., dentre tantas outras possibilidades.

Assim, ao ocupar a posição de sujeito genérico, o locutor se legitima, como apto a tomar as posições enunciativas no seu discurso. Maingueneau (1997) ainda acrescenta: “No quadro do gênero do discurso encontra-se, pois, uma questão geral, a da autoridade relacionada a uma enunciação... O discurso só é ‘autorizado, e, conseqüentemente, eficaz se for reconhecido como tal”. (Maingueneau, 1997: 37). Cabe ressaltar que não é por ter provado o domínio de determinado saber, ou ter demonstrado a sua competência que determinados indivíduos detêm, por exemplo, o discurso científico. Ao contrário, o exercício do discurso pressupõe um lugar de enunciação caracterizado por tais capacidades. Assim, quando um indivíduo ocupa esse lugar, pressupomos que ele detém as capacidades necessárias. Se não for o caso, a ineficácia do discurso será inevitável.

Recolhemos, portanto, trechos dos elementos do córpus que fizessem menção explícita (no contexto oracional) tanto ao público-alvo da monografia, quanto aos produtores. Pretendemos, assim, investigar que estatuto de parceiros legítimos esses livros tornam visível.

 

O Estatuto dos Parceiros Legítimos no Córpus

Não foram encontradas muitas menções a para quem se escreve, apresentando-se quatro exemplos somente. Tal se deve a uma alienação do trabalhador, através do engodo da escrita por si, conforme ocorre nos gêneros da redação escolar – os quais são abordados num processo de abstração da escrita, pela naturalização desse ato. A motivação extrínseca obriga o aluno a escrever sem destinatário explícito, criando-se a ilusão de que a escrita é uma atividade por si só, uma produção textual que não necessariamente está vinculada a uma atividade comunicativa. Vejamos, entretanto, os exemplos encontrados (sendo os grifos sempre nossos):

... uma etapa da ciência foi cumprida; logo, nossos pares estarão dispensados de seguir aquela trilha (Simões, 1999: 28).

... o aluno seja responsável, em sua trajetória escolar, desde a escolha do tema até sua defesa perante a banca examinadora (Matias & Alexandre, 2005: 61).

A versão da monografia (3 vias) a ser apresentada à banca examinadora deverá ser encadernada com espiral... (Matias & Alexandre, 2005: 93).

O formato mental/ conceitual anterior [itens ou partes da monografia] não deve perder de vista os parâmetros de análise que o(s) principal(is) leitor(es) da monografia (professores orientadores, orientadores acadêmicos, membros de banca examinadora e leitores similares) normalmente adota(m): clareza do(s) objetivo(s) proposto(s) pelo trabalho; delimitação do problema a ser investigado; coerência entre objetivo(s) e conteúdo do trabalho (proposta versus texto desenvolvido); tratamento metodológico; fundamentação teórica; adequação da linguagem; normas da ABNT aplicáveis ao desenvolvimento da monografia (Tachizawa & Mendes, 2005: 114-115).

Vejamos que, no primeiro caso, o interlocutor do aluno são os “pares científicos”. Deve-se ressaltar o uso do pronome nossos cria o ideal da comunidade científica, endereçando-se tanto a quem fala, quanto ao leitor-produtor da monografia, identificado como par dessa comunidade. O público seria, então, a comunidade científica em geral. Nos outros casos, os interlocutores são professores especializados, membros de banca examinadora e orientadores. Em ambos os casos, o produtor da monografia fala a avaliadores que irão julgar o seu trabalho – nesse sentido, ressalte-se o duplo aparecimento do adjetivo examinadora, não acontecendo o apagamento muito comum: membros da banca. No último caso, os leitores são dispostos em hierarquia, isto é, pode haver outros leitores (não-mencionados), mas eles são desimportantes, e o produtor da monografia deve-se concentrar no parâmetro de análise dos seus leitores principais.

Passemos, agora, às menções feitas ao produtor da monografia (mais uma vez, os grifos são nossos):

Resguardadas as diferenças, sejam estas de base teórica ou de natureza prática, pede-se ao estudante que produza um fichamento, resumo, resenhas, relato de pesquisa, etc., até chegar-se às monografias (Simões, 1999: 15).

... o texto do pesquisador – autor da monografia – e os excertos trazidos ao trabalho para endossarem a posição do relatante (Simões, 1999: 27).

... a escolha do nosso tema decorreu dos problemas que vimos detectando nas monografias apresentadas pelos estudantes (Simões, 1999: 71).

... não é bastante colocarem-se lado a lado os textos produzidos pelo relatante e pelos teóricos que o antecederam (Simões, 1999: 73).

... uma vez que a finalidade destas [monografias] é demonstrar a capacidade do autor (pesquisador iniciante) de explanar determinado tema com argumentação e ilustração suficientes para comprovar suas possíveis descobertas (Simões, 1999: 74).

... um tema que corresponda ao gosto e interesse do aluno-pesquisador (Tachizawa & Mendes, 2005: 29).

[na conclusão] O aluno deve manifestar seu ponto de vista sobre os resultados obtidos e seu alcance (Tachizawa & Mendes, 2005: 114).

Vejamos que essas formas diversas de atualizar o produtor da monografia parecem apontar lugares enunciativos distintos de onde o enunciador pode formar seu texto. O primeiro, o terceiro e o último exemplos referem-se a um mesmo estatuto: o aluno (ou estudante). Nesse sentido, a monografia se aproximaria dos outros trabalhados produzidos ao longo do curso de graduação, como requisito das matérias. No caso de relatante, temos alguém que está passando a sua experiência para outro que não a conheceu, contando como se realizou o seu trabalho. Teríamos então uma proximidade entre a monografia e os relatórios de estágio, ou de bolsa de pesquisa. Temos ainda três tipos de lugar enunciativo com o pesquisador como denominador comum: pesquisador, pesquisador iniciante e aluno-pesquisador.

 

À guisa de Conclusões

Cabe, antes de tudo, informar que ainda não chegamos a conclusões capazes de dar conta plenamente da pergunta da qual partimos. Podemos vislumbrar, entretanto, que a monografia pode-se delimitar como um gênero do discurso específico, haja vista que os estatutos dos parceiros legítimos aqui investigados são um primeiro esforço para uma distinção clara, por exemplo, da monografia frente a outros gêneros próximos como a tese de doutorado, ou a dissertação de mestrado. Cabe investigar, contudo, que produção heterogênea temos de monografia e verificar se temos um gênero do discurso específico ou mais de um habitando o mesmo rótulo.

Aqui, é bom lembrar Maingueneau (2005), que diz que a sociedade tem muitas formas de categorizar textos, atendendo aos critérios mais diversos. Entretanto, conforme diz o autor: “Tais categorias correspondem às necessidades da vida cotidiana e o analista do discurso não pode ignorá-las. Mas também não pode se contentar com elas” (Maingueneau, 2005: 59).

 

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. 4a ed. São Paulo: Cortez, 2005.

––––––. Novas Tendências em Análise do Discurso. 3a ed. Campinas, São Paulo: Pontes: UNICAMP, 1997.

ROCHA, D. O. S. Une Approche Discursive de la Classe de Langue Étrangére en tant que Lieu de Travail. DELTA – Revista de Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 19. n1, p. 155-180, 2003.

MATIAS. A; ALEXANDRE, Sylvio. A monografia: do projeto à execução. Coleção Resumido. Rio de Janeiro: EdRio, 2005.

SIMÕES, Darcília. (org.) A produção de monografias. Coleção Em Questão. 2a ed. Rio de Janeiro: Publicações DIALOGARTS, 1999.

TACHIZAWA, Takeshy; MENDES, Gildásio. Como fazer uma monografia na prática. 10a ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.


 


 

[1] A expressão é tradução literal do francês “usine à mots”, de Bots, Gardin & Lacoste (apud Rocha, 2003: 157).